Clube Zero (2023), de Jessica Hausner

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readMay 3, 2024

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ALERTA DE GATILHO: transtornos alimentares

Em alguns países, é possível, no Ensino Médio, tomar parte em diferentes matérias optativas. É nessa pegada que surge o curso de Comer Consciente (Conscious Eating), ministrado pela senhorita Novak (Mia Wasikowska) e procurado por adolescentes com metas diversas, como salvar o planeta, aumentar a nota ou, no caso da ginasta Ragna (Florence Baker) e do bailarino Fred (Luke Barker), melhorar suas performances físicas.

A ideia por trás do Comer Consciente não está de todo errada: é preciso estar presente no momento da refeição, saboreando cada mordida, prestando atenção às texturas durante a mastigação, longe de distrações como o onipresente smartphone.

Mas a boa intenção é posta de lado quando a senhorita Novak leva os alunos ao “próximo nível” e, pedindo sigilo absoluto sobre suas práticas — sinal de alerta máximo soando –, ela os inicia no Clube Zero, uma sociedade secreta formada por pessoas que acreditam que é possível viver sem comer. Dois alunos desistem do curso, sobrando cinco discípulos para a senhorita Novak: Ragna, Fred, Elsa (Ksenia Devriendt), Ben (Samuel D Anderson) e Helen (Gwen Currant).

A experiência, obviamente, gera reclamações para a diretora, a elegantérrima senhorita Dorset (Sidse Babett Knudsen). Mas ela já está sob os encantos da senhorita Novak, que lhe deu um chá de fabricação própria para estimular o jejum. A mãe de Ben, que só se matriculou no curso para aumentar sua nota de humanas e conseguir uma bolsa de estudos, é a primeira a reclamar, mas outros pais depois se enfurecem com a conduta da senhorita Novak, que se põe muito próxima e influencia os alunos. E, como acontece em qualquer escola particular, a diretora não quer ser afetada por pais descontentes.

Elsa já sofria de transtornos alimentares antes de entrar para o Clube Zero. Ela, assim como a mãe, era bulímica e vomitava depois das refeições — inclusive há duas cenas de embrulhar o estômago envolvendo o vômito de Elsa. Fred, por outro lado, é diabético e suas doses de insulina se descontrolam com o jejum autoproclamado. É dele que a senhorita Novak mais se aproxima e afeiçoa, pois os pais do menino moram em outro país.

A trilha sonora é marcada por sons de percussão, quase ritualísticos, pois o que a senhorita Novak monta com seus cinco alunos é praticamente uma seita. Merece destaque também a fotografia, que não nos diz exatamente em que lugar e época se passa o filme — poderia ser hoje, na escola que seu filho frequenta. As gravações foram feitas em Oxford, no mesmo momento que outro filme perturbador era lá gravado, “Saltburn”.

Fica claro no filme que passar fome por vontade própria é um ato de rebeldia elitista. Rebeldia porque a senhorita Novak prega que os alunos, ao recusar comida, estão indo contra as mentiras ensinadas por seus pais sobre a necessidade de se alimentar. Elitista porque a história se passa numa escola de elite e aos pobres as únicas opções possíveis são a fome ou a saciedade com aquilo que têm.

É impossível para o cinéfilo não se lembrar de outro filme, com uma execução mais polida, sobre uma professora que doutrina os alunos: “A Primavera de uma Solteirona” (1969), que rendeu o Oscar de Melhor Atriz à britânica Maggie Smith. Nele, a professora também tem um grupo de quatro pupilas — “As Meninas Brodie” — que influencia com seus discursos sobre vida, amor, plenitude… e Mussolini. Jean Brodie é fascista e por isso mesmo patética, apesar de ter poder sobre as jovens influenciáveis — que deveriam, segundo o roteiro, ser pré-adolescentes, mas foram interpretadas por atrizes bem mais velhas — e é este poder que é perigoso.

Hoje muito se fala e se denuncia sobre professores doutrinadores. Não passa praticamente uma semana sem que saiam notícias sobre professores que tiveram suas práticas em sala de aula criticadas ou mesmo silenciadas pelos pais dos alunos e pela diretoria — geralmente pelos motivos errados. Precisamos observar, como “Clube Zero” mostra muito bem, que esta doutrinação só é possível graças a um vazio existencial do qual compartilhamos, um vazio que não é exclusivo de nossos tempos de redes sociais, mas cíclico dentro do sistema capitalista. É esse “zero” que é realmente perigoso.

Em competição pela Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2023, “Clube Zero” acabou perdendo o prêmio máximo para “Anatomia de uma Queda”, excelente drama de tribunal. Produzido por Áustria, França e Dinamarca, o filme, segundo a diretora Jessica Hausner, é sobre pais que perdem seus filhos para a influência dos professores, que são malvistos e mal-pagos mas têm uma profissão fundamental. No final das contas, trata-se de uma disputa de poder: dos professores sobre os pais e de si mesmo sobre as necessidades de seu corpo, que aparentemente passam a ser autocontroladas pelo jejum, mas na verdade entram num descontrole por vezes irreversível.

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