Trilogia “O Renascimento do Parto” e a violência obstétrica de cada dia

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
9 min readMay 11, 2019

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(Fonte: página do Facebook O Renascimento)

O corpo feminino é perfeito. Entretanto, a sociedade capitalista criou toda uma cultura que faz a mulher acreditar que seu corpo não é perfeito — e não estamos falando apenas dos padrões de beleza inatingíveis. Estamos falando de como a sociedade convence a mulher que ela é incapaz de parir naturalmente e, assim, o nascimento é colocado na mão dos homens e transformado em negócio, no qual mãe e bebê sempre saem perdendo.

Pode parecer estranho um site que já defendeu o aborto em várias ocasiões falar de nascimento, mas não é: aborto seguro e parto sem violência deveriam ser as duas faces da moeda garantidas para a boa saúde reprodutiva da mulher.

Na hora do parto, a mulher é ao mesmo tempo considerada adulta — uma vez que está ali porque transou — e infantilizada — porque não pode tomar decisões sozinha. O movimento a favor da humanização do parto não se limita a uma batalha entre parto normal e cesárea, mas sim busca retomar o protagonismo da mulher na hora do parto, para que ela possa tomar suas decisões e ser atendida com base em evidências, e para que não fique à mercê de médicos e enfermeiros que mentem para a mãe com o intuito de fazer o parto do jeito que eles querem — isso quando não violentam física e psicologicamente a mulher que está parindo.

A ideia do protagonismo da mãe na hora do parto assusta a ala mais conservadora, elitista e delirante da classe médica, de modo que alguns chegam inclusive a dizer que parto normal é “coisa de esquerdista” — o que significa que a maioria das nossas antepassadas era de esquerda e não sabia!

Num momento de sequestro do protagonismo e aceitação da violência obstétrica, não há obra mais importante no audiovisual brasileiro que a trilogia “O Renascimento do Parto”, que será destrinchada a seguir.

(Fonte: página do Facebook O Renascimento)

Como mencionado por um médico e uma enfermeira obstetra no primeiro filme da trilogia, muitas modificações foram trazidas pela inserção da figura do médico, homem, no parto: a necessidade de a mulher parir em posição litotômica (deitada), que é mais prática para o médico, mas péssima para a mulher, a adição de tecnologia ao parto, o desaparecimento da figura da parteira e a transformação do parto de um evento familiar e doméstico para um evento cirúrgico e hospitalar. Claro, as mortalidades materna e infantil caíram muito com o avanço da medicina junto a essas mudanças — mas o custo delas está sendo pago pelas mulheres, na forma de traumas, violência e perda de protagonismo.

Como dito, o modelo tecnocrata separa mente e corpo, e trata o corpo humano como uma máquina. Assim, todas as atividades fisiológicas são padronizadas, inclusive o nascimento. É preciso nascer em um número máximo de horas, desconsiderando que cada corpo, e também o estado mental de cada mãe, vai fazer o trabalho de parto evoluir em velocidade diferente. E o resultado é um só: dá-lhe cesárea sem indicação real.

Desculpas usadas para mandar a mulher para a cesárea (Fonte: página do Facebook O Renascimento)

É impressionante cada vídeo de cesárea presente no documentário: cirurgias rápidas, verdadeiramente puxando o bebê do útero como quem puxa um objeto que está emperrado no fundo de uma gaveta. O cordão umbilical é cortado imediatamente — o que aumenta o risco de anemia para o recém-nascido. Mãe e filho são separados e a mãe, por vezes amarrada na maca, só vê seu filho por alguns segundos antes de ele passar por várias intervenções que são ritualísticas, e não baseadas em evidências científicas.

A indústria da cesárea é inclusive alimentada por fraudes. Uma mãe, Carmen Campbell, conta como seu obstetra a mandou para um ultrassonografista que diagnosticou que o bebê tinha três voltas do cordão umbilical no pescoço. Só havia um problema: Carmen percebeu que a imagem no ultrassom não era de sua filha. Ao consultar outro ultrassonografista, ela percebeu que, de fato, o bebê não tinha nada.

(Fonte: página do Facebook O Renascimento)

A via de nascimento acaba determinando muitas coisas na nossa vida. Um estudioso menciona várias vezes o coquetel de hormônios liberados no trabalho de parto, cuja ausência tem efeitos prolongados. A cesárea agendada, sem indicação real, causa estadias prolongadas e desnecessárias na UTI neonatal e problemas respiratórios. Para a mãe, depressão pós-parto e risco maior de hemorragia.

O primeiro filme também traz conceitos essenciais. Um deles é o parto humanizado, que NÃO é necessariamente um parto em casa ou na água — mas sim um parto em que as escolhas da mãe são respeitadas. É também explicado o papel da doula, uma acompanhante treinada cuja presença ajuda antes, durante e depois do nascimento. E o que chamamos de parteiras hoje no Brasil são, na verdade, obstetrizes, uma nova profissão no mercado que está apta a acompanhar partos de baixo risco.

(Fonte: página do Facebook O Renascimento)

Isso tudo foi no primeiro “O Renascimento do Parto”, que estreou em 2013. De lá para cá, muita coisa mudou — para pior, como mostram os dois outros filmes da trilogia, que estrearam em 2018. “O Renascimento do Parto 2” trata principalmente de violência obstétrica — e deveria ser visto por todos os médicos e sobretudo pelo Ministro da Saúde, que recentemente proibiu o termo “violência obstétrica” dentro do Ministério, indo contra a Organização Mundial da Saúde e sufocando mais uma pauta de direitos humanos. A justificativa do Ministério é que “não há intenção do obstetra de causar dano”. Por trás desta justificativa há uma questão mais profunda: parte do rechaço do Brasil pelo termo “violência obstétrica” vem do fato de que o termo foi usado pela primeira vez na Venezuela. Nesta guerra ideológica, quem perde são as mulheres.

Entretanto, como o documentário mostra, a violência obstétrica é usada para outros fins: apressar o parto, vender cesárea (para a mulher traumatizada num parto futuro ou para aquelas que ouvem seus relatos traumatizantes), mostrar que “é o médico que manda aqui”, até mesmo expressar a opinião sexista e autoritária do médico ou, pasmem, para residentes TREINAREM fazer episiotomia (que é pra lá de desnecessária) e sutura. Sim, isso é narrado no documentário: como uma paciente foi usada de cobaia por residentes na hora do nascimento de seu bebê.

(Fonte: Helô D’Angelo no Instagram)

Muitas coisas contribuem para a permanência da violência obstétrica. Uma delas é a normalização das práticas violentas, como conta uma mulher cuja mãe a acompanhou no pós-parto e lhe disse “é assim mesmo” quando a mulher reclamou que havia sido cortada contra sua vontade. Outro fator é o racismo: mulheres negras e indígenas sofrem mais com a violência obstétrica, pois são consideradas mais fortes, por isso estariam “reclamando sem razão” e é inclusive comum que lhes seja negada a cesariana em casos de vida ou morte — enquanto desculpas mil são inventadas para empurrar mulheres brancas de classe alta para a cesárea.

A edição frenética vai e volta entre exemplos revoltantes de violência obstétrica e boas práticas de parto humanizado. A história do ativismo pelo parto humanizado, iniciado nos anos 60 na Europa e nos EUA, é mencionada — tal ativismo foi influenciado pelos movimentos hippies e feministas da década. Falando em feminismo, uma excelente entrevistada fala como a misoginia é um pilar mantenedor da violência obstétrica, pois a mulher, depois de dar à luz, corre o risco de deixar de ser objeto sexual — e por isso cesáreas são preferidas, para não deixar a vagina “frouxa”, e o terrível “ponto do marido” é uma prática comum em tantos partos.

São mostradas as práticas de acompanhamento de parto na Inglaterra e na Alemanha, provando que, na saúde e em outras tantas áreas, o Brasil prefere ir na contramão dos países desenvolvidos apenas para manter os privilégios de poucos.

(Fonte: página do Facebook O Renascimento)

O terceiro e último filme da trilogia vem para provocar e reforçar. Ele começa falando sobre parto orgásmico, algo que só nos parece contraditório porque, como a entrevistada diz, a visão religiosa e patriarcal nos faz dissociar a mãe do ser sexual — e aceitamos de bom grado que um ser humano nasça da dor, mas não que nasça do prazer.

Boas práticas são mostradas na Nova Zelândia, onde um movimento forte pelo parto humanizado resgatou a autonomia das mulheres, na Holanda e também no Brasil.

Mas nem tudo é esperança. Com uma música digna de filme de terror ao fundo, um bebê recém-nascido é banhado por uma enfermeira não muito delicada. Isso exemplifica um dos muitos exemplos de violência pediátrica que acontecem logo após o parto: dar banho sem necessidade. Outra violência tremenda é a aplicação de colírio de nitrato de prata, que se tornou prática recorrente, mas que só é necessário para bebês cujas mães têm feridas decorrentes de gonorreia na hora do parto.

Novamente um membro da equipe tenta entrar num hospital para gravar — uma tentativa sem sucesso já havia sido documentada no segundo filme. Ela, obviamente, não consegue autorização para gravar, mas enquanto espera entrevista um grupo de pais de bebês na UTI. Novo show de horrores: um dos pais diz que há mais bebês na UTI do que no berçário do hospital, e que a maioria fica ali porque nasce roxo, sem ar — sendo que todo bebê nasce roxo. Pelos relatos dos pais, a violência não acaba na sala de parto: atravessa o corredor e vai para a UTI.

É apresentado o conceito de plano de parto, um documento muito útil que acaba de ser proibido pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (CREMERJ). Falando em CREMERJ, o obstetra Jorge Kuhn conta a perseguição que sofreu do CREMERJ e do CREMESP por ser ativista em prol do parto domiciliar. Outros tantos conceitos importantes no mundo do nascimento — litotomia, lavagem intestinal, VBAC, placenta prévia, prolapso de cordão — são apresentados, incluindo a famigerada episiotomia. Aliás, por que, como pessoas que condenam a mutilação genital feminina praticada em países africanos, nós ainda somos coniventes com a episiotomia?

(Fonte: página do Facebook O Renascimento)

Uma mãe relata como seu parto, sem protagonismo e sem a devida atenção da equipe médica, reflete na maneira como ela atua como mãe: hoje ela está sempre insegura, acreditando que não vai dar conta de cuidar do filho. Outra mãe foi enganada por sua obstetra, que também era sua melhor amiga, que fez um procedimento de indução sem avisá-la. Mais outra, ao sofrer um aborto espontâneo com hemorragia, não recebeu atendimento imediato: em vez disso, paramédicos, médicos e enfermeiros primeiro fizeram sessões de interrogatório com o objetivo de fazê-la confessar que tinha provocado o aborto. Um psicólogo diz que a síndrome de burnout faz com que muitos médicos percam a empatia no trato com o paciente — mas sabemos que isso é só um dos muitos fatores para a existência da violência obstétrica.

Pelo que vemos na tela — e pela duração menor de “O Renascimento do Parto 3” em comparação com os outros dois — fica claro que muito material não utilizado no segundo filme veio aqui para o terceiro. A edição, também cheia de idas e vindas, procura criar uma crescente de interesse, para que fiquemos atentos ao desenrolar das histórias. Assim, o documentário toca em pontos importantes, embora ainda tenha faltado apresentar toda a fisiologia do parto. Sim, “O Renascimento do Parto” foi feito para ser uma introdução ao assunto — e ele cumpre sua missão como uma introdução instigante.

Depois de mais de quatro horas vendo a trilogia, só posso dizer: como tudo neste país, nascer no Brasil também é um negócio difícil. E cabe a nós, mulheres, mudar isso.

A trilogia “O Renascimento do Parto” está disponível, completa, na Netflix.

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