ATO 3: OLHOS DE COBRA
A DEA fizera de Dr. Neto, em pouco tempo, uma lenda entre os informantes de luxo da América Latina. O ex-advogado, como previra a agência americana, infiltra-se com rapidez no submundo do crime, usando sua extensa rede de contatos para estar sempre um passo a frente da polícia brasileira. Esta cooperava e não reclamava, de olho na partilha feita após as apreensões de cocaína, que se seguiram numa velocidade jamais vista. Logo na primeira delação, Dr. Neto mostrou o cartão de visitas: dois grandes traficantes presos e 1 quilo e meio de cocaína aprendido no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, informação que rendeu ao novo ganso da DEA cerca de 7,5 mil dólares, nada mal para quem estava apenas começando.
Por ironia, a virtude que a DEA enxergava em seu mais arrojado informante no Brasil — a capacidade, por sua formação e origem, de transitar em mundos tão distintos, dos corredores policiais aos palacianos salões da burguesia paulistana — logo se mostraria um problema para os próprios americanos. Eles desconfiavam que Dr. Neto usasse de sua habilidade como agente duplo para aumentar os ganhos, fazendo “bicos” para grandes traficantes e contrabandistas. Quem podia pagar — e bem — não só escapava do flagrante como contava com uma extensa rede de proteção para transportar grandes cargas de drogas e de mercadorias da América do Sul para os Estados Unidos.
Nunca se provou nada contra Dr. Neto, mas, em maio de 1989, a DEA fez uma das maiores apreensões de drogas do ano em Miami: 350 quilos de cocaína vindos da Colômbia. Durante as investigações, um dos traficantes debochou dos agentes americanos: eles precisavam selecionar melhor os seus informantes. A DEA achou melhor não arriscar, mesmo com o invejável e curto histórico de seu melhor homem na América Latina, e anunciou imediatamente que Laurival de Moura Vieira Aquilino Neto não fazia mais parte do quadro de gansos da agência.
Oficialmente, Laurival não era mais uma agente da DEA, o que, na prática, não fazia lá muito diferença. Se ele não podia contar mais com as gordas gratificações pagas em dólares pela agência americana, em troca de informações quentes, que resultavam sempre em vultosas apreensões de drogas, nada impedia que ele pudesse continuar fazendo o que sempre soube fazer com maestria: trabalhar como agente duplo. Os agentes federais americanos não estavam mais na jogada, mas os policiais brasileiros ansiavam pelo retorno de Dr. Neto à praça, já alçado à categoria de mito pelos seus pares após a meteórica e produtiva passagem pela DEA.
A mesma revista Veja que o acusara de gatuno, também lhe imputara outro crime: o de bigamia. Segundo a revista, Laurival casara-se com a decoradora Regina Célia antes que o seu desquite com Lia de Figueiredo Ferraz fosse homologado. Acusação essa que ele, sempre cercado de bons advogados, também conseguiu provar inocência. Laurival não pretendia casar de novo. Jurava para os amigos que, dessa vez, morreria nos braços de Regina Célia. Ele prometera o mesmo para Lia, quando a viu pela primeira vez no pátio do Colégio Koelle.
Fundado em 1883, em Rio Claro, no interior de São Paulo, pelo alemão Theodor Koelle, em princípio para atender os filhos de imigrantes alemães suíços, o Koelle ganhou fama pelo ensino de alta qualidade e por se diferenciar da maioria dos colégios internos, por aceitar a presença de alunos filhos de pais separados, um escândalo até pouco tempo atrás para a moralista e hipócrita sociedade paulista. O Koelle, como toda escola alemã, prezava a disciplina, mas era mais permissiva que os outros colégios internos, permitindo, por exemplo, que meninos e meninas frequentassem o mesmo espaço na hora do intervalo.
Foi no Koelle que Lydia Ferraz decidiu matricular os quatro filhos quando tomou a corajosa decisão de se separar do primeiro marido, o engenheiro e futuro prefeito de São Paulo, José Carlos de Figueiredo Ferraz, rigoroso não só no trato dos recursos públicos. Ferraz jamais permitiu que Lydia trabalhasse fora, apesar da insistência da esposa. Um dia ela se cansou, mandou ele às favas, que retrucou dizendo que Lydia não teria “um tostão” de seu dinheiro para cuidar os filhos.
Lydia foi à luta. Começou revendendo produtos da Avon até se tornar a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Também não deixou de se divertir. Como na época as casas noturnas não permitiam a entrada de mulheres desacompanhadas, Lydia tratou de inventar a sua própria festa, o Baile Maria Cebola, onde se podia entrar sozinha, acompanhada ou na companhia de quem fosse.
Suas transgressões não seriam possíveis se Lydia não contasse com a ajuda do liberal Koelle para educar os seus quatro filhos, barrados em todas as boas escolas da capital paulista. Ela só não esperava que uma de suas filhas, a bela Lia, fosse se envolver com o tipo mais estranho do colégio, um adolescente de 15 anos vindo de Bauru, que ficou apenas seis meses no Koelle, o suficiente para nunca mais ser esquecido pelos meninos e, principalmente, pelas meninas.
O BRIO conseguiu com Gunar Koelle, neto do fundador do colégio, informações sobre a passagem de Dr. Neto pela tradicional instituição do interior paulista, passadas por escrito:
“Encontramos finalmente um Laurival de Moura Vieira Aquilino, que cursou aqui somente o primeiro semestre da terceira série ginasial, em 1965. Os registros indicam muitas faltas em maio e junho, sugerindo que possivelmente andou adoentado nesses meses. Terminou o primeiro semestre com notas baixas, sendo possível que a família tenha decidido mudá-lo de escola para evitar uma reprovação”.
O BRIO também conversou com um contemporâneo de Laurival no Koelle, o hoje marchand Pedro Martins, filho do artista plástico e pintor Aldemir Martins:
“Os meus pais também se separaram na época e eu fui parar no Koelle. Num colégio interno, só os fortes sobrevivem. Sempre tem os que só batem e os que só apanham. Eu ficava no meio termo. Estranho, porque quando o Laurival chegou, o normal era ele ser tratado como calouro por um tempo. Mas de cara ninguém se meteu com ele. Sabe o tipo de cara que quando você passa numa rua à noite, meio deserta, você evita olhar? Ele era assim. Tinha a mesma idade que a gente, mas era o mais alto, o mais forte, o que se vestia de um jeito mais elegante e o que fazia mais sucesso com as mulheres. Um olho meio avermelhado, de cobra. Os meninos morriam de medo. Já as meninas, as que não fugiam, se aproximavam. Ele, que não era bobo nem nada, foi se meter logo com a menina mais bonita do Koelle, filha de um cara importante de São Paulo: a Lia de Figueiredo Ferraz.
Laurival e Lia só se encontrariam anos depois, em São Paulo. Ela, já conhecida como “a filha do ex-prefeito”, e ele como o “galanteador-mor do high-society paulistano”. O destino, ou melhor, a falta de disciplina, havia obrigado os pais de Laurival a matriculá-lo num colégio menos exigente na capital, para que ele passasse de ano e levasse adiante o sonho de virar advogado criminalista.
Foi circulando pelos salões da Hípica Paulista que o futuro ladrão de casaca e de corações alheios se apaixonaria pela primeira e única vez. Maria Lúcia, a “Lu de Pinda”, seria a mulher de sua vida por exatos oito meses.
Leia aqui a última parte desta história.
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Tom Cardoso, 43 anos, é jornalista. É autor de três biografias, “O Marechal da Vitória” (Editora Girafa), sobre o empresário de comunicações Paulo Machado de Carvalho, “75 kg de Músculos e Fúria” (Editora Planeta), perfil do polêmico jornalista Tarso de Castro, criador de “O Pasquim”, e “Sócrates — A História e as Histórias do Mais Original Jogador do Futebol Brasileiro” (Editora Objetiva), livro que narra a trajetória de um dos maiores ídolos do futebol brasileiro. É também autor do livro-reportagem “O Cofre do Dr. Rui” (Civilização Brasileira), que conta a história do lendário assalto comandado pela VAR-Palmares de Dilma Rousseff no anos 1960, obra que foi uma das vencedores do Prêmio Jabuti 2012 na categoria Reportagem. Em 2013, venceu o Prêmio Abril de Jornalismo, também na categoria reportagem, com a reportagem sobre a espiã do Dops, Maçã Dourada.