Associação de distúrbios alimentares à figura masculina

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comunicacaoinclusiva
7 min readAug 27, 2021

Por: Rafael Soares Camargo / Orientadora: Profª. Drª. Mirtes de Moraes Correa

Introdução

A idealização imagética dentro do cenário da comunicação não é algo novo. Propagandas do século XIX, de um período pós-revolução industrial, já apresentavam em seus conteúdos padrões de beleza estabelecidos dentro do meio social, principalmente relacionados ao corpo.

Figura SEQ Figura \* ARABIC 1 — Propaganda de corset do século XIX. Fonte: Box1824

Com o passar dos séculos, a imposição de corpos ideais se tornou cada vez mais intensa e consolidou-se como uma forte estratégia de marketing para o mercado, que investia em produtos que prometessem o tão desejado “corpo divino”.

As consequências, entretanto, a longo prazo, não foram agradáveis. Uma geração que cresceu constantemente bombardeada com expectativas e modelos inalcançáveis, conceitos de estética surrealistas e estigmas sobre características que fugissem do padrão. Tal situação foi denominada “violência simbólica”, pelo francês Pierre Bourdieu.

É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os «sistemas simbólicos» cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a «domesticação dos dominados». (BOURDIEU, 1989)

Não demorou para que a pressão se transformasse em doenças. Anorexia, Bulimia, Compulsão alimentar, Transtorno dismórfico corporal, e a lista continua. Mentes psicologicamente instáveis em resposta à uma sociedade que sempre foi eficiente em apontar falhas e insuficiências.

Contudo, existe uma falsa ideia de que tais doenças são enfrentadas apenas pelo público feminino. Por mais que a presença de distúrbios alimentares em meio a mulheres seja, de fato, maior do que entre homens –mulheres têm 9 vezes mais anorexia e bulimia que os homens; e 2 vezes mais compulsão alimentar (G!, 2019) — isso não anula sua ocorrência dentro da população masculina.

O filme “To The Bone”, lançado pela plataforma de streaming Netflix em 2017, apesar de centrar sua narrativa em uma personagem feminina, Ellen, uma menina diagnosticada com anorexia, interpretada por Lily Collins, também visa dar visibilidade para um personagem masculino que possuí distúrbios alimentares: Luke, interpretado por Alex Sharp.

Tal visibilidade faz-se fundamental não somente por questões de conscientização, mas por atestar que o público masculino também sofre ao se ver representado em imagens de corpos perfeitos, altos e sarados, distantes da realidade vivida por muitos.

Desenvolvimento

O filme gira ao redor de Ellen (Lily Collins), uma menina de 20 anos com anorexia. Ela é introduzida como alguém que vive entrando e saindo de clínicas de reabilitação, através de tentativas falhas de sua família, completamente desestruturada, em forçá-la a melhorar e buscar deixar o distúrbio de lado, quando, na verdade, essa deveria ser uma atitude que partisse dela, corroborando com uma das mensagens mais impactantes do filme: a cura não vem de ninguém além de você mesmo (CINEMATECANDO, 2017).

De qualquer forma, após vários médicos e tratamentos terem “desapontado” as expectativas da família, Ellen é levada para recorrer à uma nova opção: o Dr. Beck, interpretado por Keanu Reeves.

Seus métodos nada ortodoxos são sua maior reputação, o que leva Ellen a dar uma chance a ele. Nesse momento, Ellen se muda para uma casa de reabilitação, sustentada pelo Dr. Beck, onde conhece e passa a viver com outras pessoas que compartilham dos mesmos problemas, porém em situações e até mesmo tamanhos diferentes. Um deles é Luke (Alex Sharp).

O garoto inglês é um dos primeiros a recepcionar Ellen na casa. Apaixonado pelas artes, principalmente pela dança, foi forçado a largar sua carreira dentro do ballet após sofrer uma lesão no joelho.

A representação da figura masculina de Luke foge completamente de quaisquer tipos de estereótipos presentes na sociedade moderna. Embora não seja o tema e a finalidade central dessa análise, é interessante pensar como um garoto apaixonado por ballet, dentro da maioria dos contextos contemporâneos, seria apresentado como homossexual, seguindo linhas de pensamento heteronormativas e conceitos de masculinidade estabelecidos pela sociedade patriarcal. Entretanto, Luke é apresentado como um garoto heterossexual, inclusive, que acaba se apaixonando por Ellen.

Ademais, Luke é um garoto que sofre com anorexia. Apesar de estar sempre tentando ajudar os outros a lidarem com seus problemas de alguma forma, ele tem suas próprias lutas, por mais que não exteriorize elas de forma clara.

Figura 2 — Ella (Lily Collins) e Luke (Alex Sharp) — Tumblr, 2017

Essa representação por si só é extraordinária. O desenvolvimento de narrativas em torno de como os padrões estéticos afetam o público masculino de forma semelhante ao público feminino é raramente explorado, pois sob uma perspectiva social, homens não sofrem com inseguranças relacionadas a seus corpos.

Contudo, campanhas publicitárias voltadas para o público masculino sempre tendem a explorar com certo exagero características como virilidade, força e coragem. Verdadeiros deuses esculpidos em carne e osso, que são capazes de carregar o mundo inteiro em suas costas.

Figuras 4, 5 e 6 — Campanhas Calvin Klein. Fonte: Pinterest, 2017
Figuras 4, 5 e 6 — Campanhas Calvin Klein. Fonte: Pinterest, 2017
Figuras 4, 5 e 6 — Campanhas Calvin Klein. Fonte: Pinterest, 2017

Com expectativas e padrões tão elevados acerca do que é ser homem, do que é a “verdadeira masculinidade” e suas subsequentes características, a cobrança pessoal em resposta à essa violência simbólica pode se converter em graves problemas de saúde e autoestima, visando sempre chegar em um patamar imagético inalcançável e desumano.

O número de casos de transtornos alimentares em homens tem apresentado um crescimento assustador. Nos Estados Unidos, cerca de 10 milhões de homens enfrentam algum tipo de distúrbio ao longo da vida. O estigma para o público masculino vem em dose dupla: primeiro por se tratar de um problema caracterizado como feminino, segundo por requerer ajuda psicológica. A questão estética não é a única relacionada à insatisfação com a imagem corporal. A maioria dos pacientes se sentem insatisfeitos dentro do próprio corpo mesmo estando dentro do peso apropriado, pois a distorção do espelho fala mais alto. (CÓDIGO AUN, 2018)

Anorexia tem a maior taxa de mortalidade de qualquer outra doença mental e existem ainda mais perigos para os homens cujo transtorno não é tratado. Estudos mostram que as mulheres têm mais gordura para queimar, isso significa que o homem anoréxico queima o músculo mais rapidamente, o que pode ter efeitos severos a longo prazo, mesmo se a pessoa começar a comer de forma saudável novamente. Além da perda muscular, os homens com anorexia podem apresentar pressão arterial baixa, o que, por sua vez, resulta em possível insuficiência cardíaca. A anorexia masculina também causa perda de densidade óssea (formação de ossos frágeis), desidratação (que pode potencialmente levar à insuficiência renal), perda de cabelo e fraqueza. Até 20% das pessoas que desenvolvem anorexia nervosa morrem do contínuo declínio geral da saúde corporal. (CAROLINE, 2018)

Conclusão

É fato que a idealização imagética tem repercussões sérias na vida de receptores de tais imagens. Ainda que exista um estigma sobre distúrbios alimentares e sua predominância em meio ao público feminino, é notória sua expansão em direção ao público masculino com cada vez mais força e frequência.

O crescimento da anorexia e dos transtornos alimentares também entre os homens demonstra que as exigências de um corpo perfeito não fazem mais distinção de gênero. Os padrões de beleza mudam frequentemente de acordo com as necessidades do mercado, que lucra com a insatisfação pessoal, pois dessa forma o indivíduo está propenso a consumir mais produtos que prometem eliminar milagrosamente todas as supostas imperfeições. (CAROLINE, 2018)

A sujeição ao sofrimento para um possível encaixe em padrões sociais comprova a existência da “violência simbólica” proposta por Bourdieu e ressalta a seriedade do assunto em discussões dentro de áreas da comunicação. A representatividade de corpos em ambientes midiáticos de forma dominante e impositiva é extremamente nociva para a saúde mental e física de indivíduos receptores.

Destaca-se, portanto, uma necessária reflexão: de que forma nós, como estudantes de Publicidade e Propaganda, Jornalismo, e afins, temos contribuído para a manutenção de tais imposições ou, do contrário, lutado contra elas e exigido mudanças que visem a construção de representações mais diversas e próximas à realidade?

Bibliografia

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. R: Bertrand Brasil S.A., 1989. 159 p. Tradução de Fernando Tomaz.

BOX1824. Publicidade lowsumer: cultura de cuidado disseminada pela propaganda. 2016. Disponível em: https://medium.com. Acesso em: 16 maio 2021.

CAROLINE, Bruna. Cresce o número de homens com transtornos alimentares. 2018. Disponível em: http://codigo.inf.br. Acesso em: 16 maio 2021.

PIROUTEK, Letícia. Crítica: To the Bone. 2017. Disponível em: https://cinematecando.com.br. Acesso em: 16 maio 2021.

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Esse projeto integrador tem como proposta repensar os estereótipos que aprisionam a diversidade da sociedade