Como o Design da Experiência pode contribuir para o processo de Adoção de Crianças e Adolescentes?

Haidée Lima
CESAR Update
Published in
11 min readMay 25, 2018

Na semana passada tive o prazer em falar sobre Adoção para uma platéia de designers na UX Conf 2018! Apesar de todo o nervosismo foi uma grande oportunidade de levantar questões sobre esse assunto tão delicado e cujo interesse tem aumentado muito nos últimos tempos.

Fotografia de Giselle Rossi Araujo

Mas o que UX tem a ver com Adoção?

Quando comecei a minha pesquisa e entrei em contato com pretendentes, pais adotivos e profissionais relacionados à Adoção, percebi um estranhamento em relação ao envolvimento do Design com o tema. Quando se fala em Design para pessoas leigas, geralmente o que vem à mente são as questões visuais, então parte do meu trabalho também foi fazer um esclarecimento de como o Design pode contribuir para uma questão tão complexa como a Adoção, assim como para outros temas de igual importância e complexidade.

Meu envolvimento com o tema aconteceu a partir do desejo de adotar. Eu e meu marido nos cadastramos para entrar no processo de Adoção no final de 2013. E foi com a participação neste processo que fui percebendo que havia como melhorar a experiência dos pretendentes a pais no período de espera pelo filho ou filha. Esse período, geralmente, demora muito e é uma "provação" para aqueles que estão há tanto tempo esperando para realizar o sonho da parentalidade.

Gravidez invisível

Pra explicar melhor esse período de espera, podemos fazer uma comparação entre a gravidez biológica e a gravidez adotiva. Podemos começar pelo tempo. Uma gravidez biológica dura em média 9 meses, como todo sabem. Mas e uma gravidez adotiva? Nas minhas pesquisas encontrei pessoas que estavam aguardando há 6 anos. E o tempo mínimo de espera é mais ou menos 1 ano, que é o período de preparação para a entrada no CNA (Cadastro Nacional de Adoção), que vou explicar melhor mais à frente. Outra comparação que podemos fazer é em relação à visibilidade do processo. A gravidez biológica acontece fisicamente, então os pais podem fazer um acompanhamento gradual da evolução da mesma, e ir se preparando emocionalmente para as mudanças que vão ocorrer em suas vidas com a chegada do(a) filhote. Já a gravidez adotiva recebe o nome bem sugestivo de “gravidez invisível” porque ela acontece bem assim, “invisivelmente”. Não existe nenhuma indicação de que ela esteja acontecendo efetivamente, uma vez que não acontece “às vistas” dos pretendentes.

Fazendo parte do CNA

Bom, e como funciona o processo de Adoção propriamente dito? Um casal homo ou hetero afetivo, ou pessoas solteiras que desejam adotar precisam fazer parte do CNA, já citado anteriormente. Esse cadastro funciona no Brasil inteiro, mas cada comarca tem a responsabilidade de manter atualizadas as suas informações. E para fazer parte do cadastro os pretendentes devem cumprir algumas etapas que informo a seguir:

Etapas do processo de Adoção

1. Levar toda a documentação necessária para a Vara da Infância e Juventude , junto com as informações sobre o perfil desejado da criança/adolescente.

2. Fazer a primeira entrevista com os profissionais da vara.

3. Fazer o curso preparatório, que no Recife são duas tardes

4. Receber a visita domiciliar

No Recife os pretendentes tem ainda que participar de 4 a 6 reuniões do GEAD (Grupo de Educação e Apoio à Adoção)

5. Entrada no CNA e início do período de espera pela criança/adolescente. Esse período também é chamado de “gravidez invisível”.

Os outros passos se referem à finalização do processo de Adoção e não estavam dentro do escopo da pesquisa.

Desejo x Realidade

Bem, vendo dessa forma pode parecer que são muitos passos e muita burocracia, mas cada etapa descrita acima é fundamental para o sucesso da Adoção, pois quando ela fracassa, isso significa que a criança será devolvida para a instituição de acolhimento. Essa devolução é mais uma violência para essa criança que já passou por outros abandonos e abusos e só intensifica ainda mais seu sofrimento. No Brasil a cada 45 dias, 2 crianças são devolvidas às instituições. Por isso todo esse cuidado visa minimizar ou eliminar essas devoluções.

É fato que nos dias atuais existe um grande interesse pela adoção como possibilidade de formação de uma família, basta vermos a disparidade entre o número de pretendentes cadastrados no Cadastro Nacional de Adoção e o de crianças aptas à adoção no sistema. Em consulta ao relatório de dados estatísticos do CNA é apresentado o número de 43.556 pretendentes, enquanto o número de crianças/adolescentes é de 8.737.

Para alguns autores, o grande número de pretendentes deve-se ao fato das pessoas, principalmente mulheres, estarem investindo mais na carreira profissional e deixando a criação de uma família para mais tarde. Esse postergar da gestação de um filho pode encontrar um organismo menos fértil, dificultando a gravidez e abrindo espaço para a adoção. Lembrando também que houve um aumento na busca pela adoção por homens e mulheres solteiros e casais homoafetivos.

À esse cenário pode ser acrescentada a queda na taxa de natalidade das famílias, mesmo as de baixa renda. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o número de filhos por mulher caiu 26% entre 2000 e 2013, passando de 2,39 para 1,77 filhos por mulher.

Diante desta situação, e levando em conta a grande diferença no número de pretendentes e de crianças/adolescentes aptas à adoção, é natural um estranhamento relacionado à existência de crianças em abrigos, havendo tantas pessoas procurando adotar. Segundo os especialistas em Adoção, existem 3 fatores que contribuem para a demora da concretização do processo:

1. Priorização da família biológica, com a inclusão da família extensa, diminuindo assim a importância da família socioafetiva;

2. Os prazos previstos em lei, que são longos;

3. A incompatibilidade entre os perfis desejados das crianças pelos pretendentes e os perfis das crianças habilitadas no cadastro. Onde a maioria dos pretendentes desejam bebês e crianças até 3 anos, brancos, do sexo feminino, sem irmãos e sem histórico de doenças. Enquanto que a maioria das crianças cadastradas está acima dos 6 anos de idade, são pardas ou negras, são do sexo masculino, tem irmãos e tem histórico de doenças.

A história dos pretendentes

Um fator que é importante destacar é que antigamente o objetivo da Adoção era encontrar filhos para casais inférteis, com a criação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) em 1988 a prioridade do processo passou a ser as crianças, significando que todo o esforço dos profissionais da Adoção visam encontrar famílias para as crianças institucionalizadas. Essa mudança foi um avanço muito grande e fundamental para a evolução do processo. A única questão é que os pretendentes passaram a se sentir um tanto desamparados. Observando que a Adoção é um sistema que depende de vários atores para que ela se concretize:

Atores do processo de Adoção

Sem dúvida que as crianças são o elo mais vulnerável dessa cadeia, mas os pretendentes muitas vezes também podem estar em um momento de vulnerabilidade, angústia e sofrimento.

Ainda hoje a principal motivação para Adoção é a infertilidade. E geralmente ela vem acompanhada de sentimentos como frustração, angústia, ansiedade, insegurança, medo e culpa. Existe também o que os especialistas chamam de luto do filho biológico, aquele que foi desejado, mas não foi concretizado biologicamente.

Outro ponto importante sobre a infertilidade é que ela coloca em cheque os papéis esperados pela sociedade tanto para o homem, como para a mulher. Da mulher é esperado que seja mãe, tanto que surgem vários questionamentos quando uma mulher assume que não deseja ter filhos. Do lado do homem é esperado que ele prove sua virilidade e masculinidade com a gravidez feminina. Dessa forma, quando as pessoas inférteis não conseguem cumprir essas expectativas da sociedade (que tem raízes históricas e culturais), geralmente se sentem discriminados e vítimas de algo parecido como um “castigo divino". E para resolver essa questão, muitas vezes, buscam tratamentos caros e complexos que quando não são bem sucedidos causam grande desgaste físico e emocional. A razão para todo o esforço e sacrifício estaria também na supervalorização dos laços sanguíneos e na continuidade genética.

E os pretendentes, além das questões ligadas à infertilidade, também tem que lidar com os medos relacionados à Adoção que são originados, geralmente, da falta de informação e do preconceito. Os mais comuns são:

· Medo da condição de saúde dos pais biológicos;

· Medo da falta de semelhança física;

· Medo da herança genética dos pais biológicos;

· Medo os pais biológicos queiram a criança de volta;

· Medo da rejeição do filho e troca pela família biológica;

· Medo de não amar o filho por ele não ter o mesmo sangue;

· Medo de não ser apto para Adoção;

· Medo do preconceito da sociedade.

Assim, é possível perceber que os pretendentes estão com uma carga emocional muito pesada quando chegam ao processo de Adoção.

Dessa forma, entendendo como está a situação emocional dos adotantes, como o Design pode contribuir para melhorar a experiência de espera durante a “gravidez invisível”?

Bom, o primeiro passo foi fazer uma pesquisa para obtenção dos dados culturais, começando com a pesquisa bibliográfica para que esta trouxesse informações histórico-sociais e psicológicas sobre a Adoção e sobre os pretendentes. Informações essas que foram apresentadas acima.

Em seguida foram feitas entrevistas semi-estruturadas com nove adotantes para o entendimento dos seguintes tópicos:

· Motivação para adoção

· Relação com o processo de adoção

· Relação com os profissionais da Vara da Infância e Juventude

· Relação com os Grupos de Apoio à Adoção

Dos nove entrevistados, foram seis mulheres e três homens e o tempo de cadastro no CNA variava de dois meses a seis anos.

Ao mesmo tempo foi feita uma etnografia digital em um grupo do Whatsapp do qual participam pais adotivos e pretendentes, bem como pessoas engajadas na causa da Adoção.

Finalizando as entrevistas e etnografia seguiu-se uma análise dos dados obtidos de onde foram tiradas as seguintes categorias:

· Desejo

· Expectativa

· Frustração

· Esperança

A categoria Desejo trata da motivação para Adoção e do perfil desejado da criança; Expectativa trata da preparação para o processo e a percepção do mesmo e também sobre o tempo de espera, além dos medos e ansiedades; Frustração está relacionada às dificuldades e críticas em relação ao processo e aos profissionais envolvidos; e Esperança traz as sugestões de melhorias para o processo e o relacionamento com os Grupos de Apoio à Adoção.

E dentro destas categorias, os achados principais foram:

Motivação para Adoção

O resultado da análise da pesquisa qualitativa está de acordo com as pesquisas feitas por especialistas que mostraram que a principal motivação para a adoção é a infertilidade, embora a mesma já fizesse parte do imaginário destes pretendentes, como mostra a fala a seguir:

Então assim, quando a gente começou a perceber que ia ser difícil de engravidar, essa foi uma opção que eu coloquei logo na mesa. Esse filho ele não precisa vir do gene. Filho é aquele que você ama, que tomapra si. (Alexandre)

Ansiedade

A ansiedade é grande e varia de acordo com o tempo de espera. Como é um processo que não acontece “às vistas” dos pretentendes, ele gera ansiedade e todo tipo de fantasias.

Eu não quero nem pensar nisso. Quando bateu um ano é que deu uma certa agonia que a gente pegou pra ir conversar de novo com eles. Pra ver como é que está! Porque vai que eles esquecem da gente. Vai que escorregou aquela folha que a gente passou, que caiu no chão e ninguém atualizou cadastro nem nada. Com um ano a gente ficou assim meio agoniado. […] (Alexandre)

Invisibilidade do processo

Não existe visibilidade sobre o andamento do próprio processo e nem dos processos de adoção de maneira geral. Essa falta de informação gera ansiedade nos pretendentes pois eles não sabem em que lugar da“fila” estão, o que significa que não tem noção de quanto tempo ainda vai demorar para encontrar o tão esperado filho ou filha.

Sempre, sempre. Eu fui e eles dizem que não sabem o meu lugar, que não sabem o lugar de ninguém, que cada pessoa tem um perfil diferente. Então não sabe o lugar, porque assim, se aparece uma criança, aquela criança tem um devido perfil. E aquele perfil depende do perfil das pessoas, né isso? (Olga)

Dependência de terceiros

Os pretendentes dependem dos profissionais da vara para qualquer tipo de alteração em seu cadastro. Como as equipes são pequenas e tem muito trabalho, algumas vezes as informações não são atualizadas como solicitado, gerando desconfiança em relação ao processo e aos profissionais envolvidos.

Consulta no perfil, mas como está demorando a gente sempre vai lá, pede processo. A gente dá uma olhada. Duas vezes já aconteceu. Como foi o endereço quando a gente voltou e o outro foram os telefones que mudou o celular e não foi alterado. (Clara)

Participação em grupos de apoio à adoção

Um elemento importante na experiência de espera dos pretendentes é a participação em grupos de apoio. No entanto só a participação nesses grupos não é o suficiente para eliminar a ansiedade e as inseguranças em relação ao processo.

“Então o grupo te dá um senso de família, né? O grupo te dá uma sensação de participar de alguma coisa, de uma família mesmo, né? O grupo é apoio.” (Erica)

Resultado

E pelo resultado das pesquisas o que foi apreendido é que, de fato, este é um momento delicado e ansiogênico para os pretendentes e a experiência dos mesmos depende de diversos fatores como:

· O que motivou a Adoção;

· O estado de espírito com que o pretendente chega à este momento;

· O tempo de cadastramento no CNA;

· A participação ou não em grupos de apoio à Adoção;

· A relação estabelecida com a equipe psicossocial durante o período de avaliação;

· E a experiência com os próprios trâmites do processo.

A partir desse resultado foram feitas sugestões de melhoria que vieram tanto dos próprios pretendentes como minhas também:

Contato com o processo

Os pretendentes sentem falta de ter contato com seu processo. E a maneira mais simples de possibilitar este contato seria dar acesso de visibilidade ao seu cadastro no CNA, sem necessitar da ajuda de terceiros pra isso. Ou ainda se o sistema enviasse de tempos em tempos um email com o perfil dos

pretendentes para que eles pudessem ver suas informações e saber que seu cadastro está “vivo”no sistema.

Autonomia no CNA

Uma sugestão importante também seria a possibilidade dos pretendentes atualizarem as suas informações de contato sem a necessidade de terceiros.

Por que não dar os pretendentes a responsabilidade pela manutenção dos seus dados de contato? É do interesse deles que esses dados estejam atualizados. Além disso os profissionais das Varas da Infância e Juventude são assoberbados de trabalho, essa divisão de responsabilidades seria positiva para eles também.

Acompanhamento dos processos de adoção

Os pretendentes sugerem que seja dada a visibilidade das adoções que ocorrem na vara através de informações periódicas. Apresentar dados de três em três meses sobre as adoções concretizadas, informando o perfil das crianças e dos pais. Dessa forma seria possível ter uma noção do andamento da “fila”.

Bora melhorar!

Como é possível perceber, a maioria das sugestões são muito simples e contribuiriam e muito para a melhoria da experiência dos pretendentes em período de espera. Os dados já existem, só seria necessário boa vontade para a disponibilização dos mesmos para um número maior de pessoas.

Essa pesquisa mostra que mesmo problemas complexos podem ter soluções simples que atendam as necessidades dos usuários.

Obrigada UX Conf 2018 pela oportunidade! Obrigada Pedro, Thiago, Rafael e Daniel pelo carinho e atenção e a todos os voluntários que também não foram menos carinhosos e atenciosos conosco.

PS — Veja aqui um resumo muito massa do que foi o evento!

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