Re-Animator (1985), baseado na obra de H. P. Lovecraft.

Primeiras histórias

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva
Published in
6 min readNov 4, 2015

--

O ano é 1999. Tenho dezessete anos e curso o último ano do ensino fundamental, numa turma de supletivo. Havia largado os estudos logo que entrei na quinta série. Sempre gostei de estudar por contra própria, mas frequentar as aulas todos os dias, sentar em fila, erguer o corpo ao comando de sirenes e sinos, copiar matéria num caderno e reproduzir isso numa prova já me parecia um grande engodo. Fiquei fora da escola por quatro anos.

Quando voltei a estudar, eu era o cara mais novo da sala. Todo mundo ali tinha as mãos calejadas: mineração, colheita de café, empregadas domésticas, pedreiros, mecânicos, lavradores. As ocupações mais sofisticadas, onde se trabalhava limpo, como se dizia por ali, resumiam-se a atendentes de loja ou de bar. O sonho comum era conseguir um emprego de carteira assinada, algo raro naqueles tempos. Num lugar assim, já aos quinze anos, se você não está com uma enxada ou marreta na mão, logo é visto com desconfiança.

Eu acompanhava meu pai na mineração. Desde sempre meu pai trabalhou com isso. Ele tinha arrendando um banco com um amigo. Trabalhavam por conta própria, sem maquinário, sem transporte, sem registro ou qualquer coisa. Pegávamos carona na carroceria de um caminhão de outra firma e saltávamos perto do ribeirão do paredão. Dali subíamos o pé da serra, atravessávamos uma grota próxima de um córrego e então já se avistava o outro lado. Não lembro o tempo que a gente levava.

Uns quarenta minutos, talvez.

Obviamente, ao contrário do meu pai, eu não tinha muita habilidade em erguer aquelas pedras, enfiar chapas e folhear os maços. Tampouco em erguer as pedras na banca para cortar com a talhadeira forjada com chapa de caminhão. Mas tinha que me virar com alguma coisa. E meu pai queria me ensinar a ter responsabilidade, me encaixar na dinâmica social. Os dias eram longos. Quando era verão, as chapas de aço queimavam as mãos. Era preciso banhá-las com água a todo o momento. Quando era inverno, as chapas ardiam de frio, era preciso deixá-las esquentando no sol.

Meu pai tinha feito um fogão de pedra. Por volta das nove horas, ele saia escalando aqueles barrancos em busca de tocos de lenha, galhos e gravetos, então acendia o fogo com uma estopa embebida em querosene ou óleo de motor. A marmita ficava esquentado até meio-dia, enquanto a gente seguia trabalhando.

Eu chegava em casa por volta das cinco e meia da tarde, tomava banho, esquentava um prato de comida e depois ia para escola, sem ânimo nenhum.

Foi assim também no dia que a professora de Português, D. Cíntia, leu um conto na sala. Tento me esforçar para lembrar qual conto era, mas não consigo. A única coisa que suponho mais ou menos clara é que se tratava de um daqueles livros daquela coleção Para Gostar de Ler. O conteúdo da aula era sobre gêneros literários. Ela explicou que numa narrativa havia um narrador, que contava a história de alguns personagens, que se moviam por um espaço, num determinado tempo. Geralmente havia diálogos. Havia também um protagonista, que se debatia com um conflito, muitas vezes encarnado em um vilão ou antagonista. “Como num filme”, alguém disse. “Mais ou menos isso”, ela falou. Depois de ler a história, ela pediu que escrevêssemos uma redação que fosse narrativa, que tivesse aqueles elementos. “Inventem uma história”, ela disse. O trabalho deveria se entregue na outra semana.

Eu não lembro muito bem como me veio a ideia, mas cheguei da aula e comecei a escrever aquilo que acho que foi a minha primeira ficção. Um detetive particular chamado Caio, que andava num opala preto modificado, investigava uma série de furtos de cadáveres, no IML de São Paulo. Não me lembro dos detalhes, mas sei que havia um cientista maluco chamado Dr. X, que reanimava os cadáveres e os transformava em zumbis, como naquele filme Re-Animator, um dos meus favoritos na época.

Eu mal sabia colocar uma vírgula no lugar, escrever exceção ou pontuar direito. Não me recordo também de ter lido histórias de aventura ou de suspense antes disso. Minhas leituras se resumiam a trechos citados em livros didáticos, gibis da Turma da Mônica, Globo Ciência, os livros espíritas da minha mãe (os quais eu lia como se fosse ficção científica) e aqueles encartes enciclopédicos da Isto é. Sobram duas possíveis fontes das quais eu poderia ter chupado essa estrutura narrativa: 1) filmes de suspense da Band; 2) causos de assombração que ouvia desde moleque.

Mas ali estava uma espécie de conto: com personagem, espaço, conflito e solução. Lembro que a professora ficou surpresa. Afinal, estávamos numa sala povoada pelo eixo duro do lumpemproletariado. Ela encheu minha história de elogios. “Temos aqui um talento nato”, ela disse. Então fiquei tomado por vaidade e também esmagado pela vergonha, quando ela leu o texto na sala em voz alta, depois levou para outras salas em que ela dava aula e leu também. Meus amigos de outras turmas me encontravam no corredor e já iam tirando sarro: “Olha aí o escritor”. Eu encolhia a cabeça nos ombros. Dava um riso amarelo. O assunto acabava. Mas a melhor coisa daquilo tudo foi que ela me passou umas dicas de livros: Agatha Christie e Conan Doyle. E naquele resto de ano eu varava madrugadas lendo histórias de suspense e mistério.

Assassinato do expresso do oriente foi o primeiro livro que eu me lembro de ter lido.

Quando o ano virou, fui cursar o ensino médio no turno da manhã, na modalidade regular. E durante aqueles três anos escrevi duas histórias longas, batidas a máquina, uma delas com algo próximo de duzentas páginas. Envoltas em clichês de mistério e suspense, escritas num português sôfrego, tinham o mesmo personagem daquela primeira redação. Passava noites debulhando a máquina de escrever, num êxtase de prazer e diversão. A primeira das histórias se passava numa fazenda no interior de minas, numa noite chuvosa. A trama envolvia fantasmas e espiritismo. A outra, muito influenciada por Arquivo X, se desdobrava sobre o caso do ET de Varginha, mostrando que tudo não passava de uma conspiração armada pelo comércio local para atrair turistas. Escrevi também uma história que tinha Sherlock Holmes como personagem, e envolvia viagens no tempo. Na época, eu tinha lido o livro de H.G. Wells. Depois comecei a escrever uns contos que se perderam completamente. Um deles, que meus amigos diziam ser bom, que envolvia seitas satânicas e assassinatos, era sobre dois estudantes, que no final eram um mesmo sujeito, com dupla personalidade. Francamente inspirado em Clube da Luta. Escrevi também uma peça policial, que chegou até a ser ensaiada, mas nunca foi montada.

Depois que entrei na faculdade de Filosofia, em 2003, nunca mais escrevi uma história de aventura ou de suspense (exceto por um lapso, em 2009, quando participei da antologia do antigo site Beco do Crime). Não sei muito bem o motivo, exceto pelo fato de não ter lido mais histórias de aventura. (Talvez por conta dos discursos xiitas de ambos os lados, a respeito de ficção de gênero). Não sei. Meu primeiro livro, que está próximo de um romance de formação, não tem nada em comum com aquelas primeiras investidas. Tampouco o segundo.

Por outro lado, a divisa entre aquela escrita de suspense e mistério, dos primeiros exercícios, e outro tipo de escrita ainda em formação, é bem nítida pra mim. Foi um conto sobre um trabalhador da mineração, que presenciava os amigos apanharem do patrão e não fazia nada. Um caso real ficcionalizado. Na época, até foi selecionado num concurso, embora a antologia do prêmio nunca tenha saído. Uma lástima.

Esse novo livro para qual estou pesquisando, em certo sentido, retoma aquele primeiro impulso. Pelo menos do ponto de vista do enredo, poderia ser visto como uma narrativa de aventura. Mas agora, diferente daquelas divertidas noites do final dos anos 90, não é tão fácil escrever. A trama, quando existe, é apenas mais um dos elementos da narrativa. Naqueles anos, eu escrevia sem qualquer preocupação senão contar uma história, criar suspense. Pura diversão e uma confusa vaidade, apenas. Hoje, isso me parece impossível. É infinitamente mais difícil escrever. Talvez seja um preço a se pagar por encarar a escrita no sentido de uma construção consciente, pouco intuitiva. Como diria Thomas Mann, o que diferencia o escritor das outras pessoas, ao contrário do que pensa o senso-comum, é que o escritor tem mais dificuldades para escrever do que qualquer outra pessoa. Essa me parece uma boa definição.

--

--

Marcos Vinícius Almeida
Carne Viva

Escritor, jornalista, redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. Autor de Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com