Reprodução de polaroides de Andy Warhol: 15 séculos de fama

Pelé, um autógrafo

O Rei tocou a campainha lá em casa e fui resgatar umas lembranças pra ajudar meus filhos a gostarem dele

Christian Carvalho Cruz
Published in
8 min readJan 6, 2022

--

Sonhei que era o Pelé estacionando seu Opalão dourado na porta da nossa casa. Ele mesmo guiava, menino como nas fotos da Copa de 58, mas sorridente, e não chorando no ombro do goleiro Gilmar. Vestia shorts branco de tenista, camisa pólo azul-clarinho e umas sandálias de couro iguais às que meu pai comprava na Casa do Norte, dobrando a esquina. Do Opala vinha uma música que não identifiquei quando o Pelé saltou, deixando a porta aberta, e tocou a campainha. Era uma manhã ensolarada de sábado: o avental da minha mãe estava cheio de escamas de peixe, e a gente sempre comia peixe aos sábados.

Devia ser dezembro de 76, porque meu pai tinha o braço direito enfaixado, do punho ao ombro, queimado por um rojão defeituoso no dia da Invasão Corintiana contra o Fluminense. Foi a minha mãe que veio atender à porta. Do alpendre com piso de caquinhos, na mão a faca com que limpava os lambaris na cozinha, ela olhou pro Pelé e virou-se para dentro da casa:

— É o Dico. Entra Dico.

— Não posso, tem jogo hoje. Passei pra ver as crianças.

— Luiza, Miguel, venham desejar boa sorte pro Dico. Como vai Dona Celeste, Dico? Diz que mais tarde passo lá pra devolver as agulhas de crochê dela.

As crianças não éramos eu e meu irmão, que em 76 nem tinha nascido. Eram meus filhos. Quando eles apareceram no portão, Luiza banguela e Miguel de fralda, ambos de cara amarrada, a música de dentro do Opala aumentou de repente.

Chico.

O Pelé ria como se deve rir num sábado de manhã e, fingindo batucar um pandeiro, acompanhou a letra, dando um drible nela:

— Vocês não gostam de mim / Mas seu pai gosta / Vocês não gostam de mim / mas seu pai gosta.

Corta.

Meus filhos não gostam do Pelé. Mas eu gosto. O não gostar deles é racional, ao contrário do meu gostar. Eles dizem que o Pelé é um negro que não milita contra o racismo, é argentário, machista, esnobe por se tratar na terceira pessoa e foi desumano com a filha que não quis reconhecer. Meus filhos têm razão. Mas eu também tenho. E vai ver sonhei isso como um desejo de explicar a eles que o Pelé não precisa ser posto assim, em pratos de derby E. C. Irracionais x Racionalidade F.C. Que, além do sonho, da imaginação, pode haver razão em gostar do Pelé. E que talvez eles pudessem entender isso se sorrissem e o deixassem entrar pra comer peixe com a gente.

A primeira vez que vi o Pelé ao vivo me surpreendi com a altura dele. Que baixinho. Qualquer um faria o que eu fiz naquela hora. Olhei pra ele e lembrei dos videotapes que nunca cansamos de assistir: o vôo para cabecear a bola no gol do Brasil contra a Itália em 70; a velocidade dos dribles contra os zagueiros do Corinthians; o chute seco, preciso depois do chapéu no beque sueco na final de 58. Era só olhar pro Pelé ali, de terno e gravata, e concluir: que gigante.

Anos depois, cobrindo para o Estadão a Copa de 2010, na África do Sul, eu estava do lado de fora do estádio Ellis Park, em Johannesburgo, acompanhando a chegada de torcedores para as oitavas-de-final. Brasil x Chile. Fazia muito frio — que o time do Dunga nunca foi capaz de espantar. Vindo na minha direção, uma senhora de capote amarelo da Seleção, gorro da Seleção, tênis da Seleção e uma vuvuzela pendurada do pescoço. Achei que fosse uma sul-africana torcendo pelo Brasil e fui conversar. Era americana. Stacey Nickson, professora primária em Auburn, Alabama. Ela contou o que fazia tão longe de casa para ver um jogo pelo qual nenhum de seus amigos, parentes ou alunos se interessava:

— Estou aqui por causa do Pelé. Nada além do Pelé. A minha vida inteira eu olhei praquele crioulo fazendo coisas extraordinárias como um representante de todos os crioulos que fazem coisas extraordinárias. Pelé fez as crianças negras, e eu era uma, acreditarem que há um lugar no mundo pra elas. Então, quando eu soube que haveria uma Copa do Mundo na África, nosso continente-mãe, senti que deveria estar aqui, como um agradecimento a Pelé. Economizei por quatro anos, comprei ingressos e vim. Sozinha.

Pensei na Stacey quando acordei do sonho com o Pelé tocando a nossa campainha. Fiz um café e fui à estante buscar respostas. Encontrei algo muito, muito bom entre Graciliano e Raduan Nassar: Pelé — Os dez corações do Rei (Ediouro, 2003), livro do craque José Castello. Ele começa tratando da questão da dupla personalidade do Pelé/Edson, que meus filhos consideram esnobismo.

“Toda manhã, quando se observa no espelho, os olhos ainda embaciados pelo sono, mas o topete impecável, o cidadão Edson Arantes do Nascimento volta sempre à mesma pergunta: ‘Mas por que eu?’ Aos 63 anos de idade, 26 anos depois de ter abandonado para sempre o futebol, ele jamais chegou a entender por que o destino lhe reservou uma segunda e ilustre identidade: a do Rei Pelé.

Desde jovem, já apreensivo, ele encontrou um artifício de linguagem salvador que facilitasse sua convivência com esse outro que o habita. Para delimitar a distância que separa Edson, o cidadão, de Pelé, o mito, Edson Arantes do Nascimento só fala de Pelé, o Rei Pelé, na terceira pessoa. ‘Até hoje me pergunto como Pelé surgiu. Me pergunto de onde ele veio e por que eu, o Edson, fui escolhido para encarná-lo’’ ele diz, sem nenhum constrangimento de exibir sua personalidade bipartida.

De onde veio esse Pelé que, desde muito cedo, como uma sorte, mas também como um fardo, se aderiu à vida de Edson? É uma pergunta que se repete, e repete, e repete, num ciclone que o agita por dentro, sem jamais levar a uma resposta. (…)

O cidadão Edson vive, assim, a clássica experiência do homem duplicado, que desde Hoffmann, passando por Poe, Gógol e Dostoiévski, até chegar a Cortázar e Saramago, serviu de tema para a grande literatura. O exemplo mais popular das novelas de duplo é O estranho caso do sr. Jekyll e do sr. Hide, do escritor inglês Robert Louis Stevenson, que relata da vida de um sujeito que é, ao mesmo tempo, médico e monstro. Só que no caso de Edson e Pelé, não há o bom médico, nem há o monstro tenebroso, a lutar entre si pela supremacia de um corpo. Ao contrário, Edson e Pelé, Pelé e Edson, conviver, apesar da perplexidade, numa deliciosa harmonia.

O sentimento de duplicidade sempre inquietou o ser humano, produzindo uma série inesgotável de explicações, todas elas inúteis. Na tradição do ocultismo, o duplo é chamado de ‘corpo sutil’, um corpo que se desprendeu do corpo físico, mas com o qual, em geral, ele coincide. No caso de Edson e Pelé, contudo, os dois se dão muito bem dividindo o corpo que têm, não há afastamento algum, incompatibilidade alguma entre eles. Já no folclore, o duplo é tomado, quase sempre, como agouro de morte; mas, para Edson, sua duplicação em Pelé foi, ao contrário, um enfático sinal de vida. (…)

Numa das músicas que compôs, Meu legado, Edson Arantes do Nascimento, o compositor bissexto, entoa um verso que diz tudo: ‘Eu fui Pelé sem saber’. E podemos acrescentar: sem desejar.

Também nunca se afastou inteiramente do desejo secreto, e aparentemente absurdo, de expulsar este Pelé de si, e voltar a ser apenas Edson, o homem comum. ‘Sou Pelé, mas logo voltarei a ser Edson Arantes do Nascimento’, ele anunciou à imprensa, na época em que se preparava para abandonar em definitivo o futebol. Era como um prêmio, que ele se prometia. Mas foi só uma ilusão. (…)

Mesmo longe dos campos de futebol, mesmo mais tarde, já como empresário, ator, ministro de Estado, celebridade, isso jamais aconteceu. O nome aderiu para sempre à pessoa. E, na verdade, é a identidade de Edson que parece ser, agora, acessória e acidental; que guarda, pela fragilidade e pouco uso, a aparência de um pseudônimo. (…)

Adotando essa cisão de identidade, aceitando-a, Edson passou a conviver com um sobressalto suave, mas persistente, que não só nunca o abandona, como parece crescer e crescer com o passar dos anos. Há no acolhimento desse outro, Pelé, sem dúvida, um exercício comovente de humildade, como se todo o mérito de suas conquistas como jogador de futebol, enfim, não lhe pertencesse de fato, mas, sim, a forças que o ultrapassam e o submetem. Edson aceita Pelé com paciência e resignação. Pelé é uma visita que veio para ficar e que, mesmo que ele assim desejasse, já não pode ser recusada. (…) Em vez de ser um delírio de grandeza, uma vaidade extrema, essa divisão [Edson/Pelé] é um ato de modéstia de Edson, que jamais aceitou como suas as glórias que o mundo deu a Pelé.”

Sem que eu percebesse, o livro de Castello me transportou ao camarote da Arena Corinthians, no dia 1º de julho de 2014. De novo trabalhando para o Estadão, de novo oitavas-de-final de Copa, dessa vez Argentina x Suíça, dessa vez um sol do capeta. A minha missão era acompanhar o encontro de um garotinho de muitas carências da Cohab Artur Alvim com um Pelé disposto dar um pouco de carinho a ele. Foi bonito, inesquecível (contei essa história aqui) e eu até fiquei com a impressão de que o Pelé, que chegou de bengala e mancando, tinha crescido uns 20 centímetros desde a primeira vez que o vi, dez anos antes.

Éramos apenas dois jornalistas no camarote. Entrevistamos o Pelé juntos, meu colega com aquele estilo de fazer perguntas traiçoeiras em busca de uma manchete — coisa que o Pelé sacou de primeira e deixou para dar o troco na hora do almoço. Tinham armado um banquete árabe pra gente. O Pelé foi o primeiro a se aproximar da mesa, meu colega logo atrás, espiando por cima dos ombros dele, a uma distância talvez um pouco incômoda. E bocas-livres, sabe como é, fazem os jornalistas perderem o pouco da noção que eles acham que têm. O rapaz parecia sentir uma fome de urso hibernado e não aguentou:

— Quibe! Quanto quibe! Eu adoro quibe!

O Pelé se virou com toda tranquilidade, quase em câmera lenta. Tinha um prato vazio na mão e, com aquele sorriso de quando desceu do Opalão tocando um pandeiro imaginário, olhando pra mim mas jogando o quadril na direção do faminto, emendou de bate-pronto:

— Ah… Você gosta de quibe? Então, pega. Pega no quibe.

Naquele momento, acima da descontração e das risadas que ri junto com o Pelé (meu colega não riu; só continuou enchendo seu prato de quibes), eu percebi que perdia algo importante. Era uma tremenda ocasião para gostar do Pelé — não só pela piada, mas por tudo que aquela tarde encerrou — e eu quis que meus filhos estivessem ali comigo.

Antes de ir embora, pedi ao Pelé um autógrafo em meu bloco de anotações com páginas de estrelas cor-de-rosa. Mas que fosse em nome do Miguel. E só agora, depois de Dico tocar a campainha lá em casa, acho que compreendi por quê. Miguel é o caçula, inconscientemente eu talvez tivesse uma esperança maior de trazê-lo pro time dos que gostam do Pelé. Para convencer a Luiza, mais decidida, firme e sempre com bastante clareza a respeito de seus pensamentos antiPelé, eu precisaria mais que um pedaço de papel.

Eu precisaria sonhar. E escrever isso.

--

--

Christian Carvalho Cruz

Eu escrevo reportagens, perfis, livros, roteiros, fotografias