É legal?
E no princípio, era a lei!
É bastante compreensível para a maioria de nós que as expressões “direito” e “lei” muitas vezes se apresentem como sinônimos. Ou que, quando se pense pelo menos na faculdade de Direito, tenha-se em mente algo como “o estudo das leis”.
Muito embora esta associação seja uma simplificação bastante útil da ideia de direito, ela não está totalmente certa — o que nos permite dizer, também, que ela não está totalmente errada.
Para se ter uma ideia, sequer o conceito de Direito é algo unânime nas cátedras acadêmicas dos estudiosos da lei. Mas podemos jogar uma luz um pouco mais intensa e mostrar alguns outros contornos do que venha a ser o Direito.
Podemos dizer que o Direito é uma “ciência” — tá, tudo bem, sabemos que esse ponto não é lá também unânime, principalmente porque precisaríamos escolher que sentido da palavra ciência estamos usando. Mas sejamos práticos e deixemos as diferenças de lado: o direito seria uma ciência que estuda as normas e como essas normas recaem ou interagem com a sociedade e seus indivíduos.
O nosso maior vício é, exatamente, confundir normas com leis. Mas, novamente, isso tem uma explicação muito simples. É que existem dois grandes tipos de sistemas jurídicos, por assim dizer. O nosso, conhecido como civil law e o common law, de países como os Estados Unidos e a Inglaterra, por exemplo.
Em ambos os sistemas, o direito é o estudo da criação, aplicação e efeitos das normas sobre uma sociedade. A grande diferença é a origem e a forma das normas. No common law as normas quase sempre derivam dos costumes. Não há uma grande quantia de normas escritas, as leis. Lá, os costumes regem e são a principal fonte do Direito nos tribunais.
E, por consequência, as próprias decisões dos tribunais, baseadas nos costumes dos seus povos, acabam virando uma materialização destes costumes, e se tornando as principais fontes dos demais julgamentos. Por isso que em filmes americanos ou ingleses, vemos que há sempre estudos de casos ou menções à julgamentos anteriores, pois são estes julgamentos que criam os conhecidos precedentes judiciais, que dará um ótimo tema para um futuro artigo.
Já no civil law, que é o nosso sistema jurídico, a mãe das normas é quase sempre a lei. Claro que muitas vezes a lei é apenas um processo derivado de um costume que foi instituído legalmente depois de certo tempo. Mas enquanto ele não é lei, não é norma (via de regra). Você pode saber mais sobre common law e civil law aqui.
E, por ser a lei a nossa base jurídica, o mais importante princípio do nosso sistema é exatamente o famoso princípio da legalidade. Acho que todos vocês já devem ter ouvido falar dele. Senão, vamos lá.
A nossa Constituição Federal (que é uma norma escrita, também é Lei) já garante grande parte da nossa liberdade ao mencionar logo no segundo inciso do seu artigo 5º que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Ora, isso é importantíssimo. Não é a moral, não é a ética, não é a religião, não é a maçonaria, não é um partido político ou uma instituição qualquer, enfim, não é ninguém, senão a lei, que vai poder te obrigar a fazer ou a deixar de fazer algo (a não ser que você seja casado, aí as coisas complicam um pouco).
O nosso maior problema é que temos leis demais. Mas temos muita, mas muita, muita lei. Só no âmbito federal, já foram editadas mais de 25 mil leis desde a “proclamação” da República. E você, aí no conforto do seu lar, ainda está sujeito também as leis do seu Estado e do seu Município. Complicado, né?
Mas deixemos de lado os números e voltemos para o que importa: a legalidade. Mas a legalidade, ou melhor, o princípio da legalidade não é a mesma, o tempo todo. Como assim? Calma, vamos por partes.
O direito é uno. É o estudo de todo o corpo de normas — que no nosso caso, se faz pela quase unanimidade de leis. É todo o ordenamento jurídico, em sua completude. Mas para facilitar algumas divisões e estudos, costumamos dividir o direito. Direito público e direito privado, direito civil e direito penal, processual e material, e por aí vai.
Uma boa analogia seria comparar o direito à medicina. Um indivíduo é um ser complexo, cheio de relações biológicas, que podem dividir a medicina em ortopedia, cardiologia, endocrinologia e outras dezenas de áreas de atuação. Mas todos eles são partes de estudo de um conjunto maior, uno, que é o ser humano.
Assim também é o Direito. Esse primeiro grande princípio constitucional, que basicamente diz que tudo que não é proibido, tá liberado se aplica aos cidadãos, em especial ao direito civil. Mas quando falamos de direito penal, por exemplo, o princípio da legalidade ganha outro contorno, também previsto na Constituição.
Ainda no mesmo 5º artigo, mas algumas dezenas de inciso adiante, diz a Constituição que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Este é o conceito do princípio da legalidade, mas para o direito penal. Afinal, ninguém pode ser condenado por um crime que não está previsto em lei.
Mas se analisarmos com calma, veremos que não há uma mudança muito significativa de conteúdo. Isso porque podemos dizer que a legislação penal proíbe por tabela. Não há um artigo que diz: é proibido matar. Ela apenas diz: matar alguém: pena — reclusão, de seis a vinte anos.
No frigir dos ovos, o direito penal acaba proibindo estas condutas, o que reforça àquela mesma ideia do princípio da legalidade: tudo que não é proibido, tá liberado. Essa lógica vai nortear também o direito tributário: não pode haver nenhum tributo sem uma lei que o estipule. Princípio da legalidade tributária.
A única grande ressalva, ou melhor, a única grande inversão do princípio da legalidade ocorre com o que chamamos de Direito Administrativo. Ele é o ramo do direito que trata das regras e dos princípios que regulam os entes, órgãos, agentes e atividades públicas.
O Governo Federal, as prefeituras, escolas e hospitais públicos, câmaras e tribunais, autarquias e empresas públicas estão sujeitas a um regime que inverte o conteúdo que apresentamos de legalidade. Ao contrário da gente, que pode fazer tudo que a lei não proíbe, os Administradores Públicos só podem fazer aquilo que a lei autoriza.
Este é o princípio da legalidade, para o direito administrativo. Só se pode fazer aquilo que está autorizado à fazer. Por isso que no Brasil o Poder Executivo se vê, muitas vezes, refém do Poder Legislativo. Um Presidente só governa com o apoio do Congresso, assim como um prefeito só atua com eficiência com a câmara ao seu lado.
E, como sempre, há muitas ressalvas, críticas e poréns ao nosso sistema. A lei e o princípio da legalidade é a grande baliza do nosso sistema jurídico e isso tem seus prós e seus contras. Enquanto ele atrofia, por muitas vezes, nossos Administradores públicos — e a gente também, oras bolas — por outras vezes ele traz uma segurança jurídica — sabemos que nossas liberdades só podem ser colhidas por lei.
Eu não queria terminar esse texto com esse trocadilho de quinta, mas tem vezes que eu não me controlo: o direito não é legal demais?
Olá, tudo bem? Além de participar das publicações do Ciência Descomplicada, da Revista Subjetiva e da TRENDR, todas aqui no Medium, estou também me dedicando a divulgar a ciência do Direito lá no Youtube. Inclusive, você pode assistir ao tema deste artigo, mas em vídeo.
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