Duna Capítulo 39: O Mentat

Bruno Birth
brunobirth
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6 min readSep 19, 2020

“Nas profundezas do inconsciente humano, encontra-se uma necessidade difusa de um universo lógico e que faça sentido. Mas o universo real está sempre um passo adiante da lógica.”

O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões e nas de meus amigos Jonathan Thiago e Marcos Carvalho. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO UM.

Há tanto para dizer sobre o excerto da princesa Irulan neste capítulo…
É um excerto que ilustra a mais profunda camada narrativa a fundamentar o mundo futurista de Duna.
Agora que estamos perto do final, vamos relembrar uma passagem lá do começo. Uma frase de Paul Atreides enquanto se preparava para o teste do Gom Jabbar:

“…a consciência animal não vai além do imediato nem penetra a ideia de que suas vítimas podem ser extintas, o animal destrói e não produz… …o ser humano exige uma rede de contextos para enxergar o seu universo…”

O sentido da frase de Paul é o mesmo do excerto de Irulan acima. A mente humana representa uma complexa rede estrutural biológica, diferente da de qualquer outro tipo de animal. Isso, em primeira instância, abre todo um universo de possibilidades, mas, como Irulan fala, também representa um abismo de desespero filosófico existencial para os humanos por conta das necessidades que surgem dessa condição cognitiva diferenciada.
O historiador israelense Yuval Noah Harari explica em seu livro Sapiens que, em algum momento da linha do tempo da escala evolutiva, ocorreu o que ele chama de “revolução cognitiva”, ou seja, um momento (entenda “momento” como um longo período de tempo. Estamos falando de evolucionismo. Nada ocorre do dia para a noite em evolucionismo) em que a formação fisico-química do cérebro do homo sapiens adquiriu camadas complementares à sua estrutura neural em formação, o que foi suficiente para colocá-lo a frente dos outros tipos de seres humanos existentes, como os neandertais, por exemplo. Essa alteração biológica aleatória (atribuição comum da seleção natural) mudou completamente a história da humanidade, a necessidade de uma “rede de contextos para enxergar o universo” que Paul cita havia nascido.
Na ficção científica presente no enredo de Duna (ou ficção filosófica, como o próprio Frank Herbert chegou a declarar uma vez em entrevista) ocorre o que poderíamos chamar de “segunda revolução cognitiva”. Pense nos eventos do Jihad Butleriano e após essa guerra sem precedentes. O fim da utilização de inteligência artificial em prol do supremo resguardo do intelecto humano, da vida humana; bem como o início de uma era de intensos esforços na aquisição de conhecimento visando a mais profunda caracterização das nuances da mente humana. Passadas as tribulações das guerras e se estabelecendo o contexto do mundo de Duna, essa nova concepção social, filosófica e cultural fez surgir uma raça humana evoluída e, assim como os sapiens da primeira revolução cognitiva, baseada em preceitos da alteração cerebral.
Os sapiens se puseram sobre os outros tipos de humanos, logo os outros humanos se tornaram animais. É como a frase principal dita pela Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam a Paul no teste do Gom Jabbar: O teste dirá se tu é um humano ou um animal, ou seja, fisiologicamente Paul era claramente um humano mas qual o nível de aprofundamento de sua mente?

Agora vem o outro lado dessa moeda psíquica. Acima utilizei a palavra “evoluída” para falar tanto dos sapiens da revolução cognitiva, quanto dos sapiens do mundo futurista de Duna. Entenda “evoluído” no sentido mais etimológico possível da palavra, que quer dizer “transformado”, “mudado”, ou seja, não necessariamente quer dizer “para melhor”. A mente humana é capaz de criar complexas estruturas de pensamentos e reflexões e, a partir delas (sendo empíricas ou não), fundamentar seu modo de vida enquanto sociedades e estabelecer civilizações baseadas em extensas classificações tradicionais. Assim se traduz o conceito de “verdade” na humanidade. Mais uma vez, não precisando de empirismo (prova real) para tal em muitos aspectos.
Mas por quê os humanos podem estabelecer e aceitar diversos níveis de contextos sem a necessidade de empirismo? Como a princesa Irulan diz, “a necessidade difusa de um universo lógico e que faça sentido”. A ânsia por respostas sempre fez parte do ser humano, o que o fez, na maioria das vezes, ao longo da história da humanidade, aceitar a resposta errada, em vez de assumir momentânea ignorância. Isso se reflete em muitas das tradições que até hoje governam o mundo e muito tem a dizer, por exemplo, sobre como o ser humano interpreta o tempo, o destino e o acaso, como já esmiuçamos na análise do profundo capitulo 22 (leia AQUI).
Como a princesa Irulan diz, “o universo real está sempre um passo adiante da lógica”. Pois é, mas em que se baseia a lógica humana, ao longo de seus 200 mil anos de história? Enquanto o ser humano não aceitar a condição aleatória de sua existência cósmica e continuar buscando subverter a natureza atrás da inalcançável imortalidade (utilizando as incongruentes ferramentas do destino para tal), sofreremos como humanidade.

Vamos aos desdobramentos práticos deste capítulo. O foco é uma reunião entre o barão Vladimir Harkonnen e seu mentat, Thufir Hawat. O homem de confiança do falecido duque Leto domina o capítulo com suas análises lógicas e dolorosa condição de sobrevivência, por ele expressada em seus pensamentos de repulsa e desejo de vingança contra o barão. A capacidade de se readaptar e sobreviver inteligentemente de Thufir Hawat é notável e até mesmo comparável à de lady Jessica entre os fremen.
Algumas revelações bem importantes surgem dessa reunião de relatório. Thufir revela que o imperador padixá se virou contra os Atreides (arquitetando com os Harkonnen o plano do Caso Arrakis) pois descobriu que o duque Leto estava utlizando seus guerreiros de imensa perícia (Gurney Halleck e Duncan Idaho) para construir um exército de grande força, o que o imperador julgou ameaçar o seu poder. Isso segue aquela nossa ideia sobre o mais profundo anseio de padixá em destruir com o Landsraad, casa por casa, de modo sistemático, na primeira oportunidade que tiver. O argumento de “proteção contra uma ameaça militar”, aliado a uma contagem absurda de subornos, foi suficiente para o imperador conseguir se livrar dos Atreides sem represálias até o momento. Contudo, Hawat não deixa de avisar ao barão que não deslize, caso não queira dar motivos de ataque ao imperador.
Outra revelação importante gira em torno dos fremen. Pelas lentes de Jessica no ritual já havíamos visto parte da trajetória interplanetária dos antepassados dos fremen, que inclusive foram cativos em Salusa Secundus, o planeta prisão do imperador, onde são treinadas as ordens militares dos ferozes Sardaukar. Neste capítulo, Hawat se pergunta se havia nativos em Salusa Secundus antes dos Sardaukar e questiona de onde vem a Casa Corrino (família do imperador padixá). Essa parte é estranha e fica sem resposta no momento. Bom, já confirmamos nossas teorias básicas sobre a história dos fremen mas o ritual de Jessica e o questionamento de Hawat criam uma conexão entre os fremen e a família do imperador. Será?
Vamos a mais um aspecto importante dessa reunião. Hawat revela que acredita que os fremen representam uma imensa parcela da população de Arrakis e são subestimados por todos, sendo que possuem força militar capaz de enfrentar o imperador, se forem organizados. As análises de Hawat são precisas ao trazer os dados de baixas dos soldados Harkonnen contra as baixas de fremen ao longo do pogrom lançado pelo barão para exterminar os nativos de Arrakis.
O barão permanece descrente mas aceita os conselhos de Hawat para cessar a opressão aos fremen a fim de começar a alistá-los para seu exército. É óbvio que já sabemos muito bem que Hawat e o barão chegaram muito tarde nessa missão. Suspeitamos que Muad’Dib a esta altura já deve estar sob pleno controle dos fremen, sendo que nenhum dos nativos se converterá aos valores Harkonnen. Hawat chega a citar que há um novo líder religioso entre os fremen, algo que o barão ridiculariza ao dizer “deixe-os com sua religião”. Na verdade, a opressão dos Harkonnen em muito pode ter ajudado na união dos fremen em torno do ideal messiânico de Muad’Dib. Como próprio Hawat reflete, “é sabido que uma religião cresce sob repressão”. O mentat chega a suspeitar que deve haver espiões imperiais espalhados pelo planeta Duna.

Por fim, vem uma suspeita final de Hawat, que é muito boa. Nos é revelado que o mentat mantém contato com Halleck, que está entre contrabandista, sendo Halleck inclusive a fonte das vagas informações sobre o novo líder religioso dos fremen. Halleck chegou a revelar que os modos de luta dos fremen mudaram, o que faz Hwat suspeitar que isso seja obra do próprio Gurney ou mesmo de Duncan Idaho, partindo do princípio de que o guerreiro tenha sobrevivido de alguma forma ao ataque Harkonnen ao esconderijo de Liet, quando Paul e Jessica fugiram às pressas.
Bom, dois anos se passaram. É conclusivo teorizar que Idaho não só sobreviveu como já está com Paul Muad’Dib, de fato treinando ativamente o exército do Messias de Duna. O jeito é esperar para ver.

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Bruno Birth
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