Ato 1: Ladrão de casaca

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7 min readOct 6, 2016

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Eles ainda existem, aos montes, mas em 1991 eram tantos que o delegado geral da Polícia Civil paulista, Álvaro Luz Franco Pinto, recém-empossado, admitiu ser impossível acabar com o que ele considerava a “maior vergonha da categoria”. O ganso, como é chamado o informante clandestino, não reconhecido pela Justiça, se tornara de fato uma praga incontrolável, difícil de ser identificada, com o seu poder e autonomia para frequentar delegacias, dirigir viaturas, portar distintivo e armas, participar de investigações e até de efetuar prisões.

Quem conhecia os bastidores da polícia paulista sabia que Álvaro Pinto evocava uma retórica típica de quem estava assumindo um alto posto na segurança pública. Os gansos eram o principal braço auxiliar da corrupção policial. Em muitos dos departamentos, tinham estrutura superior a dos próprios delegados, com carta branca para intermediar extorsões, fazer a coleta da propina e, sempre quando preciso, executar uma operação de queima de arquivo.

No mundo imperfeito dos gansos, ganhavam todos. O policial, que recebia o seu, sem se envolver; o ganso, que era pago pelo seu trabalho; e o delegado, que ficava com boa parte da propina e ainda via aumentar a eficiência de seu departamento. Os gansos eram profissionais experientes, sempre um passo à frente da polícia. Não por acaso, no início da década de 1990, pelas contas de Álvaro Pinto, cada delegado controlava de dois a três informantes ilegais, o que elevava para seis mil o número de gansos só na região da Grande São Paulo.

Como na polícia, os gansos também tinham a sua tropa de elite. Esses ganhavam em dólares e trabalhavam como informantes da Drug Enforcement Administration (DEA), a agência antidrogas dos EUA, que infiltrava meia dúzia de homens no Brasil em busca de informações que resultasse em grandes apreensões de drogas e no desmantelamento de quadrilhas internacionalizadas. Um ganso recebia da DEA, por cada quilo de cocaína apreendido, cerca de 5 mil dólares, além do direito de desfrutar de um estilo de vida luxuoso, com carro importado à disposição e passe livre para se hospedar em hotéis cinco estrelas, mordomia que facilitava o trânsito no círculo social frequentado por megatraficantes.

O DEA enviara ao Brasil, no fim da década de 80, um de seus melhores agentes. Era um ex-advogado criminalista que enriquecera ao arrancar valiosas informações sobre cartéis colombianos e que conhecia como poucos os meandros da polícia paulista. Alto, boa pinta, sempre aprumado, ele acostumara-se desde cedo à vida dupla. No high society paulistano, onde também circulava com desenvoltura, habitué dos rega-bofes da Sociedade Hípica Paulista, ele se comportava como um lorde, fazendo jus ao pomposo nome de batismo: Laurival de Moura Vieira Aquilino Neto. No país da corrução impune, do tráfico de influência, do fisiologismo político, ele era tido como um homem sem o mínimo impedimento moral, chamado apenas de “Dr. Neto”.

Foi o Dr. Neto, e não o distinto Laurival, quem caíra, no verão de 1985, nas garras do FBI, ao ser flagrado, segundo agentes da polícia federal americana, trocando dólares falsos num cassino de Atlantic City. Procurado pela reportagem do BRIO, o advogado de Laurival na época, Antônio de Pádua, sustenta até hoje a tese de que seu ex-cliente foi vítima de uma arapuca armada pelos policiais americanos. Para Pádua, o DEA já monitorava os passos de “Dr. Neto” há um bom tempo e sabia o quanto ele, por conta de seu histórico como criminalista, poderia se tornar um ótimo informante:

“Quando o pegaram, dentro no cassino, ele estava com três notas falsas de cem dólares, que haviam sido dadas a ele por uma mulher do caixa da própria casa. Foi tudo armado. A acusação do FBI em juízo dizia que ele havia sido flagrado portando 500 mil dólares falsos. Para escapar de uma condenação pesada, ele aceitou virar informante da DEA”.

Foi Laurival, e não o ardiloso “Dr. Neto”, que ganhou fama entre seus pares pela capacidade de arrebatar o coração das mulheres mais cobiçadas da sociedade paulistana. Entre elas, uma ex-namoradinha de um colégio suíço-alemão, em Rio Claro (SP): Lia de Figueiredo Ferraz. Lia era filha do ex-prefeito de São Paulo (1970–73), o engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz, cuja gestão entrara para a história da cidade por subverter o portentoso lema do qual os paulistanos tanto se orgulhavam — “Non Ducor Duco” (“Não sou conduzido, conduzo”, em latim). Segundo Ferraz, autor da lei do Primeiro Plano Diretor do município, São Paulo precisava era parar de crescer.

Figueiredo Ferraz, como de praxe, foi quem conduziu Lia pelo corredor da Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no Jardim Paulistano, até os braços de Laurival, na noite do dia 6 de março de 1980. A cerimônia de casamento mereceu ampla coberta da imprensa local, com direito a encabeçar a prestigiada coluna social de Tavares de Miranda, na “Folha de S. Paulo”.

Menos de três anos depois, Laurival voltaria a ser destaque em outro grande veículo da imprensa brasileira — a revista Veja –, mas dessa vez tratado de forma menos lisonjeira, chamado por incômodo epíteto, que o perseguiria para sempre. Sua vida dupla, enfim, havia sido desmascarada. Com o título de “Ladrão de Casaca”, a matéria, publicada na edição do dia 14 de setembro de 1983, revelara, com exclusividade, quem era o mentor intelectual da onda de assaltos que apavorava os moradores do bairro do Jardim Paulista, entre eles o filho da apresentadora Hebe Camargo.

A reportagem afirmava que o advogado, “familiarizado com os hábitos das vítimas, era quem indicava as pessoas que deveriam ser assaltadas e os horários e locais adequados, inclusive dando informações até mesmo sobre os valores que poderiam ser encontrados”. Segundo a Veja, Laurival, cuja mãe era dona de uma butique de grife no bairro do Jardim Europa, usava do seu charme e elegância para se aproximar de clientes da loja e conseguir informações preciosas, repassadas para um grupo de assaltantes. Um deles, preso num motel da Zona Leste da cidade, confessara, segundo a revista, a participação nos assaltos e entregara quatro companheiros da quadrilha, entre os quais o advogado.

Um dos únicos registros fotográficos de Dr. Neto, de sua carteira da AASP. Reprodução “Veja”.

A manchete da matéria, “Ladrão de Casaca”, seguido do subtítulo “Um colunável chefiava os assaltantes”, fazia referência ao clássico filme dirigido por Alfred Hitchcock e estrelado por Cary Grant e Grace Kelly. Grant é John Robie, um bom vivant e ex-ladrão de jóias, conhecido como “O Gato”, principal suspeito de comandar seguidos assaltos a luxuosos hotéis da Riviera Francesa. Durante a trama, ele se envolve com uma jovem e mimada milionária, interpreta por Grace Kelly.

A revista dizia ainda que Laurival circulava pelos restaurantes e clubes mais sofisticados de São Paulo, a “bordo de uma vistosa Mercedes branca, placa BR-0007”, e que era considerado foragido pela polícia, pois desaparecera de seu escritório na Avenida Faria Lima. No fim da matéria, o autor do texto, não assinado, afirmava que Laurival podia também ser indiciado por bigamia, pois o seu desquite não havia sido homologado e ele havia acabado de se casar, em dezembro do ano anterior, numa cerimônia numa cidade paranaense.

O repórter errara na conta. O bígamo Laurival, na verdade, não estava casado pela segunda vez. E sim pela terceira, com a diferença de que o primeiro matrimônio, registrado em 1973 no 24º Subdistrito de Indianópolis, na capital paulista, havia sido invalidado. O pedido de anulação tinha partido de um emergente político do interior paulista, que tinha estreita ligação familiar com a Opus Dei e que conseguiu fazer o Vaticano se convencer a abrir uma exceção a regras ainda hoje rígidas e cancelar o mais rápido possível o casamento de sua nova namorada, a estonteante Maria Lúcia Guimarães Ribeiro, já chamada nos nobres salões de Pindamonhangaba por “Lu Alckmin”.

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Tom Cardoso, 43 anos, é jornalista. É autor de três biografias, “O Marechal da Vitória” (Editora Girafa), sobre o empresário de comunicações Paulo Machado de Carvalho, “75 kg de Músculos e Fúria” (Editora Planeta), perfil do polêmico jornalista Tarso de Castro, criador de “O Pasquim”, e “Sócrates — A História e as Histórias do Mais Original Jogador do Futebol Brasileiro” (Editora Objetiva), livro que narra a trajetória de um dos maiores ídolos do futebol brasileiro. É também autor do livro-reportagem “O Cofre do Dr. Rui” (Civilização Brasileira), que conta a história do lendário assalto comandado pela VAR-Palmares de Dilma Rousseff no anos 1960, obra que foi uma das vencedores do Prêmio Jabuti 2012 na categoria Reportagem. Em 2013, venceu o Prêmio Abril de Jornalismo, também na categoria reportagem, com a reportagem sobre a espiã do Dops, Maçã Dourada.

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