O que uma lâmpada acesa por quase 120 anos tem a nos ensinar?

Gustavo Nobre
Business Drops
Published in
4 min readDec 14, 2020
https://www.centennialbulb.org/index.htm

Em algum dia de junho de 1901, na cidade de Livermore, na Califórnia, uma lâmpada incandescente foi despretensiosamente instalada no corpo de bombeiros para prover iluminação 24 horas por dia em uma determinada área da estação. O que eles não sabiam é que essa pequena lâmpada de 4w ainda estaria acesa no adentrar da 3ª década do século 21. Hoje, o artefato é objeto de visitação de turistas de todo mundo, entrou para o Livro dos Recordes — Guinness, possui seu próprio documentário e até um website, onde as pessoas podem acompanhar sua “performance” ao vivo.

Cerca de vinte anos depois, na década de 1920, um grupo formado por empresas fabricantes de lâmpadas incandescentes estabeleceu que, para que seus negócios prosperassem, a durabilidade de suas lâmpadas não poderia ser superior a 1.000 horas, apesar de já existir na época tecnologia para produção em massa de lâmpadas com 100.000 horas de vida útil. Formava-se o primeiro cartel mundial que se tem conhecimento, juntamente com um dos primeiros casos documentados de obsolescência programada. Basicamente, o raciocínio era simples: quanto maior a durabilidade das lâmpadas, menores seriam as vendas. E se todos operassem com o mesmo nível (baixo) de vida útil para suas lâmpadas, todos os participantes do cartel ganhariam muito dinheiro. Evidentemente, o grupo foi descoberto e respondeu por seus atos. Infelizmente, quase 100 anos depois, situações parecidas como essa (veja esse exemplo) continuam sendo testemunhadas — e , felizmente, descobertas. Casos como esse motivaram a realização do documentário “The Light Bulb Conspiracy”.

Práticas desta natureza, além de ilegais e de lesarem os consumidores, geram significativos impactos negativos ao meio ambiente, seja pela maior necessidade de extração de matérias primas da natureza, seja pelos descartes de lixo. Comparando com os casos extremos relatados, ao completar 1 milhão de horas de vida útil (marco atingido em 2015) a lâmpada de Livermore, sozinha, iluminou o equivalente a 1.000 lâmpadas comuns, todas descartadas no meio ambiente.

Fica o dilema: é possível prosperar economicamente fabricando e vendendo produtos de baixa necessidade de manutenção e altíssima durabilidade, tais como lâmpadas? A resposta está relacionada ao modelo de negócios. Nos modelos comerciais tradicionais, vigentes desde a Revolução Industrial, um fabricante (ou um grupo) produz os artefatos e os vende dentro de uma cadeia de suprimentos composta por distribuidores, revendedores, até chegar ao comprador / consumidor final, que usa o produto e descarta o que sobra dele (a começar pela embalagem) ao final de sua vida útil, em um modelo totalmente linear de extração-produção-consumo-descarte. Ao precisar de um novo produto, o consumidor faz uso desta cadeia em um ciclo constante. Como o produto pertence ao consumidor, ele é o maior interessado na preservação e extensão de sua vida útil, enquanto o interesse do fabricante está voltado para sua estratégia competitiva junto aos seus concorrentes. Ou seja, se a vida útil do produto não fizer parte desta estratégia, isso não será necessariamente uma preocupação da empresa (vide a história do cartel da década de 1920).

E se houvesse uma forma de tornar o fabricante o ator legitimamente mais preocupado e interessado na durabilidade dos seus produtos, ou seja, quanto maior a vida útil, mais atrativo para a empresa? Com o modelo negócios tradicional isso é muito difícil. Mas, e se transformarmos esses produtos em serviços? Algo mudaria? Vamos imaginar um cenário com o nosso exemplo das lâmpadas…

A empresa fictícia “ACME” fabrica lâmpadas, mas não as vende. Ela permanece como proprietária do produto e o oferece para o consumidor na forma de serviço (semelhante a um leasing). O consumidor, por sua vez, paga uma mensalidade justa para o fabricante para fazer uso desse “serviço de iluminação”. De tempos em tempos, esse fabricante visita os consumidores e realiza a substituição das lâmpadas, sem custo adicional para o consumidor. Quanto maior a durabilidade das lâmpadas, melhor para o fabricante (menor necessidade de visitas pra substituição, menor necessidade de fabricação de lâmpadas novas). A quantidade de lixo descartado no meio ambiente será reduzida de forma expressiva e o consumidor também ficará satisfeito. O desafio ficaria por conta da avaliação dos segmentos de mercado a serem vislumbrados e no estabelecimento de preços que sejam atrativos para todos os envolvidos.

Essa modalidade de negócios, que também já está sendo chamada de servitização, pode ser observada de forma bem sucedida em diversos segmentos: bicicletas compartilhadas, serviços de streaming, transportes alternativos aos taxis e computação na nuvem são alguns exemplos clássicos. O modelo já chegou a outros produtos, tais como máquinas de lavar e, quem diria, lâmpadas!

Não se sabe exatamente se a preocupação ambiental foi um dos motivadores iniciais para o surgimento desse modelo, mas não há dúvidas que ele contribui de forma significativa para iniciativas voltadas para Economia Circular, que visa a eliminação da geração de resíduos no meio ambiente.

Cabe a nós exercermos nosso papel de sermos seletivos e vigilantes quanto ao nosso comportamento enquanto consumidores, e sempre questionar até que ponto a aquisição e posse de um determinado produto é realmente necessária — ou se podemos simplesmente fazer uso dele.

E agradecer à lâmpada de Livermore por iluminar e inspirar novos modelos de negócio, e permitir essas reflexões!

Gustavo Nobre é professor do curso “Economia Circular: Desvendando Conceitos e Práticas” do Alumni Coppead. Saiba mais sobre o curso aqui.

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Gustavo Nobre
Business Drops

Consultor Empresarial e Gestor de Projetos há mais de 25 anos, Professor na Área de Administração, Mestre e Doutor pelo Coppead/UFRJ