Por dentro das seitas: O líder está sempre certo (e você errado)

Daniele Cavalcante
c/textos
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6 min readJan 25, 2019

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Aviso: se você não está familiarizado com o conceito de seitas e cultos abusivos que abordo em meus textos, recomendo a leitura da série “Seitas Abusivas”, publicadas na Revista Subjetiva. O primeiro artigo da série define o que elas são e como agem.

Durante alguns anos eu fiz parte de um grupo estranho. Qualquer pessoa que olhasse para nós diria que algo muito esquisito estava acontecendo ali. Mas ninguém sabia exatamente o quê.

Quando alguém começa a participar de uma seita é porque foi convencido de que as promessas são verdadeiras. O sentimento inicial é de entusiasmo, pois encontramos um lugar que finalmente promete algo que dará sentido às nossas vidas. Que nos acolhe. Que nos revela verdades sobre um mundo que não compreendemos. E nos dá uma missão importante.

Por isso, após sermos levados para morar em uma comunidade isolada da sociedade, fica difícil entender o que está acontecendo conosco. É difícil negar tantos ensinamentos, transmitidos dia e noite. E, principalmente, é muito difícil questionar e virar as costas para o líder da seita, sempre tão carismático e especial.

Uma Grande Novidade

Existem muitos tipos de líder — o guia espiritual, o guru, o pastor, o evangelista, o grande sábio, o messiânico. Alguns estão até mesmo mortos, e nesse caso sempre haverá um herdeiro, alguém que levará adiante a missão, seja lá qual for.

Cada líder oferece — ou tente oferecer — algo exclusivo para atrair as pessoas. Mas todos têm algo em comum: eles têm uma missão, uma revelação divina, uma fórmula única, um método, que só funcionará se você segui-los e obedecer a todas as instruções.

Para simplificar, vamos chamar essa revelação ou método de “uma Grande Novidade”. É assim que eles vendem suas propostas aos seus seguidores: como uma grande novidade que mudará suas vidas, os levará à perfeição, ao Nirvana, ao Paraíso.

Se o líder é o porta-voz dessa Grande Novidade, ele deverá sempre se apresentar como alguém infalível. Inquestionável. Ele sempre estará certo. Seus ensinamentos não podem ser questionados. E ele coloca em prática tudo o que ensina aos fiéis.

Além disso, você depende desse líder. Afinal, foi ele quem trouxe a Grande Novidade, e você não a encontraria sozinho. A revelação não veio através de você. Somente por meio do líder você terá o conhecimento necessário para atingir o objetivo. E somente dentro da seita você poderá colocar em prática este conhecimento até atingir o objetivo.

Infelizmente, o objetivo nunca será atingido e, por isso, essa relação de dependência é perpétua.

Para reforçar a ideia de que o líder tem uma Grande Novidade que realmente funciona, muitos desses “mestres” afirmam ter recebido uma “revelação divina”, uma visão espiritual, ouviram o próprio Deus ou qualquer outra divindade, foram arrebatados e visitaram o céu, conversaram com anjos, entre muitas outras histórias mirabolantes. Alguns foram “escolhidos”, outros simplesmente estudaram muito ou viajaram por anos em busca de uma sabedoria milenar.

Alguns vão ao extremo de se proclamarem divinos, deuses, ou o próprio messias. Exemplo: Sun Myung Moon, da Unification Church, afirmava ser o novo Messias que veio para concluir a missão de Cristo.

Sun Myung Moon, que se autoproclamou messias, à direita. Em sua igreja, realizava cerimônias de casamentos em massa, nos quais milhares de pessoas que não se conheciam eram unidas em matrimônio.

Isso faz com que todos os líderes de uma seita abusiva sejam vistos como superiores, quase sobrenaturais, quando você é apenas um mero pecador à procura de salvação. Como você, tão insignificante, questiona alguém tão especial?

Você está sempre errado

Não há espaço para suas ideias ou críticas dentro de uma seita. Isso parece óbvio, uma vez que o líder já tem toda a revelação necessária, mas é importante frisar que inibir as críticas é essencial para manter o controle do líder sobre os membros.

Isso nem sempre é uma tarefa fácil quando os membros sentem alguma liberdade para se expressar. Em algumas seitas modernas é importante dar uma falsa ilusão de que essa liberdade existe e, por isso, há outros meios aos quais o líder recorre para que críticas não derrubem sua imagem de “especial”.

Nesses casos, os membros são desencorajados a dar suas opiniões através de abusos psicológicos que deturpam a imagem que eles têm de si mesmos, para que se sintam inferiores. Não basta que o líder seja uma espécie de super-homem ou profeta moderno, os seus seguidores precisam acreditar que sequer são dignos de estarem ali. São miseráveis que receberam uma chance por pura misericórdia divina, ou algo que o valha.

Ainda tem coragem de questionar a seita, sendo você tão miserável, diante de um líder tão especial? Pois desde o início da sua permanência no grupo você não deixará de ouvir o quanto você é pequeno demais, pecador, impuro, tolo, ignorante. No meu caso, no lugar onde vivi, eles gostavam muito de nos chamar de “ridículos” para nos inferiorizar.

Não basta o líder ser semi-sobrenatural, o contraste entre ele e seus seguidores deve ser bem evidente.

Claro, você não será ofendido gratuitamente. Na seita onde vivi, éramos insultados com certa naturalidade, muitas vezes em tom de brincadeira. Além disso, a doutrina deles reza que devemos ser humildes para reconhecer o quão miseráveis e tolos somos.

Além disso, quando você entra em uma seita como esta, será convencido de que aprendeu tudo errado no mundo durante toda a sua vida, enquanto o líder esteve por alguns anos se preparando através de meditação, estudos, abstinência, devoção ou sendo levado para passeios no céu.

Quem é você para questionar, não é mesmo?

Escolinha

Assim que alguém entrava na seita que eu fiz parte, era introduzido em estudos semanais. Se tornavam pequenos aprendizes, desencorajados de questionar. Afinal, estavam lá para aprender, certo?

Caso questionássemos, éramos tratados como alunos com dificuldade de aprendizado. Os membros mais antigos, responsáveis pelo ensino, agiam como se tivessem que ter muita paciência conosco, como se fossemos alunos que só tiram notas baixas.

Esses estudos eram chamados “Fundamentos”, nos quais aprendíamos novos significados de várias palavras-chave, como amor, arrependimento, humildade e fé. Não faz muito sentido questionar quando você é convencido de que tudo o que você sabe sobre essas coisas está errado.

Questione a si mesmo

Por fim, um último recurso bastante eficaz em blindar um líder inquestionável é fazer com que o membro questionador seja levado a duvidar de si mesmo.

Essa técnica era muito usada na seita onde vivi. Se alguém questionasse o líder ou as doutrinas, alguém rapidamente faria com que essa pessoa duvidasse de suas próprias intenções. “Será que você não está com inveja do líder? Você sabe que você já pecou por inveja antes”.

Em alguns casos, o questionador de fato já havia confessado o “pecado” de inveja no Círculo da Culpa. Qualquer pecado confessado anteriormente poderia ser usado para desviar o foco do questionamento.

Todas essas táticas, em conjunto com outras técnicas de manipulação, funcionam muito bem para manter os líderes livres de qualquer questionamento que comprometa o controle sobre os membros.

Meu líder é assim, será que estou em uma seita?

Essas características podem ser encontradas em muitas organizações, instituições e grupos religiosos que não se enquadram nas definições de uma seita abusiva. A maioria é normal, até um certo nível. O que determinará se o culto ou grupo é ou não destrutivo/abusivo é a intensidade com que os líderes praticam estas ações, e com qual finalidade.

A principal diferença é que em uma seita abusiva o líder usará o status de “intocável” para manipular e controlar os seguidores para obter vantagens para si.

Não se precipite em concluir que você está em uma seita. Leia os artigos linkados neste texto. Acompanhe as próximas publicações no Comtextos. O assunto é complexo e exige um pouco de paciência de leitura.

Pode me procurar também para conversar, se necessário.

Vale sempre lembrar que os membros manipulados dessa forma não são tolos — são vítimas de um sistema de abuso e, ao saírem das seitas, precisam de ajuda para se livrar das marcas negativas que essa experiência deixa.

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Daniele Cavalcante
c/textos

Redatora de ciência e tecnologia no Canaltech, redatora freelancer e ghostwriter.