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Os assistentes virtuais e a transformação digital do setor público no Brasil em tempos de Covid-19 e os perigos da e-burocracia

Moisés Simões
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8 min readMay 26, 2020

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Por Moisés Simões

Crises como estas pela qual passamos, na qual o enfrentamento da pandemia do Covid-19 tem reestruturado a maneira de a sociedade funcionar, são também tempos de experiência e de reflexão diante dos fatos. Por exemplo: o fechamento das atividades não essenciais, com vistas a achatar a curva da doença e evitar o colapso do sistema de saúde, levou ao crescimento do uso de atendentes virtuais em vários segmentos de negócio, como forma de assistir às pessoas neste momento difícil, mantendo-as em casa.

Isto, dentre outros fatores, está acelerando, segundo algumas opiniões[1], nossa entrada na era da pós-transformação digital, momento em que as empresas que já avançaram na otimização do seu desempenho via tecnologia têm de lidar com os impactos culturais e paradigmáticos dessa otimização. Em se tratando de empresas do setor público, onde tem disparado o uso de atendentes virtuais para o auxílio no consumo de serviços de utilidade (como água e luz), este impacto cultural costuma ser mais traumático.

O esforço deste breve artigo é justamente discutir a relação da e-burocracia (ou burocracia digital) com o setor público, e do quanto esta relação costuma entravar a transformação digital, tendo em vista o uso de bots para atendimentos não-presenciais de clientes de concessionárias de utilities. A grande pergunta sem resposta que será levantada é a seguinte: se tivéssemos hoje dispositivos que flexibilizassem a burocracia, estaríamos indo para uma era de transformação digital significativa no setor público?

Antes, vamos definir o que é burocracia. Segundo acredita o sociólogo alemão Max Weber, as relações desta, em tese, são definidas por uma regulamentação jurídica cuja meta é a razão e a impessoalidade. No caso brasileiro, alguns célebres estudiosos do problema, a exemplo do sociólogo Raymondo Faoro (autor do clássico: Os donos do poder), acreditam que, pelo contrário, a burocracia que nasce com a formação do Brasil não é nem racional nem impessoal, uma vez que os interesses corporativistas se infiltraram em setores do governo justamente para impedir a impessoalidade necessária para a construção de uma administração moderna.

Em outras palavras: nosso sistema democrático teria se tornado um sistema burocrático, e o poder que adviria do povo seria agora exercido contra ele por meio de um estamento burocrático cuja finalidade histórica é criar empecilhos, para depois vender desvios para vencê-los.

Mas comparar as diferenças teóricas e históricas entre a burocracia weberiana e a brasileira não é nossa intenção aqui. Tampouco o é demonizar o setor público, pincelando-o com as tintas do atraso e da ineficiência. A questão que debatemos é bem mais simples, e se debruça sobre o setor público unicamente pelo fato de este ser herdeiro direto desse modelo burocrático que vem no esteio da nossa história.

Seguindo adiante: uma das maiores metas do desenvolvimento tecnológico no setor público é o aperfeiçoamento de seus processos, e não se ver encurralado a apenas espelhar a burocracia, a princípio inerentes a eles. A não adesão às reformas que a tecnologia propõe, por parte da governança e de representantes de “direitos adquiridos” é o principal entrave que leva esse movimento a se resumir a uma simples transferência de todos os desgastes do mundo real para o mundo virtual, o que configuraria a e-burocracia propriamente dita. É este o entendimento de Zahid Hasnain[2] (especialista sênior do setor público), para quem a estreia de empresas públicas no mundo digital deveria ser uma ótima oportunidade de reforma do setor, no sentido de conectar serviços com agilidade, e com o único propósito de facilitar a vida dos cidadãos, consumidores de serviços de utilities.

Depois da desigualdade social e da necessidade de capacitação digital, a e-burocracia é apontada por diversos estudos[3] como uma das principais barreiras a serem vencidas neste momento. O remédio ideal contra ela é a descentralização de dados e processos, com foco na satisfação do cidadão. Quer um bom exemplo? O Next Bank que, no ano passado, passou a dispensar o comprovante de residência para abertura de conta corrente; substituindo, como prova, o documento físico pela geolocalização do celular.

Bons exemplos no setor público? Concessionárias de água como a Casal (de Alagoas), a Cagepa (da Paraíba) ou a Caern (do Rio Grande do Norte), que utilizam o Boto da Consenso Tecnologia para dispor, no atendimento virtual, de serviços importantes para a população, como a atualização cadastral dos dados de seus clientes e a abertura de solicitação de serviços, como reclamações de vazamentos ou falta d’água.

Indo nesta direção, a entrada da tecnologia na esfera pública deve supor o aperfeiçoamento dos dados com vistas à satisfação do cidadão, ao ofertar as melhores soluções técnicas e de utilidade pública para a sociedade. Em tempos de Covid-19, a adoção de bots para suprir o atendimento presencial temporariamente suspenso deveria vir acompanhada da melhoria da produtividade, e da ideia de que este seria o momento de utilizar a tecnologia para ultrapassar as falhas da burocracia.

De que maneira? Descentralizando processos e passando a gerir os serviços consumidos junto com a entrega de valor; no cerne desta mudança, uma mudança também de paradigma: passar a considerar o cliente das concessionárias como um cidadão e consumidor consciente. Em outras palavras: acompanhar a mudança de comportamento do consumo, fruto comum de todas as crises, rumo a um patamar onde tudo o que o consumidor quer é mais assertividade e menos falação.

Uma das saídas para isso seria, por exemplo, a otimização de cadastros (ou a atualização propriamente dita da base cadastral de empresas públicas), a redução de informações repetidas, a agilidade e simplicidade dos fluxos — isto em todos os canais que o usuário pudesse querer acessar. No bojo dessas mudanças, a percepção sobre a essência do serviço público, que se desdobra entre a eficiência, a imparcialidade, a competência e a responsabilidade. São estes os valores que a tecnologia deveria ressaltar, equilibrando as precauções técnicas e políticas com um acesso que garanta a percepção do valor público por parte da sociedade.

De acordo com o The Brazilian Report [4]de dois anos atrás, existem quarenta e oito aplicativos diferentes para acelerar serviços burocráticos: da previdência social ao registro de eleitores. No mundo pós-pandemia, quantos dispositivos do tipo haverão? E quantos planejamentos de automatização de processos poderão falhar, ao passo em que o acesso e o retorno de usuários comecem a servir de incentivo para o fim de vantagens adquiridas?

Para Leticia Piccolotto[5] com o aumento de expectativa da sociedade acerca da transformação digital, a ideia de podermos acionar serviços de utilidade pública ao toque do nosso celular é uma tendência que não pode ser revertida. Sobretudo agora. Nesse sentido, o Brasil, ainda segundo Piccolotto, teria dois caminhos pela frente: ou protagonizar essa agenda tecnológica, ao implementá-la de forma eficiente, ou prosseguir como sendo um país de viés burocrático, agora também no mundo virtual.

Como protagonista de sua própria revolução tecnológica, o país só tem a ganhar com a transformação digital. Logo de início, uma diminuição de despesas públicas e, óbvio, de burocracia. Em seguida, um aumento na produtividade dos serviços. Com o tempo, além da redução de custos e do evidente impacto econômico, um melhor aproveitamento do espaço físico que a digitalização permitirá dentro de departamentos, ao deslocar aos poucos “a necessidade de ambientes destinados ao arquivamento de documentos impressos, que acabam se deteriorando com passar dos anos, otimizando a tramitação de despachos e a prestação de contas aos cidadãos”[6].

Claro que alguns termos que utilizamos até aqui (redução, agilidade, simplicidade) podem, à primeira vista, assustar um pouco os gestores públicos, os quais, na prática diária de sua experiência, estão acostumados a lidar com certo nível de má fé no uso dos serviços essenciais ou, até mesmo, de pequenas corrupções por parte dos consumidores, e que por conta disso se aferram à ideia de que a burocracia é a solução mais adequada para combater o mau uso das utilities.

Neste caso, é a premissa aqui que está equivocada. Quanto mais simples e direta for a abordagem dos fluxos digitalizados à disposição dos cidadãos, maior será a sensação de responsabilidade do consumidor na outra ponta, o que, em contrapartida, nos dará um aumento na percepção da cidadania.

Pelo contrário, quanto mais fluxos burocráticos que busquem tutelar o consumidor com validações desnecessárias, maior será a percepção de que os entraves colocados para o consumo do serviço são fruto da ineficiência e da corrupção, sendo, portanto, necessário burlá-los de alguma forma. Assim, é a burocracia quem, no fim, acaba estimulando a prática dos desvios; e não o contrário. A geolocalização do celular citada acima como substituto do comprovante de residência para abertura de conta corrente no Next Bank é um exemplo disso. Primeiro porque é mais difícil fraudar o GPS do celular do que um documento físico. Segundo porque dar autonomia ao consumidor é inclui-lo em um novo perfil no qual ele se sinta não apenas mais motivado e confortável, mas mais incluído.

Resumindo: até aqui, vimos de que forma a luta contra a pandemia do coronavírus está acelerando a transformação digital das empresas e da sociedade, ao fazer em cinco meses o que, em média, levaríamos cinco anos para fazer[7]. Nesse cenário de rápida inovação, o setor público dá sinais positivos no sentido de querer se adequar a essa nova realidade; movimento principalmente percebido no aumento do uso de atendentes virtuais para o auxílio no consumo de serviços de utilidade.

Do ponto de vista tecnológico, a mudança de paradigmas proveniente da transformação digital apresenta um enorme desafio para os setores públicos que de fato quiserem não apenas transplantar processos burocráticos para o mundo virtual, mas aproveitar a oportunidade para modernizar suas atividades de um modo geral, ofertando com transparência, ao cidadão, serviços mais eficientes.

E se tivéssemos hoje os dispositivos que flexibilizassem a burocracia, estaríamos indo para uma era de transformação digital significativa no setor público? Minha aposta é que sim.

REFERÊNCIAS E CITAÇÕES

[1] https://www.istoedinheiro.com.br/o-que-os-dados-revelam-no-mundo-pos-pandemia/.

[2]https://blogs.worldbank.org/governance/e-bureaucracy-can-digital-technologies-spur-public-administration-reform.

[3]https://transformacaodigital.brazillab.org.br/.

[4]https://brazilian.report/guide-to-brazil/2018/08/12/understand-brazilian-bureaucracy/.

[5]https://www.huffpostbrasil.com/leticia-piccolotto/e-burocracia-o-risco-de-o-brasil-perpetuar-a-burocracia-ja-existente_a_23580795/?guccounter=1.

[6]https://ibsdocs.com.br/veja-como-a-transformacao-digital-vai-reduzir-a-burocracia-no-setor-publico/.

[7]https://www.sincovaga.com.br/o-varejo-e-a-covid-19/.

Covid-19 e transformação digital nos negócios

https://www.meioemensagem.com.br/home/opiniao/2020/05/06/covid-19-e-transformacao-digital-nos-negocios.html

E-burocracia: O risco de o Brasil perpetuar a burocracia já existente

https://www.huffpostbrasil.com/leticia-piccolotto/e-burocracia-o-risco-de-o-brasil-perpetuar-a-burocracia-ja-existente_a_23580795/?guccounter=1

E-bureaucracy: Can digital technologies spur public administration reform?

https://blogs.worldbank.org/governance/e-bureaucracy-can-digital-technologies-spur-public-administration-reform

How to understand Brazilian Bureaucracy

https://brazilian.report/guide-to-brazil/2018/08/12/understand-brazilian-bureaucracy/

O que os dados revelam no mundo pós-pandemia?

https://www.istoedinheiro.com.br/o-que-os-dados-revelam-no-mundo-pos-pandemia/

O varejo e a Covid-19

https://www.sincovaga.com.br/o-varejo-e-a-covid-19/

Qual o panorama e os principais desafios e caminhos para a transformação digital do Brasil?

https://transformacaodigital.brazillab.org.br/

Veja como a transformação digital vai reduzir a burocracia no setor público

https://ibsdocs.com.br/veja-como-a-transformacao-digital-vai-reduzir-a-burocracia-no-setor-publico/

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Moisés Simões
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Mestre em Engenharia de Software, vivendo no meio de desenvolvimento de software e imergido no desenvolvimento de negócios GovTech