Banzeiro Òkòtó, de Eliane Brum, e a sua linguagem decolonial em trechos
Sua missão em ser ponte entre a linguagem dos não brancos aos brancos é notável e eficaz
Eu sabia que "Banzeiro Òkòtó: Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo", de Eliane Brum, é uma daquelas obras em que eu preciso da versão física. O livro foi lançado em 2021, mas eu só consegui adquirir e concluir, com calma, em 2023.
Resenhar Eliane é como se desconcertar ao se encontrar com alguém que admiramos: faltam palavras. A autora, jornalista e documentarista, por sua vez, não poupou esforços ao adequar a linguagem à magnitude das histórias urgentes que conta. Seu trabalho em ser ponte entre a linguagem dos não brancos aos brancos é notável e eficaz.
O problema é que os brancos não compreendem a linguagem dos não brancos. É muito mais do que ser incapaz de entender a língua — para isso ainda há possibilidade de tradução. O que não compreendem é a linguagem, algo muito mais amplo. E, como não compreende, ridicularizam.
Banzeiro Òkòtó Foi a melhor leitura do ano até o momento e é a mais urgente. Comecei esse texto com a intenção de uma resenha geral e convincente do livro-reportagem, me acanhei. Banzeiro Òkòtó tem centenas de aspectos que rendem infinitas teses e mais do que isso, urgência de ação. Me ateio ao aspecto linguístico e às escolhas linguísticas da autora.
Eliane Brum lançou um conjunto de obra impecável sob a perspectiva da comunicação com perspectiva de gênero, raça e classe e estes são alguns dos aspectos louváveis:
Perspectiva decolonial
Brum é maestra na escolha de cada vírgula para lembrar, relembrar e enfatizar a cada página a desuniversalização urgente da branquitude. A Amazônia é CENTRO do mundo, gentes da floresta são sujeitos e "acham os brancos muito bizarros".
"Usar a palavra 'branco' aqui aqui é também uma recusa a essa pretensa universalidade, tratando-a como identidade particular."
E se alguém questionar o lugar de fala de Eliane Brum, nascida no Rio Grande do Sul, lida como branca, ela se adianta:
"O que desejo trazer para este livro é um conceito que criei a partir desse confronto com minha condição de branca num país estruturalmente racista. O conceito de 'existir violentamente'.
O valor de termos intraduzíveis
Não há espaço para se apropriar de termos da branquitude universal para descrever a realidade da Amazônia Centro do Mundo, mas há palavras suficientes para descrever o que não se traduz, mas é:
"O que nos tornamos não tem nome. Não porque não tenha, mas porque não conhecemos a sua língua."
Personificação da natureza
Não são as plantas que respiram, mas o seu sangue humano que vira água. A personificação da natureza é protagonista e elemento imprescindível para manter a Amazônia e suas gentes humanas e não humanas no centro de sua perspectiva e narrativa. Gumercinda, a tartaruga, é tão sujeita quanto a narradora e as crianças de Altamira.
Falta de linearidade entre a numeração dos capítulos
Ao numerar os capítulos fora de uma ordem crescente, a autora nos tira do conforto da trajetória linear-normativa que nos foi imposta por uma ciência empírica de raízes eurocêntricas (tá aí dois termos que não combinam: raízes e europa) até mesmo em narrativas. É a validação de outras formas do contar.
Em 31. desestrura, menciona:
"Mudar para a Amazônia me desestruturou. A maioria das pessoas pensa que se desestruturar é uma espécie de catástrofe pessoal. Me parece um modo limitado de entender a vida."
Corporalidade
A corporalidade constante na escrita de Eliane demonstra seu senso de entrega ao seu processo de 'desenbranquecimento' e centralidade da Amazônia. Mais do que um recurso, é um meio em sua escrita.
"Se você reparar, todas as minhas metáforas são corpóreas, e nem metáforas são. A Amazônia literaliza tudo."
A Amazônia é tão gente quanto nossa família e deveria ser visto tal qual.
"O corpo da floresta que já foi esgotada"
Territorialidade
Brum demonstra em cada possibilidade que corporalidade e territoralidade são inerentes na perspectiva do feminismo decolonial . O sentimento da corpa viva com memória histórica ancestral de como as opressões foram vividas é constante.
As opressões coloniais e capitalistas sobre os corpos são as mesmas sobre as terras. Títulos de capítulos que exemplificam são: 2. o clítoris e a origem da floresta, 45. estupro e reflorestamento, 15. a amazônia é mulher…
Perspectiva de classe
Não há ponto sem nó em Banzeiro Òkòtó, nem acanho ao criticar a conveniência para o sistema capitalista e o desserviço para a crise climática que é o binarismo entre 'ricos e pobres' por esquerdas e direitas. No capítulo 12. a conversão de povos-floresta em pobres, a autora ilumina o ponto de vista de "povos-floresta, que se mantiveram 'agarrados na terra' e confrontam diretamente essa interpretação do mundo". Antes que se tornem pobres passam, pelo processo de deflorestamemto e os relatos são os mais tristes e nauseantes.
Uso de linguagem não binária
A escritora optou pelo uso da linguagem não-binária em termos generalistas como humanes, gentes da floresta, adolescentes deflorestades… Ato de coragem admirável frente a um mercado editorial e audiência que não tem opiniões proporcionadas entre liberdade e inovação de pensamentos e perspectivas versus linguagem.
Interseccionalidade
Narrar e compartilhar suas experiências pessoais para ser política é o livro-reportagem todinho de Eliane. Não que o estado de emergência climática seja algo que não atravesse a todas as pessoas, mas a autora usa a interseccionalidade para lembrar que, de forma ou outra, mudar o ângulo de pensamento sobre a Amazônia é vital a qualquer habitante do planeta Terra.
Terminei a leitura estimando a sua disponibilidade ao resto do mundo. Descobri que já tem versão traduzida em inglês e agora anseio pela em castelhano.
Enquanto não posso evangelizar o registros de Eliane em castelhano, acalmo o meu coração tentando gritar em bom português-brasileiro: Banzeiro Òkòtó é uma obra prima urgente.
O mais provável é que a leitura inflame o incêndio na floresta dos pensamentos, provocando queimaduras. Para atar e sanar o torrado, pode ser que te some à tecitura do levante proposto.