Pensando o retorno a partir da moda: o que há de novo no velho normal?
Um pouco de droga e um pouco de salada nessa volta e projeção otimista — ou talvez negacionista — da próxima temporada. Neste artigo, Cassio Prates traz análises que podem servir de exemplo para diversos segmentos
Este texto é assinado por Cassio Prates, pesquisador de tendências, cultura e comportamento, que desenvolve direcionamentos estratégicos e direção criativa de comunicação e produto, e aqui escreve sobre a indústria da moda no contexto contemporâneo e como isto se relaciona com o mercado de comunicação e de marketing.
No início de outubro, tivemos o final do "mês fashion” (quando as semanas de moda das capitais mais importantes da indústria fazem as suas apresentações), que voltou a acontecer in real life. Durante esses últimos 18 meses, desde que a última semana de moda presencial havia acontecido, passamos por diferentes desenhos de catástrofes pandêmicas, por desigualdade extrema, por desastres climáticos, por disrupção midiática — e, claro, somaram-se mil pontos a mais se você nasceu no Brasil. Dentro disso, variados ensaios apontando o que seria a arte, a moda, a mídia e as práticas nas redes sociais a partir daquele “inesperado break” foram feitos.
Vale lembrar que a moda foi uma das primeiras a sugerir um novo normal, que foi apontado, mapeado e reconfigurado em pactos afirmando que tinha que ser diferente. O modus operandi do mercado foi classificado como insustentável, financeira, ambiental e emocionalmente.
Pois bem, voltamos, e — com alguma ressalvas — digo que o retorno não foi ao novo normal acordado, mas ao velho, como um grande filme de tudo que já aconteceu.
Um passo para frente, dois para trás?
Esteticamente, muitas marcas buscaram momentos e referências de tempos e movimentos que já são bem conhecidos e comerciais. A Chanel reproduziu um desfile dos anos 80 e 90, com os fotógrafos em volta de toda a passarela, muitos flashes e modelos dando pivôs pelo caminho, fazendo um flerte revival com os antigos desfiles da grife, numa época radiante de Karl Lagerfeld. Tudo muito bonito, porém com pouca adequação à realidade.
O mesmo aconteceu com a MiuMiu, que trouxe a estética anos 2000 para o seu desfile, mas teve sua apresentação e sua representação de um ideal de moda e de corpo um tanto ultrapassados ofuscadas pelo vídeo de uma criadora comprando roupas iguais às da passarela em uma loja de segunda mão e adaptando-as em um contexto bem mais atual e real. Bombou na internet. E foi o que continuou aparecendo na timeline da maioria das pessoas —ou seja, as que não estavam em Paris.
Na minha opinião, esse é um ponto importante da volta da temporada. Os desfiles que não trouxeram questões para além de estética saudosa, apresentando algo que não levasse em conta o contexto atual, foram engolidos por memes, por outros desfiles e por assuntos mais relevantes. Foi o caso da Louis Vuitton, eclipsada por protestos, que aconteceram ali dentro da sala de desfile — mas que, a bem na verdade, foram feitos para ganhar um dimensão para além daquele público específico de poucas pessoas e gerar uma discussão maior. De novo, obviamente, na internet. E os ambientalistas do Extinction Rebellion conseguiram! Por mais bonito, bem construído e rico que o desfile tenha sido, foi impossível não ver, falar, sentir e pensar sobre a moda como a segunda indústria mais poluente do mundo, acompanhando o que aconteceu naquela sala — mesmo estando fora dela.
Nem tudo é passado
Por outro lado, algumas marcas chegaram mais firmes, digamos assim, no que se havia combinado sobre o novo normal: pensando na moda como algo mais sustentável, menos isolado geograficamente, explorando e trazendo novos formatos de imagem e de mídia. E é daqui que podemos puxar referências e aprendizados também para outros setores.
Ainda sobre as preocupações ambientais — indo na contramão da LV e levantando aquele conceito de marketing de nome questionável mas conhecido, o “walk the talk” — , vale destacar três marcas que trouxeram esse tema como um statement. A Botter, marca franco-caribenha, firmada num contexto periférico e que carrega uma imagem super dianteira de moda-atitude, trouxe uma coleção alertando sobre o aquecimento global. Até aí tudo ok, mas, diferente da maioria das afirmações vazias, foi além: fez um compromisso com a reabilitação dos oceanos em uma parceria com a organização ambiental Parley for the Oceans, que produziu 60% da matéria prima do desfile com plástico reciclado. “Hoje em dia não é mais suficiente só fazer roupa”, falou um dos criadores da marca, Rushemy Botter, colocando em outras palavras a questão de que um produto sozinho não se sustenta mais por muito tempo.
Marine Serre, que já vem mostrando essa preocupação e construindo coleções com trabalhos de upcycling e continuou nesse caminho e, nesta apresentação, criou um vídeo que foi apresentado fisicamente durante a semana de moda, vejam, em um lugar aberto no centro de Paris. O filme mostrava uma espécie de realidade alternativa, em uma casa onde o elenco meditava ao amanhecer, produzia sua própria comida, vinho e acessórios (feitos a partir de talheres). Mas nada nele era óbvio ou clichê.
As roupas apresentadas, da nova coleção da marca, batem o recorde de serem 90% feitas por meio de upcycling (45% de material regenerado e os outros 45% reciclados). Marine é uma das que continua pensando adiante e a partir das nossas necessidades — e, não por sorte, não foi gongada, mas sim aplaudida e muito comentada em suas aspas colocadas em prática: pensar em “como o futuro pode ser se nós mudarmos nossos hábitos e pensarmos mais profundamente na comida que nós comemos, na maneira que atravessamos a vida e nas roupas que usamos”.
Outra grife que levantou esta bandeira foi a Chloé, com sua nova diretora criativa, a uruguaia Gabriela Hearst. Ela chegou à casa também para trazer este movimento que resultou em posicionar a Chloé como a primeira marca de luxo a ter o certificado de B Corp. (Empresa B), um dos mais rigorosos e exigentes do mundo no que diz respeito aos impactos sociais e ambientais que as empresas precisam endereçar. É uma prática que também vai além da estética e coloca a marca super adequada às preocupações atuais.
Outro ponto importante está em quem optou por não desfilar de forma tradicional. É importante destacar que o “acho melhor não” vem com um apelo de marketing, imprimindo a coerência dos tempos, que ainda pede um pouco de calma e cautela. Essas diferentes mídias para apresentar ideias acabaram ganhando bastante destaque nas redes sociais, na imprensa e no aplauso dos compradores e consumidores.
A Gucci apresentou mais uma de suas experiências digitais. No ano passado, a marca havia criado o Gucci Festival (um festival de cinema em parceria com Gus Vant Sant) e, desta vez, lançou o projeto Vault, uma loja conceito online, com alguns pontos de interação físicos em Milão, Londres e Berlin, onde experiências diferentes aconteciam em cada uma das cidades. A ideia do projeto, segundo o estilista da marca, Alessandro Michele, é ser “uma máquina do tempo, um arquivo, uma biblioteca, um laboratório e um ponto de encontro”. Esse projeto mistura uma seção de roupas vintage da marca (que são vendidas em modelos únicos esgotados rapidamente), já como parte de comemoração dos seus 100 anos, misturada com uma curadoria de novos designers e com coleções, experiências e cursos variados que vão acontecendo até o desfile surpresa da marca, a ser realizado agora em novembro. Realmente, é um passo à frente, que coloca a Gucci na dianteira não só esteticamente, mas também em novos formatos de se comunicar e se apresentar, juntando o vintage, o re-sale e o seu próprio market place de marcas que acredita em um único ambiente.
Outro formato interessante foi o de JW Anderson para apresentar o projeto do próximo verão de sua marca homônima. O estilista criou um calendário 2022 com fotos do icônico Juergen Teller, numa inspiração desconstruída do famigerado Calendário Pirelli — só que com um pouco mais de humor, que incluiu o próprio fotógrafo aparecendo de sunga na edição e que tem como cenário de uma loja de pneus em Londres. Muitos sabem que o calendário Pirelli sempre apresentou mulheres escolhidas como as mais sexys do rolê e que estavam naquelas páginas representando um padrão de beleza que hoje deveria estar ultrapassado. Colocando isso de forma menos glamourizada e mais real, Anderson apresenta um novo olhar sobre o tema de forma mais ética, segura e ainda assim, estética.
Já outras marcas aproveitaram para lançar suas versões digitais de roupas durante a semana de moda, como parte de estratégias de drops de produtos, entre elas Dolce & Gabbana, a própria Gucci e a Balenciaga — que, na sua apresentação anterior, havia lançado skins de vídeo game e, agora, trouxe também a versão física das peças, em uma collab com o Fortnite. Estes movimentos demonstram as tentativas das marcas de emplacar tecnologias como NFTs e metaverso (também) na moda.
Existe, ainda, uma grande especulação e sobre o quanto isso é realmente sustentável e ético para dar novos caminhos para a moda (falei um pouco sobre o assunto aqui). Neste momento de fashion weeks, é interessante analisar o quanto essas novidades são capazes de gerar notícias e mídia espontânea para as marcas, mas se isso vai gerar vendas de fato ainda não dá para saber.
Outro projeto que vale ser comentado por sua inovação de canal e formato foi o da marca Telfar, que inaugurou, durante sua apresentação na semana de moda de Nova York, sua própria rede de TV.
A Telfar.tv é uma colaboração com o coletivo de artistas The Umma Chroma e funciona como um “shoptime” adaptado, que lança itens por QR codes, levando direto para a compra de um drop de produto. A marca — que é conhecida por sua tentativa de democratizar a moda de uma forma mais atual, levando em consideração seus criadores, sua comunidade gay, trans e negra e sua cadeia de produção — já tem uma audiência de quase 1 milhão de seguidores, e cria agora o seu próprio canal de vendas como forma de burlar o algoritmo, entregar os produtos aos seus reais fãs e consumidores e não ficar refém de grandes conglomerados e preços abusivos. Uma das melhores ideias da temporada para direcionar vendas e apresentar produtos de forma estética e ética.
Por fim, é quase impossível não falar da apresentação da Balenciaga e sua colaboração com os Simpsons, mostrando como se pode ir além dos formatos tradicionais. O filme traz o estilista da marca, Demna Gvasalia, voando até Springfield e convidando o elenco da cidade para desfilar na grife de luxo, em formato animado, com todas as personagens presentes em pufas e peças clássicas da marca — o que acabou se tornando uma das collabs mais esperadas e comentadas. Mas não só isso: a apresentação se deu em um formato “lançamento de filme”, com uma première onde ninguém sabia muito bem quem era modelo e quem era convidado. Isso trouxe ainda mais sentido para toda a história e colocou o pensamento de moda fora de lugares pré-estabelecidos: unindo tapete vermelho e a realidade do "americano médio" distante das passarelas — algo que, até então, naquele mundinho, poderia ser (e foi) muitas vezes tratado como brega, interiorano ou qualquer outro termo pejorativo, mas que hoje se faz fundamental para que uma marca de luxo continue atual e valiosa.
Dizer que as “Anna Wintour” e as “Marge Simpson” daqui pra frente tendem a se encontrar muito mais pode ser um grande exagero ingênuo, mas entender que passamos por uma mudança em como consumimos e percebemos imagens nesses últimos meses é importante para quando formos pensar em ações e apresentações, não somente de moda. A estética e a ética, que sempre deveriam andar juntas, ficaram ainda mais sensíveis aos olhos do público e precisam ser mais levadas em consideração daqui pra frente — em corpas, ambientes, cenários, roupas, materiais, discursos, mídias e vendas. Nesse contexto, os memes citados no início do texto têm um papel especial. Se pensarmos que a palavra vem da interpretação da lógica darwinista para os “genes inúteis” feita por por Richard Dawkinks, em o “Gene Egoísta, 1976. O Gene inútil é aquele que sobra, e se alastra por imitação, sempre sujeito à mutação e a mistura, como uma forma de se revoltar contra os próprios criadores. E, enquanto as coisas não andam tão bem, ele serve muito bem como piada.
Fica aqui um convite a pensarmos sobre a forma como vamos nos comunicar daqui a pra frente. Deixo o excelente trabalho da Hito Steyrel e seu convite às imagens pobres como forma de transgressão e de dar visibilidade à força enunciativa que as imagens oferecem. Mas isso fica pro próximo texto. ;)