Proibido Nascer no Paraíso, de Joana Nin

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
8 min readApr 30, 2021

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(Imagem: divulgação Sambaqui Cultural)

O arquipélago de Fernando de Noronha tem uma população estimada de 3100 pessoas. Nos últimos 17 anos, apenas quatro pessoas nasceram lá. Taxa de natalidade baixíssima? Não: esse número minúsculo é o resultado de uma lei absurda que exige que as grávidas deem à luz em Recife, capital de Pernambuco, a quase uma hora de voo da ilha principal – o que não parece ser muito, mas para uma grávida é uma viagem desconfortável. O documentário “Proibido Nascer no Paraíso” joga luz nesta realidade ao acompanhar três gestantes e questionar os interesses por trás da lei restritiva.

Ana Carolina, mais conhecida como Babalu, tem uma lanchonete especializada em tapiocas. Ione trabalha no aeroporto. Harlene é guia turística. Grávidas, as três são obrigadas a sair de onde moram, a ilha principal do arquipélago de Fernando de Noronha, com 28 semanas de gravidez e voar até Recife, a mais de 360 quilômetros, onde ficarão em um hotel até o nascimento de seus filhos. O motivo do êxodo temporário? Desde 2004, é proibido nascer em Fernando de Noronha.

Entretanto, quatro mães desafiaram a regra e quatro bebês nasceram no local entre 2004 e 2019. O último caso, noticiado inclusive internacionalmente, ocorreu em 2018, quando uma mulher deu à luz sem saber que estava grávida. Também sem saber deste detalhe, os moradores da ilha comentam brevemente o caso no documentário “Proibido Nascer no Paraíso”. Algumas pessoas gostaram da ousadia da mulher, enquanto outras acharam loucura ela ter desafiado a tradição relativamente recente.

(Imagem: trailer de “Proibido Nascer no Paraíso”)

De presídio no século XVIII, Fernando de Noronha passou a ser base militar para brasileiros e norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial, para depois se tornar destino turístico. 70% do arquipélago são cobertos por área verde protegida, e mesmo na ilha principal há restrições para construções, levando em conta ainda que todos os empreendimentos, de pequenos bares a grandes hotéis, precisam de pelo menos um sócio de Fernando de Noronha — o documentário não deixa claro se o sócio precisa ser residente ou nativo da ilha.

Em fevereiro de 2004, a maternidade de Fernando de Noronha foi fechada e foram também mudadas as regras para migração para a ilha. Uma mudança simbólica também ocorreu: a imagem de Nossa Senhora do Bom Parto — originalmente negra, mas que na imagem presente em Noronha é branca — foi transferida do hospital para um museu.

Quando Babalu questiona a direção do hospital sobre a proibição dos partos, ela recebe a resposta de que o que falta no local é infraestrutura, em especial uma UTI neonatal. Logo antes dessa cena, o documentário apresenta o trecho de outro documentário, com tons ufanistas, que declarava, em 1972, que os nascidos na ilha, assim como suas mães, tinham acesso a todos os cuidados. No documento oficial enviado a Babalu, a justificativa é que a sala de parto está desativada por não haver anestesista nem material para reanimação neonatal ou realização de cesariana.

(Imagem: divulgação Sambaqui Cultural)

A razão da proibição pode estar oculta em questões econômicas. A diretora Joana Nin comenta:

“Conversando com pessoas da comunidade, entendi que quem vive lá há muitos anos acredita que os nascimentos foram suspensos para evitar que estes bebês reivindiquem direitos no futuro. Como as terras são públicas, os terrenos não podem ser oficialmente vendidos. Eles são concedidos por meio de um Termo de Permissão de Uso — TPU, um documento muitíssimo cobiçado. E nativos têm direito a solicitar a inclusão de seu nome numa lista do programa de habitação local, em busca do mesmo espaço disputado por empresários do turismo. […] moradores permanentes — com mais de 10 anos de ilha — podem por o nome em uma lista e esperar pelo recebimento de um terreno, ou uma casa, já que oficialmente não há compra e venda de imóveis.”

Babalu acha que “eles querem acabar com a população nativa, porque isso aqui está virando a ilha de Caras. Quanto menos povo para lutar pelos seus direitos, mais eles vão ter espaço”. Além disso, o pedido de residência permanente em Fernando de Noronha depende da administração da ilha — e nem sempre filhos de nativos têm o pedido de residência aprovado.

Entretanto, como acontece com Harlene, agora é possível que bebês nascidos em Recife sejam registrados como naturais de Fernando de Noronha. Isso também preocupa Harlene: e se recifenses cujos pais nunca moraram na ilha começarem a ser registrados como noronhenses para que mais tarde essas crianças tenham direito a terras no arquipélago?

(Imagem: divulgação Sambaqui Cultural)

Como diz Harlene, “eles [o pessoal do hospital] não nos desampararam, mas faltou informação até a gente chegar aqui”. Ela acrescenta que foi como se eles se livrassem de um problema, porque, “se acontecer alguma coisa, se seu filho morrer, é sua a culpa”, é o que ela diz ao explicar a lavagem cerebral feita pelas autoridades. E, realmente, a superintendente de saúde diz a Harlene que ela pode colocar sua vida em risco, mas não a vida do feto. A mesma declaração enfurece Babalu: a equipe diz “nós nos preocupamos com seu bebê”, como se a gestante não se importasse com seu filho — o que é mais uma maneira de culpabilizar a mulher se algo grave acontecer. O único médico local, vestido de camisa Lacoste, enfatiza que nada é escondido: “quem engravida sabe dessa situação”. Mais um ponto de culpa, reforçado por um médico que deve achar que “só engravida quem quer” — quando, no próprio documentário, Harlene revela que não planejou a gravidez e é mãe solo.

Como define Harlene, as mulheres são obrigadas a deixar um local de acolhimento, onde faziam seu acompanhamento pré-natal e conheciam a equipe, e ir para um lugar de incertezas na capital pernambucana. “Uma pessoa assustada dificilmente recusa uma oferta de proteção, ainda que se sinta contrariada em seus desejos” — e essa medicalização do parto e criação de mitos vai empurrando as gestantes para Recife, a ponto de hoje algumas já acharem a regra “normal”. A situação se normalizou tanto que mesmo os amigos da ilha insistem para que Babalu vá para o continente o mais rápido possível — o que não é muito diferente dos amigos e familiares aconselhando uma mulher a fazer cesariana sem conhecer os riscos da cirurgia quando esta é desnecessária. Por isso o primeiro passo para mudar é questionar a realidade vigente, como Joana Nin faz com seu documentário. A documentarista inclusive se dirige aos turistas, que também ficariam desamparados porque não há equipe hospitalar para emergências: “É triste pensar isso, mas visitantes têm muito mais poder de barganha do que as mulheres da comunidade.”

“Proibido Nascer no Paraíso” fecha a chamada “Trilogia da Maternidade” da documentarista Joana Nin. O primeiro filme da trilogia foi “Meu Bebê Reborn” (2018), que começa com a estranhíssima simulação de uma cesárea para o nascimento do bebê reborn, um boneco hiper-realista; e foca mais no processo de fabricação das bonecas por artesãs chamadas de “cegonhas” do que no ato de maternar os bebês reborn, com algumas exceções — como da mulher que perdeu sua filha em um acidente e encontrou algum consolo em uma boneca parecida com a menina. Um momento interessante e revelador vem quando uma dessas artesãs revela que raramente as clientes querem bebês reborn negros.

(Imagem: divulgação Sambaqui Cultural)

O segundo filme da trilogia, “Ultra Bebê” (2018), mostra os usos da ultrassonografia e cria um microcosmo da maternidade no Brasil. Utilíssima para realizar diagnósticos, a ultrassonografia passou a ajudar também na espetaculazarização da maternidade, com exames sendo exibidos para famílias inteiras e ultrassons 3D servindo como base para impressões dos fetos em 3D. Essa tecnologia pode ter fins louváveis, como permitir a uma gestante com deficiência visual tocar um modelo do feto que carrega, ou mais fúteis, como servir de base para uma estatueta ou uma joia na forma do feto.

Ali, vemos os contrastes, por exemplo, entre o casal que opta por parto domiciliar e não quer fazer nenhum ultrassom em excesso e os que veem outros usos para o exame. Além disso, vemos um parto normal e três cesáreas — uma por vontade dos pais, que chamam a família para assistir ao parto numa sala anexa e fazer uma festa, e outra claramente sem indicação precisa, que deixa a gestante frustrada, e ainda por cima obriga o recém-nascido a ficar no berçário, quando deveria ter ficado junto à mãe. Realmente, um pequeno retrato do gestar e parir no Brasil.

(Imagem: divulgação Sambaqui Cultural)

“Proibido Nascer no Paraíso” fez Joana Nin descobrir que o desejo da mulher é ainda mais invisível do que me parecia antes. Nos tornamos transparentes no dia em que as outras pessoas tomam conhecimento de que temos um feto dentro de nós. Ele ainda não é um bebê, não tem vontade própria nem personalidade formada, não fala nem se expressa, mas nossa barriga passa a ser sempre o primeiro e o último foco do olhar de quem nos vê de fora.” O corpo da mulher grávida pertence à sociedade: essa verdade pode ser observada através de pequenas interferências — como estranhos que se acham no direito de palpitar sobre ter parto normal ou fazer cesariana, qual nome dar e como criar a criança — e até de grandes violações de direitos — quando estranhos se acham no direito de tentar impedir um aborto legal.

Esta não é a primeira vez que uma produção audiovisual trata da lei bizarra de Fernando de Noronha: em 2018 foi filmado o curta-metragem de ficção “Parto Sim!”, de Katia Mesel, considerada a primeira diretora do estado de Pernambuco. Em determinada altura do curta, a personagem grávida chega a uma conclusão: em Fernando de Noronha tratam as tartarugas melhor do que as mulheres, porque as tartarugas ao menos têm seus ninhos protegidos e sua desova é feita em paz, enquanto as mulheres são expulsas da ilha para parir. Ela também menciona que, por causa da exigência de sair da ilha com 28 semanas de gravidez, a licença-maternidade é adiantada — tudo conspira contra o bem-estar da mulher e da criança.

Como apontou uma resenha no Letterboxd: “É o Estado controlando corpos femininos para controlar a terra”. E o controle dos corpos femininos está na ordem do dia, começando na resolução do Conselho Federal de Medicina, em 2019, que determinava que grávidas não poderiam discordar de decisões médicas — o que aumentaria as cesáreas desnecessárias e até impediria o aborto legal, dependendo da crença do médico — até a recente decisão do Ministério da Saúde de esterilizar mulheres com HIV, tuberculose, detentas, prostitutas e moradoras de rua com implantes subcutâneos.

No parto, a mulher é muitas vezes engolida pelo sistema, como a tartaruga de Noronha é engolida pela onda. São muitas, todos os anos, que tentam nadar contra a maré mas morrem na praia, tendo de ressignificar o trauma de terem parido sem que respeitassem suas escolhas. Jogar luz sobre quem tenta vencer o sistema, ainda que sem sucesso, é o primeiro passo: precisamos mostrar a dura realidade que é parir e nascer no Brasil, e acima de tudo questionar por que a mulher não está no centro de um processo que a afeta tão intimamente.

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