As relações entre racismo e violência policial dentro da América Latina.

Julianny Araújo
CARPAS
Published in
8 min readJun 18, 2020

Com toda a movimentação sobre o assassinato de George Floyd e o as ondas de manifestações pelo Black Lives Matter, é possível observar diversos debates e comparações sendo feitas pela internet entre o racismo e a violência policial dos EUA com a do Brasil e como ambos países se articulam quanto a essas questões. Primeiramente, é necessário ter em mente que as questões raciais dos Estados Unidos e Brasil divergem tanto na base quanto na prática. Infelizmente, há semelhanças, a começar pelo fato de que a discriminação racial, o racismo sistêmico e a exclusão de pessoas de projetos nacionais e de cidadania são realidades comuns a todas as Américas. São realidades que têm uma problemática em comum mas possuem um longo processo histórico por trás que explicam todos os atos tomados atualmente.

E as formas mais extremas e recentes dessa história — brutalidade policial, criminalização de pessoas de ascendência africana, associações entre certos traços fenotípicos e criminalidade — isso não é algo que preocupa apenas os Estados Unidos, embora adquira uma visibilidade singular quando isso acontece nos EUA. Mas se você acompanhar as notícias do Brasil mais ou menos de perto, encontrará notícias muito semelhantes e provavelmente muito piores do que as que estamos lendo sobre os EUA em termos de violência racializada e em termos de criminalização da população afrodescendente. — Alejandro de la Fuente, pesquisador de Harvard, para BBC

Mas a maior diferença e talvez a que mais se conecta com a maneira como pensamos e sentimos racismo e discriminação em diferentes países é o fato de que, nos Estados Unidos, a experiência de segregação racial formal, legalmente consagrada, é uma experiência muito peculiar do país. O discurso da supremacia branca é muito mais naturalizado nos EUA do que na América Latina. E é esse tipo de discurso que cria um ambiente favorável para que um policial, por exemplo, como vimos no caso de George Floyd, se sinta habilitado a fazer algo assim.

Na América Latina, por sua vez, existe um tipo de consenso nacional de que o racismo é algo inaceitável e vergonhoso. O próprio mito de “democracia racial’’ ao qual tantos brasileiros se orgulham confirma essa ideia. Essa ideologia tanto ajuda a silenciar casos de racismo, fortalecendo a invisibilização desses povos, quanto pode colaborar a tornar politicamente mais difícil qualquer política abertamente racista, incluindo essas formas extremas de brutalidade policial vistas nos EUA.

Sim, essa é uma das âncoras culturais e ideológicas dessa visão, que obviamente não é uma visão completamente errada. O que acontece é que o classismo na América Latina tem cor. A verdade é que existe uma associação muito poderosa entre a cor da pele e localização de classe e possibilidades socioeconômicas. Existem muitos estudos que mostram que mesmo quando se mede uma série de variáveis ​​sociodemográficas — educação, estrutura familiar, local de residência… — ainda existem algumas diferenças entre afrodescendentes e não afrodescendentes que não podemos explicar devido a essas variáveis. E é aí que o racismo e a discriminação estão desempenhando um papel fundamental, culminando em algo devastador que tem um efeito cumulativo ao longo de gerações, e é assim que essas estruturas raciais de classe social são reproduzidas.

O racismo latino-americano tem suas raízes na conquista, na colônia e na escravidão. Em raras ocasiões, é apresentado como um racismo de extermínio. Na maioria dos países, o racismo não constitui um corpo de doutrina coerente ou fechado. A ideologia racista é expressa como conjuntos relativamente contraditórios e mutáveis de estereótipos e mitos. Em certas regiões, espalham-se opiniões e preconceitos sobre as predisposições culturais de povos indígenas ou populações negras. Em outros lugares, a forte tradição autoritária do poder político, juntamente com a persistência de oligarquias brancas fortemente excluídas, causaram racismo sistêmico que atravessa a sociedade e as instituições. Em momentos críticos, essa ideologia se tornou um racismo total, assumido pelo Estado como doutrina oficial e disfarçado pelas alternativas de controle econômico e populacional.

Nos países latino-americanos, diferentemente da Europa e até mesmo Estados Unidos, centros do sistema capitalista, há um índice muito alto de trabalhadores que não conseguem emprego no mercado de trabalho formal e, por esse motivo, são obrigados a sobreviver a partir das estratégias alternativas e marginais de sobrevivência tais como: comércio ilegal de drogas, flanelinhas, prestadores de serviços e, claro, bandidos. Isso significa que na economia capitalista brasileira se produz mais trabalhadores do que o capitalismo precisa para explorar e produzir riquezas, e esse contingente precisa ser controlado de alguma forma dado que esse exército permanente de pessoas nesse mercado de trabalho informal tem um potencial de explosão social maior. Mas como realizar esse controle? O sociólogo Loïc Wacquant mostra que historicamente os países centrais usaram de 3 estratégias de manutenção da força de trabalho: a medicação, a socialização e o encarceramento como forma de controlar o excedente populacional. Na realidade brasileira, entretanto, a quarta forma de controle está na política de extermínio, funcional para a reprodução da ordem burguesa e domínio da população. O processo de extermínio é permanente e plenamente adaptado a essa funcionalidade, não acontecendo somente porque a polícia ou a política é racista, mas porque a dinâmica institucional e ideológica da burguesia produz esse problema estrutural e influencia todos esses setores.

A Argentina é um exemplo chocante nesse aspecto pois é um país onde 7,7% da população é indigente. Essa relação também se repete nas taxas de crimes e de violência. Por exemplo, aqueles que moram no Em Buenos Aires, assim como no Rio de Janeiro, Kampala e Pretoria — correm mais risco de terem suas casas assaltadas. E as forças policiais militarizadas do Brasil que surgiram sob os governos militares, estão entre as mais assassinas do mundo. Em 1992, a polícia militar matou 1.470 civis em São Paulo, enquanto a de New York matou 27 naquele mesmo ano.

Em muitas nações latino-americanas, o negro pobre vê o sistema jurídico como um instrumento de opressão a serviço dos ricos e poderosos. O sistema jurídico é desacreditado pela sua ineficiência e falta de autonomia. O sistema legal é deficiente em vários aspectos: os recursos materiais são escassos, os procedimentos judiciais são excessivamente formalísticos, os juízes não são suficientemente treinados, e há poucos juízes para muito casos. No Brasil e em muitas democracias recentes da América Latina, o Estado mostrou-se incapaz — ou mesmo sem vontade — de punir as práticas criminosas dos agentes do estado.

Eu sempre preferi me identificar com o pan-africanismo de W. E. B. Du Bois, que defendia que os negros do Ocidente têm uma responsabilidade especial para com a África, a América Latina e a Ásia — não em virtude de uma ligação biológica ou racial, mas em virtude de uma identificação política que é forjada na luta. (…) Tal abordagem não é definida racialmente, mas, em vez disso, descobre sua identidade política em suas lutas contra o racismo. — Angela Davis em A Democracia da Abolição.

Durante décadas, a miscigenação foi o apoio da ideologia nacionalista em vários países da América Latina. A ideia baseada no pensamento de que a miscigenação tão marcante nos países latino-americanos significaria a extinção do racismo acabou, de certa forma, escondendo a identidade africana tão presente na cultura desses países, além de inviabilizar os casos de racismo que ocorrem estruturalmente.

No caso do México, pode-se dizer que o país é vítima de seu próprio sucesso inicial nas relações raciais. Foi um gesto de muita nobreza abolir a escravidão em 1829, 34 anos antes que os Estados Unidos fizessem o mesmo. Apesar desses brilhantes começos, porém, com o tempo as relações raciais sucumbiram a uma ideia romântica: a de que eliminar oficialmente as categorias raciais e adotar uma ideologia de mestiçagem poderia erradicar o racismo em toda a sociedade mexicana, pois a libertaria de privilégios provenientes de diferenças sociais e econômicas ligadas a disparidades visíveis de raça. Isso não aconteceu. O México hoje é um país de 120 milhões de habitantes e os negros estão por toda parte do território, mas a maioria ainda se reconhece mais como indígena do que como negro.

Se os negros não se encontram na Constituição, muito menos tem participação política. Existem projetos e movimentos que tentam forçar o México a mudar sua Constituição para incluir os negros. Porém, o governo do México tem negado isso por mais de 20 anos. Dizer “você é negro’’ para um afro-mexicano é quase como um insulto. Pessoas acham que esse conceito é algo que retrata o tempo de colonização, palavra criada pelos europeus e que carrega uma conotação racista. Soa como algo brutal, animal ou não evoluído.

Poderíamos fazer analogias com a realidade dos negros nos Estados Unidos, mas seria inútil projetar nosso quadro interpretativo sobre a realidade dos afro-mexicanos. Todo racismo, como toda política, é local. — Os negros na América Latina.

No Peru, por exemplo, o racismo inibe até mesmo a capacidade do país se reconhecer como detentores de grande riqueza e valor cultural. Berço da civilização inca, essa suposta riqueza ecológica de recursos naturais e culturais parece contraditória com o fato de que hoje um em cada dois peruanos vive na pobreza. O desenvolvimento humano, de acordo com os cálculos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a pobreza é generalizada e, em algumas áreas, os níveis de pobreza são comparáveis aos da África Subsaariana. O problema central dessas tentativas permaneceu inalterado: como é possível que um país potencialmente tão rico seja tão pobre? Para alguns positivistas e racistas do início do século XX, como Alejandro Deustua e Clemente Palma, a incapacidade do Peru de desenvolver seu potencial é considerada devida à sua população principalmente indígena e mestiça. Hoje sabe-se que é porque sua riqueza natural foi saqueada por uma oligarquia que colocou seus interesses acima dos da nação e por uma variedade de exploradores estrangeiros, incluindo administradores coloniais hispânicos, comerciantes britânicos, empresas americanas de petróleo e mineração. Porém, a imagem do Peru como o mendigo sentado em um banco de ouro perdura porque faz alusão às riquezas potenciais dessa nação.

Deste ponto de vista, o Peru está sentado em um banco de ouro, mas é incapaz de usar esse ouro para se transformar de mendigo em rei. Isso mostra como as idéias sobre as fontes de riqueza e pobreza no Peru estão intimamente relacionadas às idéias sobre o caráter de sua população predominantemente indígena e mestiça. Ilustra o racismo como ideia e comportamento normalizado é fundamental para explicar o caráter exclusivo da construção de nações como o Peru, onde o racismo é majoritariamente estrutural.

Nesse contexto, é imprescindível que se compreenda como as estruturas racistas e, consequentemente, policiais se estruturam dentro da America Latina para assim, quem sabe, entendermos a nossa, pois encontramos mais semelhanças dentro do nosso próprio quintal latino do que no território estadunidense.

REFERÊNCIAS

Almeida, Silvio Luiz de., “ O que é racismo estrutural?”

CONSTRUIR INSTITUCIONES: democracia, desarrollo y desigualdad en el Perú desde 1980. Editor: John Crabtree (2006).

Davis, Angela (2005), “A Democracia da Abolição”

Gates, Henry Louis Jr. (2014), “Os negros na América Latina’’.

París Pombo, María Dolores (2002), “Estudios sobre el racismo en América Latina”. https://www.redalyc.org/pdf/267/26701714.pdf

https://medium.com/%40oxesial/negros-brasileiros-conhecer-o-passado-%C3%A9-compreender-o-presente-60591a0e4d44

https://catracalivre.com.br/cidadania/ser-uma-mulher-negra-no-mexico-e-quase-como-nao-existir/

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