Novembro (ii)

Primeiro a construção (i), depois o despedaçamento.

Glauber Cruz
Construtor
6 min readNov 25, 2017

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cena do clipe da música “Black Man in a White World” de Michael Kiwanuka

I’ve been low, I’ve been high
I’ve been told all my life
I’ve got nothing left to pray
I’ve got nothing left to say
I’m a black man in a white world

Negro.

Na forma de uma picareta, a palavra rachou o menino em pedaços pequenos e cada vez menores. Despedaçado. Não sentiu medo. Ali, aos pedaços, o menino se sentia um pouco mais livre, dono de si, do seu próprio significado. Por muito tempo esteve preso a um significado que lhe foi inculcado; preso dentro de si mesmo, dentro de sua própria pele. Despedaçado, ele se viu mergulhado em sua própria vontade, na sua necessidade de ser e estar no mundo do jeito que era.

Negro.

Assim começa a história de Gabriel, uma preguiçosa tradução do Glauber da vida real para a literatura que protagoniza um romance que há um bom tempo eu venho pensando em escrever e que trata desse processo de realmente se despedaçar, repensar a si mesmo, rompendo com os discursos de um imaginário preconceituoso que tem por objetivo fazer com que nos anulemos . A nossa invisibilidade financiada por nós mesmos, reafirmando as artimanhas sorrateiras do racismo à brasileira.

O processo que eu apelidei de despedaçamento é algo que nos desperta de um doloroso e tóxico processo de formação. É nesse momento, que normalmente sucede os anos de tensionamentos nos espaços pelos quais mais circulamos durante a adolescência — a escola, a casa dos amigos, a nossa própria casa — , em que temos um estalo e começamos a nos questionar sobre tudo o que ouvimos e aprendemos sobre ser negro. É um processo que começa silencioso, na forma de ideias que se aproximam sorrateiras nas entrelinhas das conversas e reflexões e na forma de pessoas que verbalizam algo que sempre queremos falar e gritar, mas que muitas vezes ao menos temos noção de que queremos fazê-lo.

I’m in love but I’m still sad
I’ve found peace but I’m not glad
All my nights and all my days
I’ve been trying the wrong way
I’m a black man in a white world

Não é, obviamente, um processo fácil. Imagine ouvir uma música ao longo de anos, a mesma melodia e a mesma letra soando sempre da mesma forma nos ouvidos. A Música Um. O ouvido se acostuma com a Música Um, de modo que ela se adere ao nosso corpo, à nossa mente e se perpetua exatamente daquela forma. A conhecemos de trás pra frente, de cor e salteado. Agora imagine que um dia a música toca diferente e ela vira a Música Dois: a melodia não tem mais o mesmo ritmo, a letra foi suprimida, ela dura menos, soa melhor nos ouvidos. Aquilo que conhecemos tão bem de repente muda, a melodia que nossa cabeça já antecipa acaba por não vir, o ritmo ao qual já estamos acostumados acaba por se atropelar, o estranhamento domina. E até que passemos a ouvir a Música Dois sem o mínimo desse estranhamento, até que passemos a gostar dela, entender ela, é um árduo e longo processo de reeducação. Se despedaçar é isso, ouvir uma nova música e se despir de todas as ideias e estereótipos que constroem sobre nós. É não ouvir a música que sempre ouvimos, aquela que dói nos ouvidos e na pele, mas sim uma música que impulsiona nos tirando do lugar que nos colocaram na sociedade.

I feel like I’ve been here before
I feel that knocking on my door
I feel like I’ve been here before
I feel that knocking on my door
And I’ve lost everything I had
And I’m not angry and I’m not mad
I’m a black man in a white world

Quando nos despedaçamos, entramos em contato direto com a certeza de ser negro, da qual muitas vezes fugimos para evitar os desprazeres da realidade áspera de um país nascido da dor e da violência contra o povo negro. Estar aos pedaços é se ver envolto por estereótipos, discursos, piadas e ações embebidas por uma violência potencializada pelo tempo, pela relativização e pela naturalidade; mas não só isso, também é se ver disposto a apagar tudo isso, pelo menos dentro de si. É pegar a picareta e destruir cada um desses conceitos, um por um, pedaço por pedaço. Meu cabelo é “ruim”. CRECK! Eu sou inferior. CRECK! Eu não posso. CRECK! Eu não consigo. CRECK! CRECK! CRECK!

Ali, nas nossas próprias estruturas destroçadas, percebemos que o problema não habita em nós. A distorção não se encontra em nosso reflexo. Não é a nossa existência que é errada. O problema, a distorção e o erro na verdade são externos, habitam o corpo dos racistas, sistematicamente construídos para fazer com que o negro, desde muito pequeno, olhe para baixo para se enxergar e que esqueça que não existe a história desse país sem seus ancestrais.

I’m a black man in a white world
(I don’t mind who I am)
I’m a black man in a white world
(I don’t mind who you are)

Aos pedaços, nadamos contra a maré dos discursos, piadas, comentários, gestos e tudo aquilo que nos coloca tanto em um lugar quanto em um não-lugar, ambos muito bem definidos. Quando olhamos para trás, nos vemos inconformados com todas as coisas distorcidas que aprendemos sobre nós mesmos e começamos então a ressignificar tudo o que foi dito que significamos. Batemos o pé dizemos que não: não somos isso ou aquilo que querem que sejamos. Peguemos como exemplo o trecho do meu romance ainda não iniciado em que Gabriel decide comprar quiche de bacon e suco de laranja no Zaffari. No momento em que ele pisa no mercado entra em ação o Segurança, coadjuvante de luxo na rotina de jovens negros, na sua missão de resguardar todo o patrimônio do local e (algo que provavelmente não esteja explícito em seu contrato mas que ele segue com muito rigor) vigiar todo jovem negro que ali entra. Gabriel, despedaçado e cansado da institucionalização do homem negro como uma ameaça em potencial (esteja do outro lado da rua, no fundo ônibus, parado em uma esquina ou dentro de um mercado) ao se aceitar, se afirmar e de fato tornar-se negro no sentido mais profundo da palavra, ele diz (mesmo sem dizer, mesmo sem gritar, mesmo que apenas para si mesmo) que não vai aceitar que o reduzam a um imaginário construído sobre muita violência, desigualdade, relativização e ignorância.

O filme “Moonlight — Sob a luz do luar” tem uma cena linda em que Juan, personagem interpretado por Mahershala Ali, diz para o pequeno Chiron: “Chega o momento em que você precisa decidir quem você é. Ninguém pode tomar essa decisão por você.” Despedaçados, decidimos quem somos e privamos uma sociedade racista de tomar essa decisão por nós. Batemos o pé e dizemos que somos o que queremos ser. Gritamos para nós mesmos e para todo o mundo (quer queiram ouvir ou não) que nossas vidas importam e que não seremos algo reduzido a uma concepção rasa e ignorante da nossa existência.

Despedaçados, aprendemos a nos amar, já que não fazemos o tipo de ninguém. Aprendemos a cuidar de nós mesmos, deixando de lado a mutilação psíquica a qual somos expostos durante a infância e a adolescência. Aprendemos que nosso cabelo não é ruim, que nossos traços não são grosseiros, que nossa beleza não é exótica, que somos negros, não morenos. Preenchemos um vazio sistematicamente aumentado por uma sociedade hipócrita na qual ninguém é racista, mas quase todos bufam entediados quando alguém propõe discutir raça. Gabriel, cuja história ainda nem comecei a escrever, ainda tenta colar em si a peça da autoestima. É complicado, é uma peça difícil de encaixar em si, pois é muita pequena, visto que ela recém foi criada, depois de todo o tempo que o menino passou ouvindo que ele era feio, que seu cabelo era ruim, que sua boca era grande, que sua presença era uma ameaça, que sua existência era menos importante por vir da periferia. De picareta na mão, Gabriel respira fundo, tendo em si a certeza de que despedaçar-se, rachar-se, desconstruir-se é um mais ato de resistência negra, semente de uma nova existência.

Rexistência.

I’m a black man in a white world
(I’m not wrong, I’m not wrong)
I’m a black man in a white world
(Oh it’s alright, it’s alright)
I’m a black man in a white world
(Oh it’s alright)

Letra da música “Black Man in a White World” de Michael Kiwanuka

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