O mito da meritocracia

Será mesmo que nunca foi sorte?

Samantha Schreiber
Burnoutizadas
4 min readJun 15, 2021

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Foto: Tuca Vieira/Reprodução

Toda vez que vejo alguém comemorando uma conquista com o discurso de que “nunca foi sorte”, meus olhos reviram automaticamente. Não é uma questão de diminuir esforço alheio, pelo contrário. É sobre enxergar o contexto e entender que nem só de esforço individual — na verdade, muito pouco — se “vence na vida” na sociedade neoliberal.

Apesar do constante crescimento das afirmações sobre a relação entre esforço individual, mérito e sucesso, os números mostram que a mobilidade social (movimento de mudar de classe social) não acompanha essa tendência. Será que está faltando trabalho duro nessa história?

Meritocracia e desigualdade

A meritocracia é entendida como um sistema de hierarquização social baseado nos méritos pessoais de cada indivíduo, no qual se pressupõe que a ascensão é consequência única e exclusiva do seu esforço e dedicação. Essa crença desconsidera, por exemplo, o lugar social de partida ou o acesso às oportunidades e coloca tudo na conta do indivíduo.

Um bom exemplo de como esse pensamento está enraizado é um estudo de 2019 intitulado “O paradoxo da desigualdade: desigualdade de renda e crença na meritocracia andam de mãos dadas”. No artigo, o professor inglês Jonathan Mijs apontou que os cidadãos de países mais desiguais são menos preocupados com a desigualdade do que em países mais igualitários. Para o autor, isso se explica a partir da convicção de que o sucesso social é fruto de um processo meritocrático e que essa diferença de renda foi merecidamente conquistada por quem está no topo.

No livro “Capital e Ideologia”, o economista francês Thomas Piketty argumenta que esse discurso serve como um pilar importante para justificar a desigualdade. Para o autor, a ideia da meritocracia serve para que os “vencedores” justifiquem a desigualdade culpabilizando os “perdedores” pelo próprio fracasso, como uma questão que depende unicamente do esforço individual.

“Sob os adornos do ‘mérito’ e dos ‘dons’ pessoais, os privilégios sociais se perpetuam, pois as classes desfavorecidas não dispõem dos códigos e das chaves pelas quais o reconhecimento atua”, afirma Piketty ao argumentar que esse discurso ganha força à medida que as elites não conseguem mais justificar seu poder econômico se baseando apenas em renda ou origem do patrimônio familiar.

Em termos de mobilidade social, um outro estudo de 2018 realizado pela OECD mostrou que o Brasil fica em segundo lugar com a pior taxa entre os países analisados, perdendo apenas para a Colômbia. Por aqui, seriam necessárias em média nove gerações para que uma criança nascida em família de baixa renda alcançasse a renda média do país. Nove gerações para chegar na média.

Fonte: OECD

Esse mesmo estudo mostra, basicamente, que quem nasce em família pobre, continua pobre, já que o acesso à saúde, educação e desenvolvimento profissional para as capacidades mais valorizadas atualmente — fatores determinantes para “subir” na vida — é prejudicado desde o início da vida.

Quem ganha e quem perde na corrida pelo sucesso

Se partimos do pressuposto de que tudo é uma questão de esforço individual e desconsideramos que a desigualdade de renda está diretamente ligada com a desigualdade de oportunidades, cada pessoa — e somente ela — será totalmente responsável pelo seu sucesso ou fracasso.

Isso cria uma corrida desenfreada para alcançar o inalcançável, numa ilusão de que tudo aquilo que não foi conquistado ou reconhecido é resultado de um esforço insuficiente. E lá vamos nós trabalhar enquanto eles dormem, estudar enquanto eles se divertem, entregar mais do que conseguimos, adoecer num ritmo de trabalho patológico.

Uma grande romantização recai sobre a sobrecarga, sobre o cansaço, sobre a produtividade sem fim. Se você não está exausto, não está fazendo o suficiente. Se você tem tempo livre, deve monetizar seus hobbies. Só não vale parar de produzir.

No fim, quem realmente sai ganhando com isso? Com certeza, não é o trabalhador que, como um hamster que corre em uma roda, não sai do lugar.

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Samantha Schreiber
Burnoutizadas

Jornalista, entusiasta da linguística e sócia da VOZ Colab. Curiosidade, criatividade, colaboração e movimento 🎈