Sobre os Tlacique, cainitas nativos da América Pré-colombiana em Vampiro A Máscara

Porakê Munduruku
Brasil na escuridão
5 min readMar 6, 2019
Ilustração de Alyne Leonel

Escassos fragmentos de informação oficial sobre essa obscura linhagem estão espalhados em diferentes suplementos da terceira edição de Vampiro: A Máscara, a saber: Clanbook: Followers of Set Revised, Rites of the Blood e Blood Sacrifice: Thaumaturgy Companion.

Como ponto de partida, utilizaremos a versão oficial da linhagem como é apresentada na Edição Comemorativa de Aniversário de 20 anos do jogo. Iniciemos por uma tradução livre de um pequeno trecho que trata especificamente dela em um dos suplementos publicados para o V20:

Tlacique — Contemple os servos do Sol. Os Conquistadores Cainitas vieram para o Novo Mundo sedentos por terras e sangue fresco. Imagine a surpresa que despertou em seus corações mofados quando se depararam com vampiros que já estavam aqui: Nosferatu, Gangrel e uma linhagem que chamava a si mesma de Tlacique. Seriam esses últimos um novo Clã? Não havia nenhuma alusão sobre eles, não em todos os velhos registros, mas esses vampiros nativos eram antigos e poderosos.

Os Tlacique se reivindicavam descendentes do deus asteca da noite e da magia. Os Membros europeus assumiram que este tal Tezcatlipoca deveria ter sido o progenitor Matusalém de uma linhagem muito antiga, talvez dos Gangrel ou mesmo dos Seguidores de Set. Mas o que impressionou os cainitas do Velho Mundo foi a forma como os Tlacique viviam. Eles não apenas influenciavam os mortais que encontraram, mas governavam abertamente, como deuses, de uma maneira que não se ouviu desde Cartago. Um culto de sacrifícios. E de rios de sangue em êxtase. Imagine!

Eles eram os filhos de um deus, reflexos do Espelho Fume-gante. Acreditavam que isso os colocava acima de mortais e vampiros. Sua crença era de que seus rituais e o consumo de sangue mantinha o sol vivo e em movimento. Eles tinham um lugar no drama cósmico. Ao contrário dos Seguidores de Set, seu progenitor divino nunca haviam sido banidos.

Esses antigos deuses do sangue fizeram negociações cautelosas com os recém-chegados. A Camarilla poderia ter conquistado um oitavo Clã, não fosse pela ganância. Todos sabemos o que os conquistadores fizeram com os nativos. Os Tlacique então decidiram se aliar ao Sabá. Bem, isso não funcionou. O Sabá adorava seus rituais sangrentos, mas carecia de propósito espiritual. Os Tlacique protegiam uma ordem divina e o Sabá se opunha a essa mesma ordem. Então a Espada de Caim dizimou os filhos de Tezcatlipoca.

Eles estão dispersos, mas alguns permanecem. Ocultos, buscam unirem-se e reconstruir seu poder. Eles se espalham pela América Central, do Sul e do Norte. Buscam trazer de volta do Torpor seus anciões que não foram devorados pelo Sabá e abraçam novas crias. Nós fazemos amizade com eles quando podemos. Compartilhamos o amor pelos segredos sombrios e pela feitiçaria primordial. Ajudamos e os exortamos à vingança. O Sabá tem algo desagradável em seu encalço e nem sabem disso. Certamente não seremos nós que diremos a eles.” (V20 — Lore of the Clans, página 64).

É a partir desses fragmentos de informação e da mitologia envolvendo mortos-vivos sedentos por sangue entre os povos nativos da América pré-colombiana, como a lenda tlaxcalteca de bruxas metamorfas, o deus maia vampiro Camazotz e os mitos dos Andirás e Cupendiepes entre os povos indígenas nos territórios que viriam a constituir o Brasil, que proporemos um detalhamento e ampliação da Linhagem Tlacique, buscando torná-la bem mais relevante ao enredo de Vampiro: A Máscara.

Afinal, considerando a relevância que os textos oficiais atribuem aos Tlacique em relação aos grandiosos e avançados impérios meso-americanos do período pré-colombiano e o fato de que as três únicas espécies de morcegos hematófagos que existem no mundo, e que inspiraram tanto o mito moderno de vampiro quanto as histórias Vlad Tepes, são nativas dos territórios que se estendem do sul do Texas à Argentina, nada nos parece mais justo.

Em nossa releitura, os Tlacique, como os setitas que lhe deram origem, amam acumular influencia e poder tanto sobre mortais como sobre outros cainitas, mas costumam ser também extremamente territorialistas e cultivam vínculos estreitos com comunidades e populações nativas. Muitos parecem tomados por um orgulho nacionalista ou sentimento anti-imperialista que muitas vezes se traduz em um saudosismo melancólico pela “Era de Ouro” da Linhagem às sombras de Tenochtitlán.

Eles são comumente relacionados ao tráfico de drogas e armas, financiam guerrilhas e organizações políticas de natureza ultranacionalista nas Américas Central e do Sul, mas também podem se envolver com a luta em defesa dos povos nativos ou em comunidades marginalizadas no Brasil e por toda a América latina, influenciando os ramos mais sombrios da cultura periférica latino-americana como as vertentes mais “barra-pesada” do Funk e do Movimento Hip Hop.

Os membros mais novos da Linhagem costumam traçar paralelos interessantes entre as celebrações de Bailes Funk e dos “Rolês” da galera do Hip Hop nas periferias das grandes cidades latino-americanas com antigos rituais extáticos e profanos em honra a divindade da magia e da escuridão a qual remetem sua origem. Execuções rituais em tribunais do tráfico podem também ocultar sacrifícios elaborados em honra de sua divindade obscura.

Os Tlacique aprenderam discernir, no ambiente selvagem e caótico das periferias dos grandes centros urbanos latino-americanos, a matéria-prima a partir da qual moldam sua própria visão sombria de ordem e justiça. Eles costumam selecionar seus novos membros entre aqueles que consideram os mais dignos entre os jovens sobreviventes dessas zonas de guerra permanente. E mesmo aqueles não tão antigos entre os Tlacique costumam ser tão altivos quanto cautelosos, retirando dos vislumbres da grandeza de seu passado, transmitido por seus anciões, um orgulho peculiar de suas origens, na mesma proporção em que os relatos sobre o massacre dos povos nativos, durante a Invasão ou na atualidade, e as lições aprendidas em suas próprias vivências como mortais, quase sempre em meio à marginalidade das nações latino-americanas, os insuflam com o ódio e as duras lições que os movem e orientam em suas não vidas.

*Este trecho foi extraído do “Livro da Linhagem Tlacique” , de autoria de Porakê Martins e Alex Pina, publicado via Storytellers Vault, que apresenta a adaptação dessa exótica linhagem Setita pelo olhar da Equipe Brasil in the Darkness, valorizando ainda mais a cultura e a história dos povos latino-americanos. Você pode adquirir o livro completo clicando AQUI.

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Porakê Munduruku
Brasil na escuridão

Mombeu’sara, griô amazônida e escritor. Administrador da Página Brasil in the Darkness e integrante da Kabiadip-Articulação Munduruku no Contexto Urbano.