MUSICARALHO: Book of Ryan (2018) — Royce da 5’9"

Vinícius Silveira
Caralho à 4
Published in
13 min readJul 26, 2020

Salve cuzões, ViNiZiNho aqui pra mais um Musicaralho.

Seguindo a trama que comecei a contar desde o meu último texto, hoje venho um pouco atrasado, mas com boas intenções, resenhar/analisar/deturpar um grande álbum de um dos maiores da história do Hip-Hop: Royce da 5'9". O álbum da vez é Book of Ryan, lançado em 2018 e produzido executivamente pelo próprio rapper e pelo seu colega de longa data e ex-D12, dEnAun (Denaun Porter).

Eu não sou straight, mas aqui é só straight hip-hop. Vamo que vamo.

Book of Ryan (2018)

Para quem não flagrou o meu último texto, o Royce é um dos meus MCs favoritos e pensei que não há nada mais justo do que falar sobre ele no meu segundo texto, então comecei a escrever sobre seu lançamento de 2020, The Allegory. Porém, revisitando o Book of Ryan enquanto escrevia para refletir sobre as mudanças de um para o outro, surgiu então uma vontade inevitável de escrever sobre esse disco, porque é tão importante pra história do MC e em um plano maior, pra própria cena musical. É minha obrigação moral e ética espalhar a palavra de Royce após ouvir essa obra de arte que muita gente dormiu e não deu a atenção necessária!

Mas firsts things first. Ryan Daniel Montgomery, ou Royce da 5'9", é um MC de Detroit, hoje tem 43 anos e tem um extenso currículo na história do hip-hop. Royce é um dos maiores nomes do underground, mas atingiu status de campeão ao ser ghostwriter de grandes nomes do rap como Dr. Dre e Diddy já aos 19 anos!! Desde 1997 mantém uma relação de amizade e parceria musical com o meu chapa Eminem, onde os dois compõem a dupla Bad Meets Evil, que rendeu uma parceria no som Bad Meets Evil do “Slim Shady LP” (1999)e o disco “Hell: The Sequel” de 2011. Multifacetado como só ele, Royce também faz parte do supergrupo de rap Slaughterhouse, junto de Joe Budden, Joell Ortiz e KXNG Crooked. Como se não bastasse compor uma dupla com um dos maiores MCs de todos os tempos, o rapper ainda compõe o duo PRhyme com um dos maiores DJs do hip-hop, DJ Premiere. Ainda em 2015 o super duo lançou um álbum auto-intitulado que é simplesmente um dos melhores da década, sem mais.

Ainda que não tão reconhecido publicamente e visto muitas vezes sob a sombra de Eminem e de DJ Premiere, suas referências são o suficiente para colocar qualquer um no patamar de GOAT (Greatest of All Time). Ainda assim, Royce agrega a esse currículo singular uma história de vida fodida e uma sensibilidade única para lidar com as questões sociais, pessoais e sentimentais com as quais se deparou em toda sua trajetória. Junte tudo isso em uma produção e você tem um dos melhores álbuns da década: Book of Ryan.

Lançado dois meses após “PRhyme 2”, a segunda colaboração entre Royce e Premiere, Book of Ryan (BoR) é o sétimo álbum de estúdio de 5’9", tem 20 músicas, feats com grandes nomes da cena como Eminem, J. Cole, Logic, Pusha T, Jadakiss, T-Pain e teve sua produção iniciada em 2016 logo após o lançamento de seu sexto álbum, “Layers”. Recebido positivamente pela crítica, o último disco do rapper é importante para pensar esse aqui. Royce que sempre foi um grande storyteller, adota em “Layers” um estilo mais introspectivo, refletindo sobre suas diversas camadas (layers), sobre sua própria persona no rap e, principalmente, fora dele. Em BoR encontramos Royce aprofundando essa reflexão pessoal e colocando-a como narrativa através da forma de um livro, uma autobiografia, que conta sua história de vida através de memórias.

Nesse sentido, o rapper declara que este disco é sua obra prima:

“Book of Ryan is my greatest piece of work. I put everything I had into this album (spiritually, mentally, physically, and financially) and am excited to finally share it with the world. I hope you enjoy.”

E ele não mentiu.

Na Intro já percebemos uma coisa fundamental para entender esse disco, que é a importância das skits e dos interlúdios para a construção da narrativa. Por isso, não pulem nenhum! Aqui ele começa refletindo sobre estar em seu “prime” ou sua melhor forma. Contradizendo uma entrevista de 2014 onde dizia que seu prime era uma forma permanente, agora ele coloca como algo que pode mudar de acordo com o tempo. Mais auto-consciente do que nunca, Royce também reflete sobre seu antigo alcoolismo e como isso o afetava:

I woke up this morning and decided I don’t expect for you to understand my shit, if you’re not hip-hop
I woke up this morning with a clear conscience and a clear mind
I slept well last night and now that I think about it
Man, I’m just thankful to God that I even woke up this morning
With all the shit that I’ve been through in my life, I’m just thankful to God that I even woke up this morning

Seguindo a linha da Intro onde ele agradece por acordar, a segunda faixa é Woke, onde o rapper faz uma conexão entre acordar pela manhã e estar “woke”, que é como os estado-unidenses denominam “acordar” e perceber de forma crítica a sociedade em que vivem. O som produzido pelo KeY Wane (Beyoncé, Big Sean, Drake, Cardi B…) é influenciado pelo trap e pesado como deve ser. O sample “Woke Up This Morning” ficou incrível para caralho, a letra, entretanto, não fala muito, até porque o som é um dos mais curtos do álbum. O flow está no ponto, uma delicinha.

My Parallel é a primeira skit do álbum e parece demonstrar a abertura figurativa do Book of Ryan, dando seguimento a narrativa das tracks anteriores. Aqui ele fala sobre alguns tópicos importantes para entender o álbum: suas memórias de infância, suas cicatrizes e tristezas e o efeito dessas em sua saúde mental, especialmente enquanto homem negro na atualidade. (Aqui Royce entende que a psicologia e a psiquiatria são campos do conhecimento extremamente embranquecidos. Segue artigo sobre.)

The Book of Ryan
The untold tale of scandal
All my bars of madness
That are inspired by my childhood, scars and sadness
Every black man must fend for himself
Where we value physical much more than we do our mental health

A quarta track do álbum é também faixa mais estourada do disco. Num boombap produzido pelo S1 (Eminem, Kanye West, Logic…) Caterpillar reúne dois dos maiores MCs da atualidade, mestres na lírica que se unem aqui para dizerem que nunca devem ser desrespeitados por outros rappers mais novos, especialmente os “mumble rappers” (os trapstars), que Eminem ataca com eficácia em seu verso. Nesse sentido, as “caterpillars” seriam uma analogia a Royce e Em e as “butterflies” aos novos rappers. O som, apesar dos ataques, na minha opinião é super coerente com o que Em e Royce sempre colocam em seus versos ao fazer referência, ou reverência, àqueles que vieram antes e pavimentaram o caminho onde eles hoje passam. Hip-hop é sobre respeito e é isso que a dupla exige aqui. Esse é também o mesmo tema da faixa “Not Alike”, outra colaboração dos dois rappers no disco “Kamikaze” (2018) do Eminem

Ainda aqui, destaque para essas linhas de Royce: You number one when it come to slaughtering mics/I’m tryna be number one in my son and daughter life. Apesar de ter outras linhas que contradizem um pouco isso e soam apenas como flexing, esse disco é sobre isso. Sobre um rapper no auge dos seus 40 anos e que agora tem outras preocupações na vida que não se destruir em vícios, como o mesmo já fez no passado, não tendo saída a não ser se voltar para si mesmo. E o mesmo exige respeito.(Nota: esse me parece também uma versão mais madura e consciente do processo de auto-reconhecimento que o próprio Eminem também passou nos seus 40 anos.)

The boom bap is coming back with an axe to mumble rap
Lumberjack with a hacksaw

Além de Caterpillar, temos outras 4 grandes faixas com colaborações nesse disco. Dumb com a participação de Boogie, rapper de Compton assinado pela Shady Records em 2017, é um boombap que relembra o gangsta rap da West Coast e sampleia a clássica Still Dre, de Dr. Dre em colaboração com Snopp Dogg. Grande verso e refrão do Boogie.

Boblo Boat é o single principal do disco e conta com a participação de ninguém mais, ninguém menos que J. Cole. Produzido pelo 808-Ray e Cool N Dre (Fat Joe, DJ Khaled…) o beat cheio de alma tem uma pegada de jazz, daquele perfeito pra ficar chill e quem sabe usar uma substância ilegal. A faixa conta as memórias de infância de Royce ao viajar em família para uma espécie de ilha e parque de diversões chamada de Boblo, apenas acessível através dos “Boblo Boats”. Som simplesmente foda, novamente dois dos maiores liricistas de nossa época. Não que faça muita diferença, mas Cole levou a melhor.

5'9" narra a felicidade, mas também os perigos que envolviam a viagem, entre eles a exposição às drogas:

Pop told stories ‘bout it that would last for hours-long
And as a family we was just so happy when him and mama got along
On the Boblo boat
Uh, on our way to that black amusement park

Uh, on our way to that black amusement park
Wood roller coasters, crack sold on plastic scooter cards
Uh, smokin’ grass at the vintage food court
Broken glass, waitin’ on you on the swimming pool floor

J. Cole é um rapper da Carolina do Norte e passou sua infância longe dos “Boblo Boats”, mas em seu verso ele também compartilha memórias da sua adolescência:

We had no Boblo boat, but I could note those times is like a Bible quote
BC, before cellphones, the first time I would smoke
I was 6-years-old, but that’s for another chapter
That’s for another story, to God be the glory

Royce e Cole

Summer On Lock conta com a participação do grande Pusha-T e do lendário Jadakiss. Som pesado, ótimos versos, beat foda e ótimo refrão. Royce quebrou simplesmente tudo.

Nigga, I’m so far ahead of my time, I’m ‘bout to start another life
You a target, I’ll probably blast you twice
Alky rappin’ with the passion of Christ
Curveball through the eye of the storm, I am the calm ‘fore disaster could strike

First of the Month conta com a participação de T-Pain (sim, aquele do auto-tune) e é uma faixa super alegre, já que fala sobre a alegria de receber o salário no primeiro dia do mês. Ótimo verso de Royce e ótimo refrão por ele também, explorando sua voz mais cantada, ficou muito encarnado. O verso do T-Pain super combinou com a vibe do som. A faixa também faz referência à clássica “1st of Tha Month.” do Bone Thugs-N-Harmony.

Cocaine e Power são as melhores faixas do álbum e não por coincidência, são dois dos melhores e mais profundos e até dolorosos storytellings que já ouvi. PESADISSÍMAS.

Cocaine é precedida pela skit Who Are You, que narra um sonho que Royce teve com seu pai, onde fazia uma série de perguntas para o mesmo e do nada se via na mesma situação com seu próprio filho, que tentava escrever o “Book of Ryan” inspirado no pai, mas admite não conhecer nada dele e então pergunta inicialmente: “quem é você?”. Cocaine é uma tentativa de resposta para essa pergunta. A faixa narra as memórias que o pequeno Ryan tem em relação com o vício em cocaína de seu pai. Porra, foda, super sentimental, pesada, profunda, o beat e os efeitos sonoros conseguem passar muito essa vibe e o Royce através do delivery consegue também deixar bem explícito seu sentimento, inclusive nos trechos em que discursa e canta.

Papa came home from another day of hard
Work and handed me his key, told me “Go look in the car”
So I went out there to look for what he asked me to get
I was checkin’ all the seats but the only thing I saw
Was a bag of cocaine (Say what?)

A questão aqui é a reflexão de Royce se o contato com cocaína e com o vício do pai levaram ele mesmo a ser um viciado, como vezes coloca durante o disco. Ele rima:

I drink a lot of alcohol, problems with the law
Would I have done better or the same
If Daddy never tried cocaine? Uh
If Daddy never tried cocaine

Pesado, simplesmente pesado. Em Power, Royce volta a refletir sobre a sua relação com o pai. Na faixa ele revive as memórias turbulentas de um dia de Ação de Graças e um Natal com sua família, no qual o pai abusivo é preso pela polícia em decorrência de violência doméstica. Com um poder incrível de contar histórias, Royce remonta essas memórias de forma super gráfica, inquietante, honesta e cheia de detalhes e referências da época.

It’s Christmas time in the Montgomery home
Daddy’s actin’ all crazy again
Mama got herself a bloody nose
Daddy slapped her in the face again

O beat cheio de graves e efeitos sonoros produzido pelo Boi-1da (Drake, Rihanna, Eminem…) caiu perfeitamente e contribuiu muito para a recriação do ambiente. O que me impressiona aqui é a capacidade do Royce em ao mesmo tempo que conta a história em todos os simples detalhes, ele também alterna entre os diferentes personagens e narradores dela, mudando o delivery de acordo com os sentimentos que descreve. Muito foda.

“Who is that making all that God damn noise?” (Not me)
“Greggy (Huh?), get up here! You been out there drinking again?
What the fuck I tell you about coming in my house with this disrespectful shit?
Nigga, where the fuck you done been?”
I’m thinking to myself “Greg, please don’t say nothin’ stupid, man”

E essas linhas aqui?

My father hit him so hard his body hit the stove
The oven door hit the fucking floor
The turkey fell out the oven hole and landed near the stairs
Now Daddy standin’ over Greg talkin’ ‘bout “Nigga, you ain’t hurt! Get up, get up!”
And here come Vish’ talkin’ ‘bout, “Dad, I don’t think he gon’ get up”
Then mama went damn near hysterical (Ahh!)
She called the police, the police came
Neighbors is all in the street
Watching the cops takin’ my father out in handcuffs

A faixa termina ligando essas memórias ao presente na forma da skit Who Are You. Nesse momento, Cocaine e Power se tornam parte da mesma história, que busca explicar quem é o Ryan. As faixas têm em comum também o fato de contarem histórias pesadas sobre seu pai, mas de terminarem entendendo e agradecendo a ele, que por pior que fosse, ainda estava presente. Ele reflete isso com o filho em Power:

When you were a child growing up with Grandad and Granny
Did you really feel like Grandad was a good father to you?

Absolutely, absolutely
All my friend’s daddies was walking out on them left and right
You know he never left us, he was always there for us
You know there were a lot of things that happened that I didn’t understand

Ryan é produto disso tudo, pelo bem e pelo mal todas essas questões moldaram-no, deram dor, mas também deram poder. Na honestidade de sua autoconsciência, ele entende isso… e entende o pai.

Para falar que nem todas as memórias são ruins, em Amazing, uma track super alegre no beat, no delivery, no refrão e no tema, Royce descreve como foi voltar para seu antigo bairro e relembrar todas as suas vivências, boas e ruins, mas importantes para ser quem ele é hoje, um cara bem sucedido. Eu achei muito foda que ele se coloca ainda enquanto aquele pequeno Ryan, como se nunca tivesse deixado de ser ele. O passado no presente e vice-versa.

I’m little Ryan from 16650, Baylis
Remember me? I used to buy all the mystery mix Now and Laters
I used to wait for God to come down and answer all my prayers

Em Outside 5’9" reflete com seu filho, para o Book of Ryan, a respeito de seus medos enquanto individuo. Ele começa a música fazendo algo muito importante e significativo pra narrativa: admitindo que tem medo.

I’m afraid, I’m afraid
Sometimes I’m even afraid to admit
I’m afraid, I’m afraid of the weight of my problems

Aí, nessa faixa, fica bem óbvio o principal valor desse disco, que está em falar tão abertamente sobre algo que é tabu no hip-hop (muito por causa da heteronormatividade), as suas própria vulnerabilidade e inseguranças. Podemos observar isso de forma muito sistemática no “4:44” (2017) de Jay-Z , mas em Book of Ryan, a conexão do rapper com seus sentimentos e memórias é ainda mais profunda e tocante. E aí também aparece a importância de falar sobre saúde mental, como ele faz em Strong Friend.

Royce, ou melhor, Ryan tem medo. Medo de haters, de ser abrir dessa forma e ser criticado, medo do filho não sentir orgulho dele, medo do filho beber e de cometer os mesmos que ele. Medo de não ter sido o suficiente, de não ter ensinado o filho a andar de bicicleta ou a nadar. Medo de o filho não ser melhor que ele, porque ele tem que ser. Medo.

You know what I’m about to say next, right? I’m afraid of you drinkin’
Though I never taught you to swim, I’m afraid of you sinkin’

Todas essas questões discutidas no disco nos mostram também o valor da memória para uma narrativa. A memória é poderosa, nos toca de forma diferente de qualquer outra coisa, nos constrói mesmo que tão distante de nós, coisa que a História talvez nunca saiba fazer tão bem. Nesse sentido, é muito foda ver a conexão entre passado e o presente sempre presente nas músicas e nas narrativas do Royce, porque mesmo que a História não consiga tocar as pessoas tanto assim, ela é a responsável por tratar e analisar a memória frente ao que nós vivemos hoje e justamente fazer essa conexão. Falei que meu diploma serviria pra algo, suck it!

Eu fiquei pensando aqui em como eu poderia terminar o texto, com qual faixa ficaria melhor e acho que a coisa mais justa depois de tudo é terminar falando de Legendary. Essa música fala nada mais, nada menos que Royce é uma lenda e se não ficou claro até agora, ele é mesmo. Sick flow.

UAU, muita coisa até aqui (20 faixas, mas passo pano). Esse disco é uma verdadeira viagem pela vida desse cara extremamente talentoso. Não sei vocês, mas depois de ouvi-lo, eu fico com a impressão de que conheço o Royce intimamente e acho que isso tem muito a ver com o que separa um grande álbum de um apenas ok. É a capacidade de contar uma história e manter um conceito sólido e preciso durante toda a narrativa. É a capacidade de recriar, de reviver, de sentir e fazer sentir. É a empatia, a paixão, o sentimento. Assim como qualquer livro clássico, Book of Ryan faz todas essas coisas com maestria e consegue explorar a profundidade, o range e todas as facetas desse incrível rapper (e ser humano) que é o Royce da 5'9, ou melhor… o Ryan.

--

--