O sistema carcerário na fronteira oeste do Rio Grande do Sul

Entenda como funciona o presídio misto de São Borja. Mesmo com superlotação e poucos funcionários, conta com ampla organização

Rafael Costa
O Costaverso
11 min readSep 27, 2019

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Reportagem realizada pelos alunos de jornalismo Pamela da costa, Andressa Almeida e Eric Zanotelli, para a cadeira Redação Jornalística II, ministrada pelo professor Leandro Ramires Comassetto.

Casa prisional abriga mais de 400 presos atualmente — Foto: Rafael Costa

O Brasil tem pelo menos 800 mil presos, segundo o Banco de Monitoramento de Prisões, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sendo o terceiro país como maior população carcerária do mundo. No âmbito geral os apenados possuem um perfil comum, 55% são jovens entre 18 e 25 anos, 64% são negros e não possuem ensino médio completo. No total, há 38 mil mulheres no sistema prisional brasileiro. Dessas prisões, 62% são por associação ao tráfico de drogas.

O presídio estadual de São Borja não contraria as estatísticas nacionais quando se avalia o sistema carcerário, mas apresenta um outro lado sobre a realidade das cadeias. Diante do cenário calmo da cidade interiorana, o que surpreende é a visão dos apenados tomando banho de sol no pátio do presídio, separados apenas alguns metros do mundo exterior.

Localizado na rua Sarandi, 774, no bairro Várzea, o Presídio Estadual de São Borja, que é administrado pela Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE), não se destaca por muros altos ou cercas de arame farpado, o que contraria a visão que existe acerca dos presídios brasileiros. “São Borja é diferente da capital. Porto Alegre tem muros por ser uma cidade grande. Já aqui é mais tranquilo”, afirma o diretor do presídio, Rodrigo Lovatto Ribeiro, que está na gestão da casa prisional desde 2014.

Rodrigo Lovatto está na gestão do presídio desde 2014 — Foto: Rafael Costa

A estrutura do terreno é dividida em duas, sendo o maior prédio onde estão os apenados de regime fechado e o menor, onde ficam os presos dos regimes aberto e semiaberto, intitulado albergue. Segundo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o presídio tem capacidade para 208 detentos, mas atualmente abriga mais de 400 apenados entre o regime fechado, aberto e semiaberto. A maioria dos apenados são homens, têm entre 18 e 25 anos e cumprem pena por tráfico de drogas.

Dentre os 400 presos, apenas 15 são mulheres, entretanto segundo o (CNJ), o presídio possui dezoito apenadas. Elas são colocadas na primeira cela para que fiquem mais perto dos agentes e possam ser atendidas imediatamente no decorrer de alguma situação que porventura possa acontecer no local. Para as presas mulheres, existe a participação em um coral a cada 15 dias. Nas sextas feiras intercaladas, elas participam do coral e cultos religiosos. Assim como os homens têm atendimento médico todas as semanas, as mulheres também possuem acompanhamento, sendo eles odontológico e ginecológico, com um médico voluntário que vai ao presídio mensalmente. “Aqui as mulheres têm preferência”, afirma Lovatto.

As apenadas saem para o pátio em horários diferentes dos homens, a não ser aquelas que preferem tomar sol com seus maridos que também estão presos, um fato bem comum dentro do Presídio Estadual de São Borja.

Caso precisem ser conduzidas para algum local fora do presídio, é necessário que as apenadas sejam revistas somente por agentes penitenciárias mulheres, conforme previsto na Lei 7.210 de Execução Penal (LEP), Art. 77, parágrafo dois e Art. 83 parágrafo parágrafo três. “Quando não tem uma agente mulher para levar a apenada em alguma consulta, ela acaba perdendo o horário agendado, porque a lei não permite que só homens levem uma moça em escolta. Nesses casos, chamamos a Brigada Militar, verificando junto a eles se existe a possibilidade de ceder efetivo feminino, levando a presa no local determinado”, explica Rodrigo.

O Presídio Estadual de São Borja conta com duas galerias, sendo a galeria. A com 17 celas para quatro a dez pessoas, e a galeria B, que possui 12 celas. Organizado pela administração dos agentes penitenciários, as primeiras celas são reservadas exclusivamente às mulheres — estas celas são mais próximas dos agentes, por medida de segurança. As celas 2 e 3 são destinadas aos condenados por crimes sexuais e, por fim, o restante, destinadas a crimes em geral.

Albergue é o local onde ficam os apenados do regime aberto e semiaberto — Foto: Rafael Costa

A presença de facções dentro do presídio também é uma realidade. Para evitar possíveis conflitos entre os apenados de facções rivais, as galerias são divididas. Na galeria A, ficam os presos do Primeiro Comando do Interior (PCI) e na galeria B, os detentos que não possuem vínculo com nenhuma facção.

O cotidiano do presídio apresenta horários determinados para os diferentes grupos que compõem a população carcerária. Mulheres sempre são as primeiras a usufruir dos direitos previstos em lei, como banho de sol, visitas, assim como demais atividades. As refeições são feitas pelos próprios apenados, visto que a dispensa do presídio conta com frutas, verduras, hortifrutigranjeiros e alimentos industrializados. Carnes de variados tipos também estão presentes nas refeições (no dia da entrevista, encontramos charque secando ao sol).

Dispensa de alimentos do Presídio Estadual de São Borja — Fotos: Rafael Costa

O trabalho e a educação como forma de ressocialização

A remição da pena é um assunto de grande importância dentro do Presídio Estadual de São Borja. Dentre as opções de diminuição da pena, os presos podem trabalhar, como, por exemplo, fazer pinturas, construir muros, coletar o lixo, realizar a manutenção das viaturas, faxina, almoço, janta, entre outras tarefas que não envolvem o setor administrativo do presídio. O apenado M.E, com aproximadamente 50 anos, que cumpre pena no regime semiaberto, é responsável por abrir e fechar o portão principal, para o fluxo de entrada e saída de veículos e pessoas. “Começo o trabalho às sete horas da manhã, recebo o pão e o café para ser distribuído no Presídio e logo após retorno para o portão”, descreve. A rotina de M.E é diária.

O preso tem a possibilidade de reduzir consideravelmente seu tempo de prisão. De acordo com o Art. 126 da LEP, é reduzido um dia da pena total a cada três dias de trabalho. Essa remição existe para ambos os regimes, semiaberto e fechado. Dos quase 420 presos, cerca de 80 fazem algum tipo de trabalho dentro do presídio e outros 15 possuem parceria com a Prefeitura de São Borja para trabalhar em troca da redução da pena.

Uniforme laranja identifica os apenados que trabalham nas dependências do presídio — Fotografia: Rafael Costa

Outra iniciativa desenvolvida dentro do presídio é o incentivo à leitura, a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) e dos cursos do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR). “Nós temos uma sala de aula dentro do presídio, com uma biblioteca com livros espíritas, da área do direito, e outros sobre gramática e romance. Existe também a remição pela leitura, o preso que lê três livros e faz um resumo, podendo reduzir um dia da sua pena”, ressalta Lovatto sobre a importância da educação para a ressocialização dos apenados.

O louvor e a criatividade podem salvar vidas

Estar no sistema carcerário é como matar um leão por dia; não saber o que está por vir torna-se incômodo para muitos dos apenados, gerando assim diversas formas de escape de sua realidade para um momento ou uma atividade que os faça relativizar a falta da liberdade. Para que momentos de fé aconteçam, os apenados participam de cultos religiosos, realizados cultos pela Igreja Universal das dez às onze horas, e também a Santa Missa, com membros da Igreja Católica, das nove às dez horas. A parte da tarde é reservada para o momento espírita.

O culto com mais presença dos presidiários é o evangélico, com participação de 90% dos apenados, eles são organizados em no máximo 15 pessoas para participarem dos cultos. As igrejas mais atuantes são a Universal e a Pastoral Carcerária da Igreja Católica. “A Igreja Evangélica faz batismos aqui dentro do presídio, montamos uma piscina dentro do pátio, batizam a água e mergulham a pessoa dentro”, conta o diretor do presídio.

A inserção da religião dentro do Presídio Estadual de São Borja ajudou com a extinção das drogas lícitas e ilícitas nas celas um e dois do regime fechado. O índice de problemas com esses apenados também é muito baixo, e o sistema de acolhimento destes detentos dos demais é possível. “Os presos que têm problemas em outras celas são acolhidos por essa”, conta Lovatto sobre a importância da religião dentro de um ambiente tão hostil como o presídio.

O artesanato também é uma saída para aqueles que gostam de praticar habilidades e aproveitar o tempo. Existe uma sala separada para a realização desses trabalhos e suas capacidades vão além da construção civil e elétrica. Os presos utilizam materiais como o papel, madeira e couro Para fazer maquetes, pinturas, casas de bonecas, obras de carpintaria e até a produção de móveis. Dos trabalhos de artesanato, principalmente os de carpintaria, alguns apenados conseguem obter renda e ajudam no sustento familiar. Lovatto mostra uma maquete da viatura da SUSEPE feita por um dos detentos, “Os trabalhos que eles fazem aqui são impressionantes”, argumenta o diretor diante da miniatura das viaturas com riqueza em detalhes.

A saúde: os dois lados da moeda

A saúde mental, física e os direitos dos apenados são tratados com a devida importância no ambiente prisional. Eles contam com duas assistentes sociais, uma psicóloga que realiza cinco atendimentos por dia e uma advogada. Contam também com a ajuda de médicos (clínico geral e um ginecologista) e um dentista, ambos atuam durante a semana e são cedidos pela Prefeitura. O atendimento médico era feito no centro social, que fica na mesma rua do presídio. Porém, atualmente o local está fechado devido a danos causados por um vendaval. Foi feita uma parceria entre o presídio e o exército, onde foram colocados dez soldados e cinco presos para atuarem na reforma do espaço.

Dos 400 presos, cerca de 15 possuem alguma doença, sendo infecto-contagiosas e crônicas. Dois apenados estão em tratamento de hepatite, um em tratamento de câncer, seis estão fazendo tratamento do HIV e cinco de tuberculose. Entre hipertensos e diabéticos, o número é de 20 presos e 33 estão em tratamento de dependência química. As mulheres contam com o atendimento de um ginecologista que visita o presídio uma vez por mês.

Todo apenado que chega ao presídio passa por uma triagem para identificar possíveis doenças, assim podendo dar continuidade ou início ao tratamento médico devido. A fim de ajudar na distribuição e eficiência do atendimento de todos, o presídio tem parcerias com diversos hospitais. O hospital do município e o hospital Vila Nova em Porto Alegre recebem os presos, este último conta com duas alas, ala da desintoxicação com 50 leitos e 20 vagas para quadro clínico. De acordo com a gravidade, a pessoa é encaminhada para o Hospital Conceição ou para o Divina Providência na capital. Existem mais três hospitais que funcionam em parceria com o Sistema Prisional, localizados em Charqueadas, São Gabriel e em Rio Grande.

Saúde mental é uma preocupação dentro do sistema carcerário, tanto dos presos quanto dos agentes — Imagem: Segredos do Mundo

Os apenados não são os únicos a sofrerem com o convívio da rotina carcerária. Os agentes penitenciários também suportam pressão com o trabalho. Dentro do cárcere, por passarem muitas horas no local, convivem com a dura realidade que é dentro de uma cadeia . No presídio, os agentes penitenciários também têm o psicológico afetado, pois é uma vivência cotidiana extremamente exaustiva. Devido ao trabalho pesado, segundo Lovatto “o consumo de café para se manterem acordados é exagerado e a maioria deles aparentam ter a idade além do que possuem”. O diretor também comenta que “eles chegam a ter uns tiques e estalam os olhos, sempre muito atentos para atirar a qualquer momento”.

“Não é bom cair aqui. Porque depois de cair, você conhece dois mundos”

No ano de 2005, apenas 8,2% dos detentos era condenados por envolvimento com o tráfico ilícito de entorpecentes, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Em 2017, o Infopen realizou a mesma pesquisa e esse número quadruplicou, indo para 37%. Essas prisões se intensificaram com a implementação da Lei 11.343, de 2006, chamada Lei de Drogas, que é um dos principais argumentos para a legitimação do superencarceramento. No Rio Grande do Sul, os dados não são diferentes, sendo 28% dos apenados presos por tráfico ou associação ao tráfico de drogas. Por ser uma região fronteiriça, a cidade de São Borja é rota e funciona como porta de entrada para o tráfico, afirma Lovatto. O secretário de segurança do município Edson Damião Ribas, conforme reportagem publicada pelos estudantes de jornalismo, confirma o relato do diretor do presídio em relação ao tráfico na cidade de São Borja.

Por sua vez, o Presídio Estadual de São Borja mostra-se um local mais humanizado dentro do cenário carcerário brasileiro. Os apenados, identificados com roupas laranjas, desempenham várias atividades profissionais. Além disso, recebem cursos, orientação religiosa, assistência médica, doação de livros e materiais para montagem de artesanato. O presídio se destaca pela organização interna, impactando diretamente na melhora do quadro social de cada um dos apenados.

Uma vez que apresenta ampla organização, o Presídio Estadual de São Borja convive, também, com problemas, assim como outros. Segundo o site da SUSEPE, em março de 2019, o presídio contava com 215 presos. Entretanto, ele comporta mais de 400. “Não é bom cair aqui, porque depois de cair, você conhece dois mundos”, ressalta o diretor Rodrigo Lovatto

Conselho Nacional de Justiça aponta que…

O CNJ realiza inspeções nos presídios e divulga os resultados dessas inspeções em sua plataforma online. Segundo os dados publicados pelo órgão (GEORESÍDIOS), a última inspeção realizada no dia 10/09/2019, apontou que o Presídio Estadual de São Borja deveria abrigar somente presos do sexo masculino, entretanto, é reconhecida pelo órgão a presença das mulheres apenadas. Os dados mostram a presença de 31 agentes penitenciários no recinto, entretanto, a real escala de trabalho mostra a falta de funcionários efetivos para atender aos presos.

Órgão público tem como objetivo melhorar o trabalho do setor judiciário do Brasil — Créditos: Tecmundo

Mesmo com o número reduzido, os agentes agem rápido em situações emergenciais e contam sempre com o apoio da Brigada Militar, Polícia Civil e, também, Polícia Federal. Segundo o diretor Rodrigo Lovatto, é frequente o lançamento de materiais para dentro do pátio do presídio, tais como celulares e drogas, e são nessas situações que a cooperação com as polícias é essencial.

“Me sinto à vontade aqui, como se fossem pessoas da família”

Por mais que a visão externa do mundo carcerário ultrapasse a realidade, o presídio de São Borja mostra-se um lugar “calmo”. Seguindo as leis do LEP, o quadro prisional do lugar oferece oportunidades aos apenados dentro das grades do terreno.

Portão do presídio é administrador por um dos apenados em remição — Foto: Rafael Costa

O conhecimento desses dois mundos vem também dos apenados, que, por mais que estejam pagando pelos seus delitos à visão da justiça, enxergam uma nova chance de autorreconhecimento. J.M. está preso há dois anos e três meses em regime semiaberto e sempre trabalhou na elétrica em geral das viaturas da SUSEPE. Segundo ele, a convivência com os outros presos é tranquila, “Me sinto à vontade aqui, como se fossem pessoas da família”, afirma o apenado.

É notável que a organização que reina no Presídio Estadual de São Borja o destaca diante do cenário do sistema carcerário. Mesmo com os problemas que enfrenta, ainda dá tempo de categorizá-lo como uma penitenciaria diferente das outras. Médicos, religiosos, assistência social, bibliotecas, salas de aula… A infraestrutura e as pessoas envolvidas no processo de recuperação dos apenados harmonizam-se, de forma coletiva e mútua.

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Rafael Costa
O Costaverso

Acadêmico de Jornalismo da Unipampa, redator do Blogando, comunicador, fotógrafo, leitor e criador de memes.