A Felicidade das Coisas (2022), de Thais Fujinaga

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
5 min readMay 18, 2022

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(Imagem: reprodução)

O que a imensidão do mar tem a ver com a maternidade? Se nos basearmos no cinema, muito, afinal, três filmes analisados só este ano por nós optaram por criar metáforas marítimas para falar de maternidade: “Mães de Verdade”, de Naomi Kawase, “Mar de Dentro”, de Dainara Toffoli, e este “A Felicidade das Coisas”, de Thais Fujinaga. Três filmes dirigidos por mulheres, três filmes potentes sobre facetas diferentes da maternidade. Três filmes necessários.

Em “A Felicidade das Coisas”, Paula (Patrícia Saravy) está na sua casa de praia com a família, que inclui sua mãe (Magali Biff) e seus dois filhos, Gustavo (Messias Barros Góis) e Gabriela (Lavínia Castelari). Paula está grávida e à procura de outro nome com G para o próximo bebê, mas a escolha do nome é o menor de seus problemas. Seu maior problema é bastante mundano: ela precisa supervisionar a instalação de uma piscina na casa de praia, trabalho feito a conta-gotas por causa da escassez de dinheiro para comprar os materiais. Outro problema é a presença de um pescador em sua casa, um homem que declara que sempre pescou naquele ponto do rio, por isso vai continuar pescando ali, independente de quem for o dono do terreno.

Em conversas telefônicas com o marido, que ficou em São Paulo em vez de acompanhar a família até o litoral, Paula se desespera por não ter o dinheiro para terminar a obra. Seu marido culpa outras dívidas, chama-a de louca — puro gaslighting — e joga na cara dela que foi ela quem teve a ideia de construir uma maldita piscina. Frustrada ao ver a filha assim, a mãe de Paula diz que nadarão na piscina antes do fim das férias, custe o que custar.

Ao longo do filme, Paula sente seu filho Gustavo — pelo aspecto, um pré-adolescente — se afastando dela e querendo ficar em companhia de outras pessoas, como o pescador invasor. A mãe de Paula tenta dar uma desculpa, de que homem gosta da companhia de outros homens. A este afastamento se seguem uma briga entre mãe e filho e um ato de rebeldia tipicamente juvenil.

(Imagem: reprodução)

Muitos elementos de “A Felicidade das Coisas” me remeteram ao filme argentino “Mamãe, Mamãe, Mamãe” (2020), da diretora Sol Berruezo Pichon-Rivière. Em ambos os filmes uma piscina é importantíssima para a trama, embora por razões diferentes, e há uma busca por um personagem perdido ao final. Mas, se por um lado “Mamãe, Mamãe, Mamãe”, apesar de seu título, discute o que é ser menina em um contexto latino-americano, “A Felicidade das Coisas” discute o que é ser mulher e mãe num contexto brasileiro de classe média-baixa.

Paula é uma mulher casada, mas está vivendo como se fosse mãe solo, contando apenas com a ajuda da avó para cuidar dos filhos. Com o caos relativo à construção da piscina, ela passa por um momento de melancolia, de estar perto da felicidade e ter de abrir mão dela. Isso acontece na vida de todos, mas talvez mais na vida das mães, coisa que podemos perceber só agora, com um movimento forte de desromantização da maternidade em curso.

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Estreante como diretora de longa-metragem, Thais Fujinaga também assina o roteiro, vencedor do Cabíria Prêmio de Roteiro em 2017 e também reconhecido na Berlinale Talents, programa de desenvolvimento de talentos do festival de cinema de Berlim. Não é, entretanto, um roteiro escrito apenas a duas mãos, pois foram vários os colaboradores — entre eles Karine Teles, vice-campeã na categoria “figurinha carimbada do cinema nacional”, atrás apenas de Gilda Nomacce.

Fujinaga conta que se inspirou muito em memórias para escrever o roteiro do filme, e viu paralelos entre a saga de Paula e sua própria saga como diretora estreante de longas quando o filme estava sendo rodado, em 2019, em meio ao caos político e administrativo que ameaçava sobremaneira o cinema brasileiro:

Estávamos filmando enquanto a ANCINE, a agência federal responsável pelo desenvolvimento do cinema nacional, estava sendo destruída pelo novo governo. O primeiro longa poderia ser o último. A piscina de Paula e o filme que estava sendo feito começaram a ter um significado análogo para mim — ambos eram o símbolo de um ‘quase lá’, da felicidade que tinha que ser adiada.”

(Imagem: reprodução)

A produtora Filmes de Plástico pode ser considerada, guardadas as devidas diferenças temáticas dos filmes, a A24 brasileira. As produções da Filmes de Plástico sabem extrair pura poesia de cenas cotidianas, a exemplo do que fazia o cineasta Yasujiro Ozu — se não for iconoclastia ou mesmo um desparate comparar uma produtora a um diretor. Fundada na cidade de Contagem, em Minas Gerais, a Filmes de Plástico reafirma a vocação mineira para o cinema, algo que já foi observado lá nos tempos do cinema mudo, com o ciclo de Cataguases. Mais uma vez, parece que a solução do cinema brasileiro é apostar nos ciclos regionais.

Se fosse um filme de Hollywood, “A Felicidade das Coisas” terminaria com um parto apoteótico, talvez no meio do mar com golfinhos ao redor. Mas não é um filme hollywoodiano: é um filme da nova safra do cinema brasileiro, um filme de sutilezas, tratando temas importantes com maestria e criando conexões inicialmente impensadas entre o micro, a vida da protagonista às voltas com um imbróglio numa piscina, e o macro, este país em convulsão no qual vivemos — e resistimos. Desobediência civil pode ser encher uma piscina que você não pode pagar. Mas a melhor desobediência civil continua sendo fazer cinema.

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