Congresso das Testemunhas de Jeová realizado na Arena Santos.

Por dento das seitas: entrevista com ex-testemunha de Jeová

Daniele Cavalcante
c/textos
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14 min readFeb 15, 2019

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Isolamento social. Trabalho não remunerado. Terror psicológico. Violência doméstica. Essas são algumas das experiências comuns da vida de Ingrid Santos, enquanto foi uma Testemunha de Jeová.

Desde que comecei a escrever sobre seitas abusivas, em 2016, descrevi as características de um tipo muito específico de culto: aqueles que, em algum momento, acabam convencendo ou tentando convencer os membros a doar tudo o que tem e morar em alguma comunidade afastada da cidade.

Acontece que há muitos outros tipos de cultos destrutivos que têm várias características em comum com essas seitas que eu costumo descrever, ainda que não levem ninguém a viver no meio do mato. E um deles é o Testemunhas de Jeová.

Ingrid tem hoje 26 anos, e é uma profissional de Serviços Gerais, em Mariana, MG. Mas enquanto foi uma Testemunha de Jeová, ter um emprego era quase um ato de rebeldia.

A mãe de Ingrid já era Testemunha de Jeová quando deu à luz a filha. Desde o seu nascimento, o grupo religioso teve uma forte presença na vida de Ingrid, e influenciou seu meio familiar, sua educação, e muitos outros os aspectos de sua vida.

Seu pai era um homem altamente abusivo, que Ingrid descreve como “psicopata”, mas os Testemunhas de Jeová coagiam a família a sempre respeitá-lo e jamais abandoná-lo, citando trechos da bíblia para impedir qualquer atitude de defesa contra a violência doméstica.

Essa persuasão coercitiva ocorreu principalmente depois que o pai começou a frequentar a seita. “O divórcio é extremamente mal visto, o ideal é manter o relacionamento a qualquer custo”, contou-me Ingrid durante o relato.

“A esposa deve sempre deixar o seu marido ter a palavra final. É extremamente comum as mulheres tolerar traição, abusos psicológicos e agressões dentro do casamento e serem levadas a não divorciar e/ou não levar à justiça humana.”

Uma das principais armas das Testemunhas de Jeová para controlar o comportamento e a vida dos seus membros é o medo. Ingrid relata que “havia medo muito grande de desagradar a Jeová”, e que a seita usa a bíblia para comparar os ex-membros a “servos infiéis de Deus no passado”, dizendo que “seríamos destruídas no dia do juízo final”, entre outros tipos de terror psicológico.

Outra característica é o trabalho sem remuneração. Ingrid relata que, além de fazer a limpeza e manutenção das igrejas e locais de congressos, os membros também tiveram que construir estes locais, após assinarem um termo de serviço voluntário, ou seja, sem remuneração. Também trabalhavam “voluntariamente” nas gráficas do grupo religioso.

“Desde criança era colocado bastante medo, pavor na minha mente sobre a vida fora da seita e suas consequências.”

Testemunhas de Jeová também são convencidos a se isolar socialmente, de acordo com o relato de Ingrid. Eles são ensinados que não é bom ter amizades de pessoas que não sejam membros da religião.

As pessoas são convencidas a se afastarem também de familiares que não são fazem parte dos Testemunhas de Jeová. “Alguns ensinamentos básicos era que não existia felicidade fora da seita, tampouco pessoas boas e sinceras”, conta.

Com esse tipo de isolamento social, muito comum em qualquer tipo de seita que tente controlar a vida de seus membros, fica ainda mais difícil abandonar o grupo porque ele se torna tudo o que a vítima tem.

Hoje em dia, Ingrid luta para superar os efeitos negativos de uma vida inteira dentro das Testemunhas de Jeová. “Me tornaram uma pessoa frágil, introvertida e medrosa”, relata.

“Quando se sai da congregação das Testemunhas de Jeová, você estará sozinho, sem amigos, sem família, pois foi levado a se afastar de todos.”

Confira abaixo a entrevista na íntegra.

Comtextos: Com que idade as Testemunhas de Jeová entraram na sua vida e até quando você permaneceu lá?

Ingrid: Eu fui criada pela minha mãe, que era Testemunha de Jeová. Desde o nascimento fui introduzida nessa religião. Decidi abandonar por completo a vida como TJ pouco antes de completar 25 anos. Minha mãe e eu saímos juntas e permanecemos unidas e nos apoiando.

C: Qual o nível de interferência da seita dentro da sua casa/família? Havia alguma separação entre a vida normal e as atividades dedicadas às Testemunhas de Jeová ou tudo girava em torno da seita?

I: A interferência na minha família sempre foi muito grande, visto que não era aconselhável manter laços afetivos com pessoas que não eram TJ, inclusive familiares. Sendo assim, sempre fiquei afastada de tios, primos, irmã. Por outro lado, fui criada também por um pai abusivo e com ele não poderia romper laços, porque os filhos deveriam sempre honrar (o que para a seita era perdoar e tolerar tudo) pai e mãe (Efésios 6:01).

Quanto às atividades do cotidiano, tínhamos uma liberdade bastante limitada, de certo modo tudo girava em torno da seita. Livros, músicas, filmes e até desenhos infantis eram controlados. Nada que “refletisse princípios do mundo” era permitido.

C: Em algum momento vocês tiveram que morar perto de outros membros da seita, ou em algum lugar mais afastado da cidade?

I: Não. Mas éramos ensinados que em algum momento da história, os governos nos perseguiriam para matar, e então precisaríamos nos esconder em locais que só os “irmãos” saberiam onde era. Por isso deveríamos fortalecer laços com os membros e nos ocupar cada vez mais com atividades e serviços relacionados à seita, o que incluía viagens longas, reuniões e diversos tipos de serviços.

C: Pode descrever um pouco sobre essas viagens, reuniões e serviços?

I: As viagens eram para eventos maiores, os congressos e assembleias. Congressos geralmente tinham a duração de três dias consecutivos e duravam todo o dia. Eventos geralmente cansativos e monótonos, que inclui palestras, discursos, videos e demonstrações num palco. Reúnem até 3.000 pessoas. Há três pausas para refeição, e durante todo o evento somos severamente exortados e não nos distrair com nada, não conversar, não andar pelo local desnecessariamente, e fazer anotações sobre todas as palestras. Antes e após o evento, realizamos a limpeza total do local. Há locais próprios, mas também aluga-se estádios para o evento. Algumas pessoas (que tem condições) se hospedam em hotéis próximos ao local, mas a maioria faz viagens de ida e volta durante os três dias.

Como o congresso é sexta, sábado e domingo, o ideal é ir todos os dias, sem falta. Se você tiver que trabalhar nesses dias, terá que pedir ausência para o chefe. Mas a prioridade é sempre a seita, então se o seu chefe não liberar você para comparecer no Congresso, você deve confrontá-lo e impor sua prioridade. Não se deve temer perder o emprego, pois se isso ocorrer, Jeová proverá outro. Deve-se ter fé. E aliás, aqueles que perdem o emprego para comparecer nesses eventos, são tidos como exemplo de fé.

Congressos duram três dias, uma vez por ano. Assembléia duram um ou dois dias, duas vezes por ano.

As reuniões abertas ao público são duas vezes na semana. Onde estudamos repetidamente livros e revistas dos TJ. Não basta ir à reunião, os membros tem que participar ativamente. Responder perguntas em voz alta, ler a bíblia no palco, fazer encenações e pequenas peças teatrais. Temos classe de oratória, e a oratória precisa ser impecável, tanto para adultos quanto crianças. Todo mês recebe-se uma “designação”, onde você precisa preparar uma apresentação sobre um tema bíblico. Você encena, e é avaliado em público. Caso não se saia bem, é chamada sua atenção na frente de todos, apontando seus erros. Eu mesma tinha ataques de ansiedade e passava mal antes de subir ao palco, com medo da severa avaliação pública.

Nessas reuniões são proferidos (quando necessário), discursos de humilhação pública, onde eles fazem uma palestra para um membro que apresenta algum problema de comportamento. O problema é exposto, e a pessoa é comparada com algum servo infiel de Deus no passado. A pessoa não errou o bastante para ser expulsa, mas é tida como mal exemplo e a ordem é “cessar a convivência” com tal membro. (Ou seja, dar um gelo na pessoa, para que ela se arrependa de seu erro)

Na parte da manhã (segunda a domingo), temos o serviço de pregação (de casa em casa, com carrinhos de livros em locais públicos). Não é obrigatório ir todos os dias, mas quanto mais melhor. Cada hora que se dedica à pregação é registrada, e as pessoas que dedicam mais horas, tem mais prestígio (formando uma hierarquia, de quem prega mais).

Além disso, temos que fazer a limpeza e manutenção das igrejas e locais de congressos. Participamos da construção de todos esses locais (a construção dos locais nós fazemos e assinamos um termo de serviço voluntário, ou seja, sem remuneração).

E como se não bastasse, no tempo que temos em casa precisamos fazer “estudo da Bíblia em família” e “estudo da Bíblia de forma pessoal”.

Ou seja, a vida acaba girando em torno da seita. A pessoa que faltar com frequência nessas atividades é chamado de “irregular” (“membro fraco”). E os irregulares não são companhias boas para os membros fortes da seita, portanto são tratados com diferença.

Algumas pessoas largam tudo para dedicar até 8 horas diárias à pregação. Esses se chamam “pioneiros”, e tem muito prestígio.

Quando consegui o meu emprego, eles não ficaram felizes com isso. Disseram que uma jovem como eu deveria me dedicar totalmente à seita, que isso me atrapalharia. E de fato, atrapalhava, já que se tornava exaustivo conciliar o emprego e as atividades.

C: Que tipos de ensinamentos recebeu na infância e adolescência, e como era conciliar os ensinamentos da seita e os estudos seculares na escola?

I: Alguns ensinamentos básicos eram que não existia felicidade fora da seita, tampouco pessoas boas e sinceras. Portanto, minha vida teria que girar em torno de ser uma TJ, o que envolvia a supressão da minha personalidade e a recusa de me envolver em qualquer amizade ou relacionamento com pessoas fora de lá. E qualquer coisa que pudesse ocupar meu tempo ou desviar o meu foco, não deveria ser feita, incluindo faculdade. E eu não via problema em nada disso, renunciava tudo o que eu queria fazer, me sentia plena, não percebia o abuso, tinha certeza que as pessoas de fora eram sujas, mundanas e desaprovadas por Deus. E além do mais, havia medo muito grande de desagradar a Jeová e perder o Paraíso prometido (um lugar que só os TJ receberiam como recompensa por serem fiéis a Deus, enquanto todo o resto da humanidade seria destruída).

C: Você precisava se abster de algo que era difícil pra você?

I: Precisava assinar um documento em que eu me comprometia a recusar qualquer tratamento médico que envolvesse uso de sangue. Esse documento era registrado em cartório, com testemunhas, e era válido caso eu me encontrasse inconsciente. Era terminantemente proibido aceitar transfusões de sangue, e qualquer tratamento que envolvesse o uso total ou parcial de sangue (incluindo glóbulos brancos e vermelhos, plasma, hemácias ou plaquetas separadamente).

A regra era clara, devíamos optar pela morte (inclusive de filhos menores de idade), mas jamais aceitar (ou doar) sangue.

Nunca cheguei a precisar de sangue, mas acompanhei de perto vários casos que resultaram em morte, processos e perda da guarda ou morte de crianças.

Caso a pessoa cedesse e aceitasse o sangue, a punição era expulsão da seita.

Fora isso, tive que me abster de uma vida normal. Era proibido comemorar toda e qualquer festividade comum no país. Natal, ano-novo, páscoa, finados, dias das mães, dia dos pais — e até aniversário. Isso incluía literalmente fugir dessas ocasiões na escola e no trabalho.

C: Como você via as figuras de autoridade da seita? Eram distantes ou próximas? Você tinha liberdade para questionar?

I: As figuras de autoridade (havia hierarquia entre essas figuras também) não eram muito próximas. Pelo menos para mim que não tinha muito prestígio lá. Quando conversam comigo, geralmente estavam discretamente me avaliando, para corrigir possíveis erros. Apesar de ter passado dificuldade financeira na infância e ter precisando de ajuda para sair de um lar abusivo, nunca recebi nenhuma ajuda, em nenhum sentido.

Não era jamais permitido questionar. Aliás, isso é um pecado grave, passivo de discurso de humilhação, repreensão ou até expulsão. Perguntas demais não eram bem-vindas. Não podia questionar erros por parte das autoridades, muito menos os ensinamentos. Isso era o mesmo que ter falta de fé.

Questionamentos e tentativas de expor erros das autoridades, também poderiam ser considerados “apostasia”, um dos piores tipos de erros. Por esse motivo, é terminantemente proibido conversar com ex-membros. Não se podia ouvir o que eles tem a dizer. O ostracismo é extremo.

C: Você mencionou construções que não eram remuneradas. Houve algum outro tipo de trabalho que deveria ter sido remunerado mas não foi?

I: Na verdade, nenhum serviço lá dentro é remunerado. Sempre assinamos termos de voluntariado. Durante as construções, cozinhamos, limpamos, para muita gente.

Algumas pessoas largam suas vidas e vão trabalhar nas gráficas, fazendo livros e revistas, também de forma gratuita. Pelo contrário, nós financiamos tudo. Não se exige dízimo, mas nos comprometemos em dar o máximo que pudermos de dinheiro.

Essas atividades logicamente exigirão o sacrifício de atividades seculares, como trabalho, estudo e entretenimento.

C: Como eles lidam com relacionamentos amorosos e sexualidade?

I: A questão da sexualidade era bem rígida. Qualquer música considerada sensual era proibida. Qualquer filme que pudesse conter cena de sexo era proibido. Roupas não poderiam ter nenhum decote ou transparência.

Namoro ou flerte era proibido para adolescentes. E somente poderia haver relacionamento entre pessoas da seita. Se envolver com pessoas “do mundo” era pecado, passivo de expulsão ou perda de cargos. Além de proibirem e descriminarem a homossexualidade. Para eles a virgindade antes do casamento é essencial para um casamento feliz. Fornicação e adultério gera expulsão.

Fui criada totalmente reprimida e alheia às questões sexuais e amorosas. O que acabou me gerando problemas na vida adulta. Lá dentro, tudo referente a sexo é errado e mundano, sendo algo estritamente restrito a casais. O próprio corpo é um tabu.

Quando saí, porém, descobri que haviam casos de adultério, fornicação e pedofilia ocultos entre os líderes.

C: Além da homofobia, você também presenciou algum tipo de racismo, xenofobia, machismo e coisas semelhantes?

I: O preconceito contra pessoas com poucas condições financeiras é algo muito marcante em minha memória. Preconceito que eu sempre sofri muito. Por mais que eles neguem isso, por mais que preguem a igualdade, se você não tiver boas condições, será tratado com diferença. Pessoas abastadas, assim como pessoas com muitos cargos, serão tratadas como membros de elite.

O machismo também é bem forte. As mulheres são ensinadas a serem submissas, pois os homens estão abaixo de Cristo e a mulher abaixo dos homens. Sendo assim, a esposa deve sempre deixar o seu marido ter a palavra final. É extremamente comum as mulheres tolerarem traição, abusos psicológicos e agressões dentro do casamento e serem levadas a não divorciar e/ou não levar à justiça humana.

Após anos e anos de um casamento com um psicopata, minha mãe conseguiu se separar e conseguimos fugir de casa sem levar nada.

Após isso, líderes da seita por diversas vezes foram até nossa casa para dar sermões e nos constranger. Acusaram minha mãe de sair de casa por ter interesse em ficar com outro homem (eles sabiam que isso não era verdade), disseram que se ela fosse vista com outro homem seria expulsa, disseram para mim que eu deveria manter minha postura cristã e não deveria romper contato com meu pai. Fizeram inúmeras acusações de estarmos abandonando o lar, e que não estávamos sendo bom exemplo para a seita.

Após esses acontecimentos, decidimos abandonar totalmente a seita.

C: Você sofreu algum tipo de abuso físico ou psicológico? Havia “justificativas” para isso?

I: Fui isolada e mantida como mau exemplo, por diversas vezes, por diminuir contato com meu pai agressor.

Desde criança era colocado bastante medo, pavor na minha mente sobre a vida fora da seita e suas consequências. A ideia de ser destruída por fogo, a ideia de perder a aprovação de Deus, o inevitável ostracismo e o medo do fim vir antes de me “arrepender” do pecado, era algo muito marcante.

Antes do batismo tive que fazer um juramento, alegando me comprometer totalmente com os TJs. Reconhecia que aquilo significava a “morte” para o mundo e vida para Jeová. Nenhuma decisão seria de minha iniciativa (como sempre foi), e que a submissão aos anciãos (líderes) seria sempre evidente a todos.

C: Como foi sua saída? Foi pacífica ou mais como uma fuga? Ouviu algum tipo de ameaça?

I: Não há maneira de sair de lá pacificamente. Ou você é expulso ou você sai por conta própria. Ambas situações resultam no ostracismo: Os TJs são proibidos de ter qualquer contato com ex-membros. Não é permitido nem mesmo cumprimentar nas ruas. Sendo assim, ao me ver na rua, simplesmente viram o rosto ou fazem expressões de desprezo.

Umas duas vezes após minha saída, vieram até minha casa, e o teor ofensivo de suas conversas me fizeram passar mal ambas vezes. Usavam a bíblia para nos comparar a servos infiéis de Deus no passado, diziam que seríamos destruídas no dia do juízo final, nos acusavam de estar envolvidas com satanismo e que o “mundo” não teria piedade de nós.

Por muitos meses recebemos mensagens anônimas por celular, dizendo que estávamos envergonhando o nome de Jeová, que éramos pessoas mundanas e sujas.

Hoje simplesmente não nos procuram mais, nem cumprimentam.

C: Após sua saída, você ainda sentiu culpa? As crenças permaneceram por algum tempo?

I: Inicialmente senti bastante culpa e tinha crises de choro. Sentia falta, não imaginava uma vida fora de lá. Continuava acreditando em seus ensinamentos.

Passado uns meses, comecei a me questionar sobre tudo. Comecei a me dar conta de tudo o que vivi e sofri lá dentro.

Eu nunca tinha me dado conta de abuso algum, nunca havia questionado nada, era totalmente submissa e era também inflexível com ex-membros. Achava também que as pessoas “do mundo” eram cadáveres ambulantes, já que já estavam condenadas à destruição.

Mas quanto mais passava o tempo, mais enxergava a realidade por trás das Testemunhas de Jeová e comecei a perder o medo de Deus, a respirar aliviada.

C: Como você avalia hoje o resultado da influência da seita na sua vida emocional, psicológica e afetiva? E como você lida com esses efeitos na sua vida hoje em dia?

I: Meses após a saída, eu me achava curada e recuperada. Porém, não demorou e comecei a aceitar outras situações abusivas na minha vida. Comecei a tolerar abusos de poder no trabalho e tive um relacionamento abusivo. Porém, eu tinha dificuldade em reconhecer essas situações como abusivas. Eu comecei então a desabafar com algumas pessoas, perguntar o que elas achavam das situações que eu estava vivendo. A reação das pessoas era de perplexidade, me perguntavam “O que há de errado com você? Ainda precisa perguntar se é errado alguém fazer isso com você? Será que não consegue ver no que está se mantendo?” Foi então que eu vi que minha mentalidade era de uma serva submissa, uma pessoa que não sabia se defender de um abuso e com tendência a aceitar ordens, relevar comportamentos que me feriam.

Também comecei a perceber uma crescente falta de objetivo na vida. Isolamento social, já que não sabia me envolver, criar laços com pessoas “do mundo”, e ainda me via mentalmente condenando e julgando tais pessoas por suas ações comuns (que os TJ consideram pecado).

Hoje em dia luto contra esses efeitos todos em mim, que me tornaram uma pessoa frágil, introvertida e medrosa.

Quando se sai da congregação das Testemunhas de Jeová, você estará sozinho, sem amigos, sem família, pois foi levado a se afastar de todos. Os membros ativos te abandonarão por completo. Se eu morrer, eles não vão nem mesmo ao meu funeral.

Minha maior dificuldade hoje é tirar essa configuração mental que me torna submissa a tudo. Tenho aprendido aos poucos a dizer “não”. Hoje posso desfrutar de pequenos prazeres como comemorar meu aniversário, sem sentir culpa mortal por isso. Posso ver que existe vida além da seita e que Deus não vai me matar com fogo por deixar de seguir palavras de homens.

Não posso dizer ainda que superei uma vida inteira de reclusão e opressão, mas posso dizer que estou dando os primeiros passos rumo a uma nova vida, aprendendo a reconhecer e me proteger de outras pessoas abusivas que possam aparecer em minha vida.

Não sinto falta de absolutamente nada dentro da seita. E me sinto orgulhosa de ter tido força para sair de lá.

Pesquisa e depoimentos

Este é o primeiro depoimento de ex-membro de seita a ser publicado no Comtextos. Outros serão compartilhados em breve, o um deles pode ser o seu.

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Daniele Cavalcante
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Redatora de ciência e tecnologia no Canaltech, redatora freelancer e ghostwriter.