O impacto da regulamentação de equity crowdfunding sobre moedas digitais.

Luís Otávio Ribeiro
Catarse
Published in
7 min readAug 3, 2017

Editado por Rodrigo Machado

Foi aprovada, no dia 13 de julho, a instrução normativa 588 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Mas o que ela faz? A instrução 588 regulamenta a oferta pública de distribuição de valores mobiliários para sociedades empresárias de pequeno porte realizada com dispensa de registro por meio de plataforma eletrônica de investimento participativo.

Mas hein? Em bom português e simplificando: a CVM regulamentou a possibilidade de empresas levantarem capital através de plataformas de crowdfunding.

Em um processo que durou cerca de 3 anos, e com a publicação recente da regulação, não faltaram razões para a notícia ser comemorada pelos setores que representam os interesses de plataformas de crowdfunding de investimento , nomenclatura oficial para essa atividade no Brasil. Essas empresas inclusive são representadas por uma associação de classe: a Equity.

Porém, ao analisarmos a fundo, a instrução 588 não deixa clara qual a interpretação da CVM para a adoção de formas mais avançadas e modernas de arrecadação de recursos e constituição de novos modelos de negócios, os tokens (leia aqui meu último texto explicando o que são tokens).

Tokens e valores mobiliários

O ponto de partida para essa discussão deve se basear em definir se tokens são valores mobiliários. Partimos do princípio que, ao invés de defini-los como valores mobiliários, podemos caracterizá-los como um novo tipo de ativo. Com isso, poderíamos destravar todo seu potencial de inovação para viabilizar e criar novos modelos de negócios.

Para compreender como esse processo está acontecendo ao redor do mundo, iremos analisar as diferentes experiências regulatórias na Suíça, EUA, Singapura, Estônia e, ao final, tentar entender qual a posição da CVM aqui no Brasil.

Suíça

Devido a rápida digitalização do mercado financeiro, principalmente na área relacionada ao blockchain, a Suíça tem se esforçado para criar um ambiente de experimentação propício para que novos modelos de negócios possam surgir sem toda a carga regulatória presente em ativos mobiliários.

Algumas propostas que ajudam o ecossistema estão sendo consideradas:

  1. Empresas que possuem depósitos inferiores a 1M de francos suíços estão totalmente liberadas para testar suas inovações, criando um ambiente de sandbox regulatório.
  2. Criptomoedas são consideradas ativos, e não valores mobiliários, retirando toda a carga legislativa presente nesse mercado. A justificativa é justamente tratar como uma classe diferente e que precisa ser acompanhada de perto para maior entendimento.

A Suíça vem desenvolvendo um ambiente de atração para startups e empresas que estão relacionadas a esse mercado de criptomoedas, gerando evasão de outros países com regulamentação mais ferrenha e que inviabilizam a inovação.

EUA

A incerteza sobre a regulamentação de tokens ainda é bastante presente. A notícia mais recente sobre o assunto é do dia 25 de julho, em que a CVM americana, a SEC (U.S Securities and Exchange Commission), soltou um parecer afirmando que alguns tokens são sim valores mobiliários.

A partir desse último parecer, a SEC deixa mais claro como ela irá julgar sobre tokens:

  1. Howey Test é o framework padrão que será utilizado pela SEC para decidir se o token é considerado um valor mobiliário.
  2. Um token que retorna lucro para quem o possui será automaticamente considerado um valor mobiliário, e com isso deve ser regulado segundo as regras da SEC.

E mesmo que o domicílio empresarial da empresa emissora de token seja em algum país com regulamentação mais branda, caso ele venda para cidadãos americanos, ele passa a ser regulado também pela SEC — que possui braços bem longos ao redor do mundo reforçando seu poder. Além disso, as próprias exchanges que negociam tokens securitizados deverão se enquadrar na regulamentação da SEC para casas de compra e vendas de valores mobiliários. Inclusive, recentemente, a US Patent and Trademark Office (USPTO), órgão que administra e emite patentes nos EUA publicou a patente da SETLcoin para o banco de investimento Goldman Sachs. A patente prevê um conceito tecnológico para troca de negociação de securities e ações digitalizadas.

Ainda que a SEC tenha deixado espaço para interpretações e se esquivado de uma definição sobre o que é ou não é um token securitizado, a recomendação da indústria, liderada pela organização sem fins lucrativos Coin Center nos EUA, é que o token siga algumas boas práticas para não passar no Howey Test:

  • Realizar sua venda de tokens para arrecadar recursos, quando já tiver com uma rede de usuários ativos e com provas do valor intrínseco do token para comunidade.
  • Criar incentivos para que o token valorize quanto mais ativo na comunidade for seu usuário
  • Evitar realizar marketing de tokens como investimentos
  • Utilizar blockchains públicas e abertas, e torne público todo seu código.
  • Comprometer-se com um roadmap público de desenvolvimento e atrelar a liberação de fundos baseadas no cumprimento de milestones.

Para ir mais a fundo, vale a pena entender e testar a planilha desenvolvida pela Coin Center, que lhe dá o resultado sobre como o seu token será qualificado:

Singapura

Da mesma maneira que a Suíça, o país do sudeste asiático não regulamentava tokens per se, pois esses não eram considerados valores mobiliários ou instrumentos de pagamento.

No entanto, dia 1 de Agosto, e imagino que influenciado pela posição da SEC nos EUA há uma semana atrás, o MAS (Monetary Authority of Singapore) soltou um artigo oficial com o objetivo de clarificar a sua posição regulatória sobre ofertas de tokens, ou, ICOs (Initital Coin Offering).

Segundo a agência governamental, o uso de tokens evoluiu além de sua função como moeda digital, passando a representar posse ou uma garantia sobre os ativos e propriedades de um emissor. Na interpretação da MAS, isso poderia ser considerado uma esquema de investimento e, portanto, regulamentado sob a Securities and Futures Act (SFA). Sendo assim, qualquer oferta pública que envolver tokens que se assemelham a valores mobiliários precisarão ser registrados na junto a SFA, bem como todos os intermediários desses processo as casas de câmbio que negociam esses tokens em mercado secundário.

Estônia

Esse país do leste europeu que é considerado um dos principais centros tecnológicos do mundo, inclusive com iniciativas de residência digital e incentivos para a abertura de empresas de tecnologia, parecia ser um lugar natural para a adoção de medidas mais flexíveis ao desenvolvimento de organizações baseadas em blockchain.

No entanto, em 2014, iniciou-se uma pressão jurídica para dificultar esse modelo de negócio no país, iniciando investigações sobre negociação de bitcoin em casas de câmbio locais. Em 2016 a Suprema Corte do país julgou a legalidade das transações de Bitcoin e impôs uma carga extra de regulação absurda, que inviabiliza totalmente a operação:

  • Ter um canal de atendimento pessoalmente, cara a cara.
  • Manter IDs de todos os clientes e reportar aqueles que comercializam mais de 1.000 Euros por mês. Nenhuma outra atividade econômica está sujeita a requisitos tão rigorosos, o limite normal é de 15.000 euros.

A casa de câmbio de bitcoin, BTC.ee, continua fechada e seu operador, Otto de Voogd, está levantando recursos para lutar nos tributais contra as decisões tomadas contra sua empresa, bem como alguns direitos universais que estão sendo desrespeitados ao longo do processo.

Essa regulamentação não está restrita somente para o bitcoin, mas também a outros ativos ligados ao blockchain, colocando a Estônia como o pior país do mundo para negócios ligados a moedas digitais.

E como estamos no Brasil?

A instrução 588 já surgiu regulando algo que foi uma inovação no passado. Nesse sentido, ao falar sobre tokens, o próprio superintendente de desenvolvimento de mercado da CVM, Antonio Berwanger, demonstrou pouco conhecimento de causa . Isso deixa interpretações em aberto para que qualquer oferta de investimento seja considerada uma oferta pública de valores mobiliários, o que colocaria uma carga regulatória excessiva sobre essa nova modalidade de negócios baseado na emissão de tokens.

Como o Brasil tem seguido o modelo de regulamentação dos EUA, é lógico pensar que o modelo de Howey Test poderá ser adaptado para a nossa realidade. Inclusive, já existe um artigo da instrução 588, que exclui bens e serviços e que poderia ser utilizado para excluir tokens que possuem utilidade dentro da rede.

§ 1º Não se considera como oferta pública de valores mobiliários o financiamento captado por meio de páginas na rede mundial de computadores, programa, aplicativo ou meio eletrônico, quando se tratar de doação, ou quando o retorno do capital recebido se der por meio de:

I — brindes e recompensas; ou

II — bens e serviços.

Essa interpretação ainda é um incógnita. Acredito que o melhor dos caminhos seria deixar esse cenário se desenvolver, incentivá-lo a erros/acertos, criar flexibilizações jurídicas antes de qualquer tentativa de traçar uma regulamentação final.

Inclusive, na minha visão, a própria precipitação em definir um marco legal oferece uma barreira e freia uma inovação (tokens) que certamente irá superar o próprio modelo recentemente regulamentado (como nesse caso do equity crowdfunding).

Competição Jurídica

O que se desenha no horizonte é uma competição jurídica entre cidades, países e regiões para receberem empresas e organizações que não necessitam de um ambiente físico para existir, e poderão se constituir onde o ambiente regulatório for mais propício para seu desenvolvimento.

A velocidade de inovações tecnológicas é um ponto sempre a ser considerado quando estamos falando de regulações no contexto atual. Por atuar numa lógica que olha para o passado ao invés de deixar claras as suas perspectivas de futuro, o Brasil sai novamente atrás de outros lugares ao redor do mundo, gerando um cenário que dificulta a adoção dessas formas mais modernas e atuais de se viabilizar inovação.

Agradecimentos pela leitura e comentários prévios: Alex Van de Sande, Fabio Seixas e Thiago Maia.

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