Duna Capítulo 45: O Essencialismo e o Construtivismo do Kwisatz Haderach

Bruno Birth
brunobirth
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9 min readOct 1, 2020

“E aconteceu, no terceiro ano da Guerra do Deserto, que Paul Muad’Dib estivesse deitado, sozinho, na Caverna dos Pássaros, sob as cortinas do kiswa de uma alcova. E estava como morto, enredado na revelação da Água da Vida, e seu ser era transportado para além das fronteiras do tempo pelo veneno que concedia a vida. E assim cumpriu-se a profecia de que a Lisan Al-Gaib poderia estar, ao mesmo tempo, viva e morta.”

O artigo a seguir se baseia em minhas reflexões e nas de meus amigos Jonathan Thiago e Marcos Carvalho. CONTÉM SPOILERS DO LIVRO UM.

Paul está deitado, quase morto após tomar a Água da Vida em segredo. Se tratava do teste de Kwisatz Haderach. Não é preciso mais detalhes narrativos, vamos para as reflexões acerca de tais circunstâncias.

O Kwisatz Haderach é uma lenda Bene Gesserit sobre um possível homem que, sob os rituais da irmandade (que envolvem a ingestão de um líquido composto a base de especiaria) conseguiria enxergar as vertentes do passado sob as óticas feminina e masculina, além de enxergar com clareza os contextos do presente e projetar a mente para prognósticos que beiram a previsão, de tão detalhados. A Irmandade Bene Gesserit é formada só por mulheres pois nunca um homem sobreviveu aos rituais. Até então a Água da Vida, em seu estado de pureza, se mostrou um líquido extremamente nocivo ao organismo e estrutura cerebral masculina.
A especiaria mélange é uma droga psicotrópica, ou seja, uma substância que atua diretamente no sistema nervoso central, causando alterações variadas no organismo do indivíduo enquanto em efeito, além de influenciar na percepção cognitiva da realidade, com projeção de imagens de memórias e imaginações futuras, distorção dos pontos de referência espaciais, entre outros efeitos. Já falei sobre a relação de Frank Herbert em sua vida pessoal com substâncias psicotrópicas e como isso impactou na obra Duna como um todo (leia mais AQUI) mas é muito importante voltar a ressaltar isso aqui pois os efeitos alucinógenos da especiaria tomam papel de suma importância dentro da narrativa de Duna. O contato das personagens com a especiaria faz parte da construção científica e filosófica de Duna e o leitor, entendendo isso, visualiza as passagens em que descrições desse tipo ocorrem no livro com mais abrangência.

As habilidades psíquicas das Bene Gesserit e dos Mentat são resultado da cultura de aprofundamento nas capacidades cerebrais humanas que existe no mundo de Duna. Absolutamente todas as atribuições psíquicas de Paul e Jessica, descritas por Frank Herbert, nós possuímos na vida real, contudo, a escala do contexto futurista de Duna proporciona uma maior profundidade no entendimento da mente humana e nas possibilidades que tal entendimento ocasiona. Mais detalhes sobre isso na análise do capítulo 22 (leia AQUI).
Neste capítulo, como parte do que já falamos sobre novas descrições das habilidades de Paul, temos um novo despertar de Muad’Dib, causado pelo consumo da Água da Vida. Então os conceitos filosóficos científicos que Frank Hebert desenvolveu durante todo o livro ganham maior ilustração.

Como disse Einstein uma vez:

“Tudo aquilo que o homem ignora, não existe para ele. Por isso o universo de cada indivíduo se resume no tamanho de seu saber.”

Somos o que somos, cada um de nós, graças as nossas memórias. Uma pessoa acometida por Alzheimer perde sua essência individual por conta da perda de memórias que a doença degenerativa causa.
Entenda “memória” como um termo que engloba todos os conhecimentos de aprendizagem que adquirimos ao longo da vida, todos os ensinamentos de moral e ética que para nós são passados e absorvemos no ambiente escolar e no ambiente doméstico, bem como todas as experiências que vivenciamos na prática físico-mental e guardamos em nossos subconscientes e inconscientes. Tudo isso diz o que você é; seu caráter, sua personalidade, sua inteligência, sua sabedoria, tudo isso pode ser, em determinado nível, induzido, cultivado. Desenvolverei mais adiante porquê digo “em determinado nível”.
Nossas estruturas cognitivas são capazes até de criar memórias de experiências que não tivemos em nosso tempo de vida. A esse tipo de memória tomo a liberdade de chamar “memória imaginativa”. Um exemplo disso? Todos nós, cada um a sua maneira, consegue projetar imagens mentais de como era o Egito Antigo. E quanto maior e mais aprofundada for a carga de conhecimento absorvida por um indivíduo sobre o Egito Antigo, mais detalhadas são as memórias imaginativas desse indivíduo.
Por quê estou falando disso? Porque a mente de Paul Atreides, o “Kwisatz Haderach”, trilha as esferas do passado. Um passado muito mais anterior do que o de seu próprio nascimento. Os motivos disso são a vasta e densa gama de memórias do garoto MAIS os treinamentos de Bene Gesserit e Mentat passados por Jessica (que o possibilitaram obter maior atividade cerebral) MAIS os efeitos psicotrópicos da Água da Vida.

Certo. Vamos dar mais um passo. O Kwisatz Haderach enxerga as vertentes do espaço e tempo pela ótica masculina e feminina, sendo que as irmãs só conseguem enxergar as linhas do passado pela lente feminina. Como Paul faz isso?
Frank Herbert trabalha em Duna com o conceito de “memória ancestral”. O que é isso? É a ideia de influência biológica na antropologia, ou seja, a análise de como se deu a história da humanidade a partir do estudo da biologia humana.
O historiador israelense Yuval Noah Harari desenvolve este conceito em seu livro Sapiens- Uma Breve História da Humanidade, onde mostra como, na era humana tribal, a transmissão genética de alguns traços comportamentais absorvidos em contextos construtivistas sociais específicos da época puderam resultar em contextos culturais e sociais posteriores.
Deixe-me detalhar um pouco mais. Pense que no passado, no contexto tribal, se criaram convenções sociais que foram absorvidas de maneiras diferentes pelos cérebros de homens e mulheres. Tome como “absorção” respostas emocionais, humor e etc. A imposição construtivista da força masculina sobre a feminina, por exemplo, foi absorvida pelas mentes de homens e mulheres tribais de maneira completamente diferente. As reações emocionais do machismo tribal se traduziram em interpretações específicas das mentes de homens e mulheres daquela época e resultaram em traços de comportamento diferentes para homens e mulheres. Tais traços de comportamento, segundo essa teoria científica, acabaram passando para frente nos genes dos humanos posteriores, ajudando a estabelecer o patriarcado.
Voltando a Duna, veja o que Paul fala neste capítulo:

“Há, em cada um de nós, uma força ancestral que tira e uma força ancestral que dá. Um homem não vê dificuldade em confrontar aquele lugar dentro de si mesmo onde vive a força que tira, mas, para ele, é quase impossível enxergar a força que dá sem se transformar em algo diferente de um homem. Para uma mulher, é a situação contrária.”

Muad’Dib está falando exatamente do machismo ao longo da história da humanidade, sob a ótica da transmissão genética de traços de comportamento. O homem é acostumado a tirar, ser belicoso, brutal, imperativo. A mulher é acostumada a dar, ser mais racional, amável, empática, comedida.
Vamos uma vez mais para o passado. No episódio 2 da primeira temporada da série documentário científica Cosmos, o astrofísico Neil deGrasse Tyson explica como funciona a transmissão de genes dentro da estrutura da seleção natural, usando os lobos como exemplo. Determinados tipos de lobos possuíam, por conta do grau essencial de aleatoriedade do evolucionismo, menor concentração de adrenalina no cérebro do que outros tipos de lobos que, por consequência, eram mais agressivos. Os lobos menos violentos conseguiam se aproximar com mais facilidade dos humanos caçadores coletores e assim ganhavam restos de comida, se alimentando com maior regularidade do que os lobos irascíveis. Se alimentando mais, esses lobos se reproduziam mais, sendo que os lobos posteriores aos desse tipo se tornavam cada vez mais dóceis, próximos aos humanos (e pelos humanos domesticados), por terem herdado os traços genéticos da diminuída adrenalina cerebral de seus antepassados. Se trata de uma memória ancestral que, após milhares de anos fez surgir o que conhecemos hoje como cachorros. No que concerne aos humanos e ao livro de Yuval Noah Harari, o construtivismo das convenções sociais do passado gerou certo impacto no essencialismo biológico humano, fazendo com que traços de comportamento passassem adiante nos genes, criando toda uma cadeia de acontecimentos históricos coletivistas a partir disso. Imperialismo, monarquia, dinheiro, capitalismo, socialismo, religião, machismo, escravidão, homofobia, e tantos outros conceitos, tudo advém dessa relação de intromissão do construtivismo no essencialismo. Ideias estabelecidas como verdade que perduram por longos períodos da história, mas acabam, de tempos em tempos, revisadas quando surgem momentos de ruptura social causados pela aquisição ininterrupta de conhecimento, que proporciona novas e maiores compreensões da natureza por parte dos humanos e torna várias tradições obsoletas.
As pessoas costumam separar o contexto social do contexto da natureza científica em suas reflexões sob a ideia dualista de “ciências humanas” e “ciências da natureza”. Mas na verdade é tudo parte de uma mesma esfera de existência caótica. O construtivismo impacta no essencialismo, que por sua vez dá vida a novos construtivismos.
Esta série de reflexões expostas acima são utilizadas por Yuval Noah Harari para dar vida ao conceito de “ficção cognitiva”, ou seja, as convenções sociais que se criam e são passadas adiante para alimentar estruturas de tradições. Lembrem-se do que já falamos no capítulo 22 de Duna, sobre como a busca do ser humano em elevar o valor existencial de sua espécie joga a humanidade em uma busca incansável de cumprimento de um suposto destino. É o mesmo princípio.

Certo, já falei sobre a memória ancestral e sobre as habilidades psíquicas temporais de Paul como Kwisatz Haderach, mas ainda não respondi porque ele consegue enxergar o passado, além da ótica masculina, também pela vertente feminina. Paul consegue isso por empatia induzida. Como isso?
No começo do livro, demoramos seis capítulos para conhecermos o duque Leto Atreides. A primeira instância, isso pode parecer uma escolha poética de Frank Herbert mas na verdade tem um significado a mais. A ausência do duque Leto no início da história representa um estado comum ao cotidiano da família Atreides. O duque Leto governava Caladan, um feudo que tomava todo o planeta. Assim sendo, Leto vivia viajando, estando em casa em momentos pontuais, para logo após ser novamente convocado por suas obrigações. Isso gerou uma consequência na vida de Paul Atreides: o contato do garoto com a mãe se tornou muito, mas muito superior ao contato com o pai.
Podemos chamar Leto de pai ausente? Não acho que seja o caso. Enquanto presente, Leto exerceu seu papel de figura inspiradora e de segurança para Paul, só que naturalmente a influência de Jessica foi cada vez mais se fazendo a mais importante na vida de Paul. E vemos isso durante todo o livro. Dessa forma, uma empatia pela figura feminina e materna de Jessica foi aos poucos sendo induzida na mente trabalhada e construída de Paul.
Muad’Dib possui uma consciência híbrida entre homem e mulher? Sinceramente não posso afirmar que seja o caso, mas é inegável que a mente de Paul, por conta da relação diferenciada que nutriu com sua mãe, possui sim um certo nível de feminilidade na hora de enxergar as vertentes do tempo e do espaço e interpretar todos os conhecimentos que possui. Feminilidade essa alimentada por empatia. Assim, quando chegou a hora do teste do Kwisatz Haderach, as linhas do passado se abriram em todos os aspectos para Paul Muad’Dib.
Por quê Paul sobreviveu ao teste? Vale lembrar que o organismo de Paul estava, de certa forma, treinado para receber a Água da Vida, após o ritual no qual Jessica se fez Reverenda Madre dos fremen.

Na parte final do capítulo Paul revela a Jessica que já sabe que os céus fora da atmosfera de Arrakis estão tomados por naves das grandes casas do Landsraad, exércitos do barão Vladimir Harkonnen, exércitos de Sardaukar e o próprio imperador padixá Shaddam IV.
Lembre-se da frase de Einstein que citei acima. Conheça bem o mundo onde tu pisas, conheça bem as pessoas que povoam este mundo e a ti será possibilitada a ação de projetar o que pode acontecer com clareza. É exatamente nessa posição que se encontra Paul Muad’Dib, após quase três anos de Guerra do Deserto em Arrakis.
Não se trata de um poder mágico, o mundo compreendido pela mente de um indivíduo pode ser do tamanho de um bairro, como também pode ser do tamanho de mil galáxias. A mente humana pode viajar dez mil anos no passado e um milhão no futuro.
Parafraseando meu amigo Marcos Carvalho:

“O mundo de Duna não se baseia em magia. Também não se baseia em tecnologia. O mundo de Duna se baseia na natureza.”

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