Dentro do Personagem — Gundam Tanaka (Danganronpa 2)

Victor C
Cia dos Videojogos
Published in
9 min readMay 4, 2018

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Dentro do Personagem é um quadro da Cia dos Videojogos dedicado especialmente a ensaios e textos analíticos sobre personagens de um jogo. O conteúdo do artigo é marjoritariamente opinativo e de responsabilidade do autor do texto, isentando os criadores de qualquer personagem aqui abordado.

AVISO: qualquer texto desse quadro pode — e muito provavelmente vai — conter spoilers do(s) jogo(s) em que esse personagem está participando.

Se tem uma pessoa que leva a sério o “prefiro bichos do que gente”, essa pessoa é Gundam Tanaka.

Tanaka é parte do elenco de Danganronpa 2, a famosa franquia de jogos onde estudantes prodígio são sequestrados e forçados a viver uma vida comunal, em um local isolado, e incentivados a matar uns aos outros para sair dali. Quem jogou o primeiro Danganronpa já veio para o segundo sabendo o que vinha pela frente. Gundam é o Ultimate Breeder, isto é, seu talento é ser muito bom com todas as espécies de animais. Ele sabe cuidar de cada bicho sem restrições, e tem uma sintonia tão grande com o mundo animal que chega a conseguir “conversar” indiretamente com eles. Além disso, Gundam é um quase-vegetariano que expressa desdém pelas maneiras como o ser humano “atravessa a cadeia alimentar”, preferindo comer apenas como resultado de caça por sobrevivência e odiando ver pastos/estábulos/matadouros, e é acompanhado sempre por seus quatro hamsters de estimação.

Mas se engana quem pensa que Gundam Tanaka é a estereotípica pessoa alegre, ingênua, interiorana e/ou rural que ama animais; não, o jovem à primeira vista mais parece algum tipo de cosplayer de uma mistura de Dark Souls com Ninja Gaiden. Além disso, sua maneira de falar é sempre desnecessariamente grandiosa, excêntrica, cartunesca e até negativa, quando não cômica. Gundam diz já ter várias vezes ter comunado com as forças do mal, e se refere a todos os humanos ao seu redor como “criaturas patéticas”; ele é tipo um Vegeta que gosta de animais. Tanaka gosta de ficar sozinho com seus hamsters — inclusive, ele os chama de The Four Devas of Destruction (Os Quatro Devas, ou deuses, da Destruição) — e muitas vezes vive dentro de seu próprio mundo, falhando em cooperar nas investigações pelo menos duas vezes, e entrando em tangentes bizarras nas conversas; muitas vezes, ele passa mais tempo falando de supostas batalhas e rivalidades que ele possui com supostos deuses e anjos do que falando do assunto em questão.

À medida em que o jogador se aproxima mais de Gundam, com a mecânica do jogo de desenvolver amizade com os personagens, vai ficando mais e mais claro o motivo da obssessão de Tanaka com mundos e conceitos fantasiosos, bem como a sua preferência por animais a pessoas. No terceiro evento de conversas, Tanaka afirma:

Tudo aquilo que consegue falar vai te trair.

Essa frase indica uma desconfiança do jovem em relação a humanos, já que animais não podem falar. Mais à frente, no quarto evento, Gundam fala sobre uma suposta condição médica que possui — seu corpo é “venenoso ao toque”, e por isso, ele se certifica de que humanos não cheguem perto dele. Como de se esperar, Gundam mascara seus problemas transformando-os em histórias místicas. Hajime Hinata, o protagonista que você controla, faz uma pergunta importante que expõe esse problema:

Hinata: … Ei, Gundam, posso te perguntar uma coisa?
Gundam: Se você possuir a fortitude necessária, sim.
Hinata: (Eu nem disse nada ainda…)
Hinata: Hã… quando você tava na escola, você já segurou as mãos, ou deu as mãos pra outras crianças?
Gundam: Isto é óbvio hoje, porém… naquele tempo, eu disfarçava minha condição…
Gundam: Movimentando-me próximo à professora que me servia, eu me habilitava a evitar questionamentos sobre isto e sobrevivia sem problemas.
Gundam: Você não entende! É uma cerimônia para invocar entidades demônicas.
Gundam: Felizmente, a enfermeira do estabelecimento pertencia à mesma tribo que eu, então permitia-me sair sem envolvimentos.
Hinata: E-entendi…
Hinata: (Talvez eu não devesse ter entrado nesse assunto tão desnecessariamente… eu não sei mais o que falar pra ele…)
Hinata: Então… que tipo de pessoa pode chegar perto de você?
Gundam:
Gundam: Qualquer pessoa que possua poderes equiparáveis aos meus, ou…
Gundam:
Gundam: Não, não existe alguém desta qualidade. Você deveria esquecer isto… é para o seu bem.
Hinata: (Com essas palavras, Gundam saiu. Ele parecia solitário… o que ele ia dizer?)

Danganronpa 2 não é um jogo medieval, muito menos um RPG de magias. Não, essa é a maneira de Gundam dizer, indiretamente, que não é bom com pessoas e sofre de severa ansiedade social, recorrendo sempre a figuras seletas como escape — por exemplo, na infância, à professora e à enfermeira da escola. No último evento de conversas, Gundam chega perto de um colapso nervoso simplesmente por não entender o motivo pelo qual uma pessoa insistiria tanto em ir falar com ele. Como de se esperar da maioria das pessoas que crescem solitárias, Gundam sente dor na solidão, mas também está acostumado com ela e encontrou meios (animais, ficção) de lidar com ela melhor do que comunar com aqueles (humanos) que o deixaram assim. Então, seu discurso distorcido, suas tangentes bizarras, sua vontade fervente de afastar as pessoas ao seu redor dizem muito sobre o medo que ele tem de confiar novamente em um humano, só para acabar deixado novamente para trás. Ao ceder e considerar Hinata um amigo, Tanaka se recusa a sair do personagem, dizendo que Hinata possui poderes sobrehumanos que o permitem tocá-lo antes de apertar sua mão. Awwwww. :’)

Em algum ponto dos vários diálogos, Gundam diz ser o filho de um anjo e um demônio. No terceiro evento de conversas, ele fala sobre a culinária de sua mãe, e de como ele comia seus pratos mesmo odiando a comida dela. Isso nos leva a crer que Gundam cresceu com sua mãe, e que ela é o “anjo” a quem se refere, enquanto o pai, provavelmente ausente, seria o “demônio”. Isso também explica a origem das suas fobias sociais.

No geral, Gundam Tanaka é uma pessoa que se tornou o escapismo de si mesmo. Ele se estende por horas e horas sobre sua maldade e evolução nas artes proibidas para não dizer que é o que realmente é: uma pessoa inteligente, dedicada e com um coração enorme, que só seus animais puderam conhecer até então.

No Capítulo 4 do jogo, os estudantes remanescentes ficam todos em uma parte fechada da ilha-cativeiro. O vilão-mor, cansado do espírito de cooperação dos que ficaram e da sua relutância em matar, os prendem ali. Suas escolhas são duas: ou todos ficam ali até morrerem de fome, ou alguém mata alguém e todo mundo pode voltar para a ilha.

No fim desse capítulo, Gundam Tanaka é exposto como o criminoso que matou Nidal Nekomaru, o prodígio personal trainer.

Quando você, o jogador, está prestes a expor Tanaka, ele perde a compostura, e até muda um pouco o seu jeito de falar, enquanto enfurecidamente o desafia a acusar ele como o assassino. Todavia, como sempre, isso era apenas um show de Tanaka para ser visto como o vilão, e incentivar o heroísmo dos seus colegas que relutavam em acusá-lo. Ele sabe muito bem, e não se envergonha, do que fez. Ainda fingindo ser vilão, Tanaka discursa após ser acusado, e nas entrelinhas, diz que tanto ele quanto Nekomaru sentiram nojo da maneira como os outros estudantes preferiam morrer de fome, e abrir mão do dom da vida, a fazer um sacrifício pelos outros. Por isso, ele e Nekomaru duelaram sabendo que um dos dois morreria, e o outro seria acusado; ao mesmo tempo, ambos se sacrificaram pela liberdade dos outros estudantes.

Todos entendem suas palavras ali, mas a única que entende todo o sacrifício é Sonia Nevermind, a única jovem (além de Hinata) a se aproximar de Tanaka. Ela chega a implorar para que ele não seja executado pelo seu crime. As últimas palavras de Tanaka antes de partir para a execução são:

Se vocês dizem que matar o outro em prol de viver é mau, então do que seria chamado o ato de desistir da vida? Se um mundo consideraria isto como justiça, então lutarei contra este mundo com cada fibra do meu ser! Desistir da vida e escolher a morte… é nada além de uma blasfêmia contra a vida. É uma violação da ordem natural das coisas! É a arrogância da humanidade!

Mesmo com a falsa vilania do discurso, Tanaka mostra, mais uma vez, o quão profunda é a sua inteligência e seu entendimento filosófico da natureza humana. Indiretamente, ele incentiva seus amigos a continuarem no “jogo”, e continuarem buscando a verdade por trás dele, mesmo com os sacrifícios que isso pede.

Na cena de sua execução, o diretor Monokuma lidera uma manada enorme de animais para atacar Tanaka. Sabendo do que o aguarda, Tanaka tira seus quatro hamsters, que até então viviam grudado nele, de si e os coloca de lado para que sobrevivam. Ele, depois, desenha um círculo mágico na areia, que não faz nada e os animais o acertam violentamente. Ele cai, à beira da morte, e consegue dar um último olhar e um sorriso aos seus hamsters antes de morrer. Seu corpo parece, então, ser carregado ao inferno — tão citado e cultuado por Tanaka durante o jogo — mas espíritos animais aparecem e o levam para o céu. É uma cena de partir o coração, e que representa muito bem o que é o personagem de Tanaka ao longo do percurso da história.

No geral, a presença de Gundam Tanaka no jogo traz uma certa perspectiva do ponto de vista do Chaotic Good; ele se recusa a deixar de viver em seu mundo de fantasias, anjos, demônios e magias, mas não deixa de fazer a sua parte pela sobrevivência daquelas pessoas que, indiretamente, acabaram se tornando seus amigos. Tanaka é a consolidação de uma pessoa sofrida, quebrada e que vive na escuridão, mas que, mesmo assim, mesmo sem perceber, ama a vida e tudo aquilo que ela representa, e se recusa a não experienciá-la enquanto não chegar o seu último dia na Terra.

Mas como uma pessoa com ansiedade social, pavor de contato e medo de confiar em outros aprende a amar a vida? Simples; Tanaka não desistiu. Ele trocou pessoas por animais. Ele trocou a sociedade moderna por uma fantasiosa sociedade medieval. Claro, você não pode viver em fantasia pra sempre, mas pense nisso: todos os personagens de Danganronpa 2, por mais inteligentes que sejam, ainda são estudantes de pelo menos uns 18 anos. Ele ainda tinha — e, se o final do jogo indica alguma coisa, ele ainda tem — muitos anos pela frente para enfrentar os anjos e demônios que o atormentam, e para achar várias e várias pessoas com “poderes equiparáveis aos seus” para chamar de amigos.

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Victor C
Cia dos Videojogos

autoridade em dragon ball, lenda do football manager, jornalista frustrado, ativista de saúde mental, modelo & atriz. escrevo mais quando tô triste.