Tecnopolíticas do Cocôzap

Rodrigo Firmino
cocozap
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6 min readNov 4, 2020

Por Rodrigo Firmino e Andrés Luque-Ayala

Dados e ativismo, mediados por algumas ferramentas e pelo digital, parecem estar formando uma nova frente de ação política nas favelas e periferias. É preciso entender o Cocôzap e o data_labe em um contexto amplo de redes de solidariedade e agenciamento suportadas pelo trabalho com dados e narrativas "da margem" como produção de arranjos sociotécnicos de resistência.

Nosso contato com o Cocôzap e com o data_labe se deu por um interesse de pesquisa, por um projeto de parceria entre a PUCPR e a Durham University financiado pela British Academy sob o título “Hacking the Urban Environment”. O objetivo inicial foi examinar o papel das ferramentas digitais e do ativismo de base na reutilização/redefinição do urbano/cidade por meio da atuação de movimentos/grupos de hackers cívicos no Brasil, tendo como foco infraestruturas urbanas e os fluxos que compõem a relação cidade e natureza.

O projeto foi pensado em 4 fases, começando em 2019 e com previsão inicial de término em 2020 (adiada para 2021 devido à pandemia). A primeira fase foi exploratória, em que fizemos um levantamento sobre grupos do que, até então, chamávamos de “hackers cívicos”, coletivos de programadores trabalhando com dados e desenvolvendo soluções tecnológicas para problemas urbanos, e resultou no primeiro contato que tivemos com o trabalho do data_labe.

Participante do Hackathon do CocôZap (data_labe, dezembro de 2019). Foto: Andrés Luque-Ayala.

As fases 2 e 3, principalmente, foram pensadas para uma pesquisa etnográfica junto ao data_labe com a proposta de compreensão de suas formas de atuação, especialmente com foco no projeto do Cocôzap, pois este representava a convergência de vários interesses de nossa pesquisa, tais como:

  1. uma plataforma digital mediando o enfrentamento de questões urbanas;
  2. a participação da população como geradores de dados e conteúdos;
  3. a relação direta com o fluxo de água e resíduos urbanos (saneamento);
  4. a atenção à tecnopolítica envolvida na construção social desses sistemas tecnológicos;
  5. e o ativismo como possibilidade de resistência a condições de precariedade e vulnerabilidade.

A quarta e última fase de nossa pesquisa corresponde ao momento em que nós nos afastamos do caso em observação (data_labe e Cocôzap) para refletirmos sobre todo o processo e sobre como os objetivos iniciais podem ser mobilizados para construção de descrições analíticas de tudo o que foi observado no sentido de gerar produtos da pesquisa. Estes produtos têm a ver com algum tipo de avanço no campo dos estudos urbanos e da geografia, no entendimento de como é possível compreender o data_labe (e outros grupos semelhantes) sob a perspectiva de suas visões e aspirações para a reinvenção da cidade e suas tensões com o território da favela e das periferias por meio da materialização de suas próprias versões de um Rio de Janeiro ou de uma Maré digitalmente mediada.

Dados, narrativas e territórios em disputa. Foto: Rodrigo Firmino.

O que temos observado é que uma dessas possíveis materializações é representada, simbolicamente, pelo Cocôzap e tudo o que ele sempre pode vir a ser (e que talvez nunca tenha se tornado, o que não importa!). E aqui fazemos uma leitura preliminar sobre tudo o que temos percebido. O simples fato do Cocôzap ser construído (materialmente e discursivamente) como essa, supostamente, poderosa plataforma de ativismo de dados ligado ao saneamento pela geração cidadã de dados — independente do sucesso ou insucesso de suas ações concretas (a mobilização, as queixas, os dados em si, etc.) — tem força suficiente para posicionar o data_labe e sua capacidade de agência como ator em disputa pela construção tecnopolítica de vários arranjos urbanos que importam aos corpos e territórios pretos, pobres, LGBTQI+, femininos e invisibilizados da Maré e de outras regiões semelhantes do Rio de Janeiro.

É claro que é importante superar uma visão simplista de que estamos falando apenas de representações simbólicas potencializadas por tecnologias emancipadoras, mas para isso é importante compreender as várias nuances que compõem o Cocôzap (em suas várias versões), suas formas de construção — inclusive como parte inseparável do data_labe — suas materialidades (dados, planilhas, websites, WhatsApp, etc.) e sua atuação política. Ao fazer essa leitura, tentamos propor para o nosso projeto, o que o próprio Cocôzap almeja fazer com o saneamento para a população da Maré: abrir a caixa-preta, compreender as redes técnicas, sociais, econômicas, políticas e culturais (humanas e não-humanas) que compõem o saneamento.

Como entender os arranjos sociotécnicos do saneamento? Foto: Rodrigo Firmino.

Nós também precisamos situar nosso projeto epistemologicamente no campo das ciências sociais. Isso nos traz de volta à fase 3 da pesquisa, que fica demarcada por essa passagem do Cocôzap 3.0 para uma nova fase. Para o data_labe, trata-se de mais um renascimento do Cocôzap (ou mais uma mutação, sem perder de vista seus objetivos originais), mas para nós é o momento de diminuir o ritmo da coleta de dados, impressões, informações, observações, e revisitar tudo sob a luz das teorias que nos guiam na interpretação que faremos do Cocôzap e do próprio data_labe.

Uma das motivações e inspirações para essa nossa interpretação vem do trabalho de Gillian Rose sobre a “agência pós-humanística na cidade digitalmente mediada”. A perspectiva de uma abordagem pós-humanística nasce com os trabalhos que procuram entender as relações entre a humanidade e as máquinas, cada vez mais sofisticadas a partir da segunda metade do século XX. Ou seja, estamos falando da filosofia que sustenta a compreensão, nos estudos urbanos, das interações entre a cidade, o digital, e ativismo. E ao olhar para o data_labe e suas formas de exercitar agência, procuramos caminhar no sentido de uma recomendação de Gillian Rose que postula a necessidade de “reconfigurar a compreensão das cidades mediadas digitalmente e reconhecer a reinvenção e a diversidade da agência pós-humana urbana”.

Essa diversidade vem de diferentes temporalidades e manifestações territoriais, sempre em disputa e construção. Isto é, procuramos guiar nosso projeto sob uma perspectiva teórica pós-humanística, neo-materialista e decolonial dos movimentos de ativismo digital (ou de dados), no contexto do urbanismo digital. Esse é o contexto que estamos tentando entender melhor, no qual estamos tentando posicionar a pesquisa e as observações sobre o data_labe e o Cocôzap.

A parceria que definimos para a construção da versão 3.0 do Cocôzap — entre data_labe, PUCPR e Durham University, com a participação da pesquisadora associada Iris Rosa e dos, então bolsistas residentes, Samantha Reis, Adriano Mendes e Breno Souza — , independente de qualquer tipo de resultado concreto atingido neste período, é essencial na busca pela compreensão de todos esses aspectos. Mesmo que a pandemia tenha levantado inúmeras incertezas e modificado completamente os planos que tínhamos inicialmente, a proximidade que tivemos com o data_labe, principalmente pela participação nas atividades do Cocôzap, proporcionou um posicionamento etnográfico fundamental, e que provavelmente não teríamos tido como fazer de outra forma.

Hackathon do CocôZap (data_labe, dezembro de 2019). Foto: Rodrigo Firmino.

Por fim, o que nós temos para oferecer ao data_labe a partir do momento de encerramento do Cocôzap 3.0? A resposta que temos a dar neste momento é que, além dos recursos materiais que tornaram essa parceria possível, podemos oferecer essas impressões e leitura de como compreendemos, preliminarmente, o papel do ativismo digital na reutilização/redefinição do urbano/cidade por meio da mobilização de tecnologias digitais (e seus desdobramentos tecnopolíticos por práticas de ativismo de dados) — quase que invertendo a proposição original de nosso objetivo inicial.

Nossa aproximação com o data_labe (na pesquisa e na parceria) foi transformadora, não só pelo material que tudo isso gerou para a pesquisa ou pelas reflexões que tem estimulado, mas também pelas relações de afeto (com todas as pessoas do data_labe, com o Cocôzap e com a Maré). Isso fez crescer ainda mais nossa admiração pelo tipo de atuação que organizações como o data_labe têm na composição do mosaico urbano contemporâneo, individual e coletivamente, e certamente contribui para a renovação de nosso interesse em questionar os processos tecnopolíticos que compõem as relações entre a construção das cidades e o ativismo digital.

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