Onde estão as mulheres de tecnologia? Quero contratá-las!

Karoline Leite
Creditas Tech
Published in
9 min readJul 23, 2019

Eu quero contratar mulheres em tecnologia, mas elas nunca se candidatam às vagas.

Você já pensou nisso alguma vez? Você abriu uma vaga para seu time de tecnologia, divulgou e teve o cuidado de dar prioridade para as candidaturas das mulheres. Entretanto, havia 100 candidatos homens e apenas 1 mulher — e o currículo dela não era tão bom quanto os deles.

Você se desapontou com a falta de engajamento delas, com a falta de vontade de irem para sua empresa. Elas desprezaram uma oportunidade como essa, numa empresa tão legal. Talvez você se sinta confortável em pensar: “não deu, mas pelo menos eu fiz minha parte”.

O que eu preciso te dizer é que você pode fazer muito mais do que isso.

Conheça a realidade das mulheres em tecnologia

É difícil selecionar quais fatores têm maior relevância no tamanho do déficit de mulheres trabalhando com tecnologia. Entretanto, existem muitos estudos e dados que mostram as barreiras para que elas se interessem por essa carreira.

1. Azul para os meninos, rosa para as meninas

Desde pequenas as meninas assimilam seu papel. Se você for comprar um presente para uma menina de 3 anos, qual a primeira ideia que viria em sua mente?

À esquerda um menino brinca numa bancada de ferramentas e à direita a menina brinca em uma cozinha.
Os brinquedos ensinam as crianças sobre o que é esperado delas socialmente.

Desde a primeira infância as mulheres começam a assimilar seu papel e suas atividades: cuidado da casa, dos filhos, da beleza e do corpo. Os brinquedos, as brincadeiras, os diferentes tratamentos acontecem desde a infância como uma manifestação da cultura vivida pela criança e vão impregnando diversos significados no que ela entende como o seu papel.

Há diversos estudos indicando que o estereótipo de gênero afeta as mulheres no seu desenvolvimento desde a educação básica — e o viés parte inclusive dos professores e dos livros didáticos. Ocorre de diversas formas, como dar notas mais baixas em matemática para as mulheres ou mencionar apenas os meninos em papéis de cientistas, matemáticos, etc.

No artigo Relações de gênero em um currículo de matemática para os anos iniciais: quantos chaveiros ele tem?, Lívia Cardoso e a pedagoga Jailma dos Santos apresentam dados de uma pesquisa de observação de aulas de matemática para os anos iniciais do fundamental em uma escola pública. As pesquisadoras notaram, por exemplo, que os meninos são mais incentivados pela professora a participar da aula do que as meninas, solucionando problemas no quadro e respondendo a questões da lição de casa. De certa forma, as meninas são “excluídas” da aula: seus acertos são menos festejados e, ao errarem, não recebem um retorno da professora sobre como melhorar.

Os problemas propostos em aula recorrem quase sempre a personagens masculinos e a situações consideradas típicas de seu universo — aquelas envolvendo futebol, por exemplo. Quando há personagens femininas, os estereótipos também se apresentam: a doceira, a cozinheira, a ajudante, a menina que brinca com bonecas. O mesmo ocorre em muitos livros didáticos, aponta Lívia. Nos livros de ciências, de forma geral, a figura do cientista que coordena e tem grandes ideias é masculina. A mulher aparece muitas vezes como assistente. E não é coincidência que o mesmo ocorra fora do ambiente escolar — em jogos e filmes, por exemplo.

Trecho retirado dessa reportagem.

2. As barreiras da computação

A computação tem sido socialmente considerada uma área masculina por muito tempo. Um fenômeno que contribuiu com isso foi a forte associação entre computadores e games na década de 80. As propagandas na televisão e na mídia em geral colocavam os meninos jogando e usando os computadores. Vendiam mais um brinquedo de meninos. Nessa propaganda da Apple acontece uma cena em que o menino tira um sarro da menina — que me parece um tanto triste usando o computador.

Não somente as crianças assimilam esses estereótipos como verdades, mas a sociedade como um todo o faz. As famílias incentivam muito menos as meninas a ingressarem na computação, por exemplo.

Sem referências, sem apoio, sem incentivo: isso se reflete diretamente nos números. Entre 2013 e 2018 apenas 9% das pessoas formadas no curso de Ciências de Computação do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP em São Carlos eram mulheres; no Bacharelado em Sistemas de Informação, foram 10% e em Engenharia de Computação, 6%. E, se na infância os vieses e estereótipos agem de forma sutil e velada, ao chegar na faculdade e no mercado de trabalho as coisas começam a ficar escancaradas. Discriminação e isolamento fazem parte da realidade de muitas dessas mulheres (veja alguns relatos). Segundo dados do PNAD, 79% das mulheres desistem dos cursos de nível superior em tecnologia ainda no primeiro ano.

Um fato que ajuda a corroborar a tese de que a dinâmica de propaganda dos anos 80 influenciou muito no afastamento das mulheres e da tecnologia: um estudo mostra a queda na participação delas na área a partir dessa década. Além de ser coisa de menino, a computação também passou a ser vista (ou vendida) como uma atividade de maior prestígio intelectual — antes disso era considerada algo mais associado ao secretariado, por isso as mulheres eram mais incentivadas a seguir a profissão.

Gráfico de linhas mostra uma queda acentuada no número de mulheres na computação a partir dos anos 80.
Source: National Science Foundation, American Bar Association, American Association of Medical Colleges — Credit: Quoctrung Bui/NPR

3. A síndrome do impostor

Tornar-se profissional é difícil, mas acontece. No Brasil, cerca de 20% das pessoas profissionais em tecnologia são mulheres. Mas “chegar lá” não significa vencer as barreiras sociais.

A síndrome do impostor foi introduzida como impostor phenomenon em 1978 pelas Dras. Pauline Clance e Suzanne Imes no artigo “The Impostor Phenomenon in High Achieving Women: Dynamics and Therapeutic Intervention”. Em linhas gerais, é um fenômeno configurado pelo medo de seu sucesso ser descoberto como uma fraude, de ser alguém que não merece o lugar que ocupa — alguém cujas conquistas são frutos do acaso ou da sorte.

Pensamentos como “logo vão descobrir que não sou boa nisso” acontecem o tempo todo. Autossabotagem, inibição, falta de ambição e medo de se arriscar são consequências para aquelas que sofrem desse mal.

Elas se candidatam muito menos para novas oportunidades, pois seus mecanismos de autoproteção — já que não querem ser vistas como uma fraude — as impedem de tentar uma vaga para a qual não se qualificam 100%.

Por tudo que acontece até a chegada à vida profissional, parece até natural a síndrome do impostor afetar tanto as mulheres. Um estudo indicou que 2/3 das mulheres no Reino Unido sofreram com a síndrome do impostor no ambiente de trabalho.

Ainda se perguntando por que os currículos não chegam?

Você acha possível receber tantos currículos de mulheres quanto de homens na sua vaga? É razoável pensar que os meios que atraem as candidaturas dos homens serão igualmente efetivos para as mulheres?

São “personas” completamente diferentes, não?

Como fazer mais

Se você, de fato, quer ter mais mulheres no seu time de tech, existe muita coisa que pode ser feita além de esperar que elas venham naturalmente. Comece a criar ações afirmativas.

1. Quebre as barreiras que não precisam existir

A descrição das suas vagas as inclui? Criamos — me incluo nisso — muitos vícios de comunicação que reforçam nossos vieses de que as vagas são feitas para os homens. Isso vai além da limitação linguística: usamos expressões como “é o cara certo”, “o cara pra essa vaga”, “um bom desenvolvedor” e por aí vai. Essa é uma barreira totalmente desnecessária que pode ser eliminada com um pouco de cuidado ao se usar uma linguagem neutra.

Na Creditas, procuramos sempre escrever a descrição das vagas de forma neutra. A vaga de software engineer é um exemplo. O Leonardo Andreucci tem um post que sempre recomendamos para as pessoas que participam do nosso processo seletivo para software engineer, que está proposital e cuidadosamente escrito de forma neutra.

Além disso, você precisa de todos esses pré-requisitos aí descritos? Foque a descrição da vaga naquilo que é realmente necessário, esqueça os nice-to-have.

Você já sabe sobre a síndrome do impostor. Faça com que elas não se sintam diminuídas ao ler sua vaga.

2. Você não estará baixando a régua: ressignifique sua ideia de potencial

A percepção e discussão sobre “baixar a régua” é bastante comum quando se fala em diversidade em geral. O problema está em enxergar que as características do grupo dominante são efetivamente um indicativo de qualidade superior. Por exemplo, determinar que uma pessoa que estuda numa universidade de renome tem mais potencial do que uma pessoa que estuda numa universidade de pouca expressão é uma definição limitada e bem errada. Esse tipo de pensamento, que enxerga essa característica como determinante de potencial, somente favorece grupos que tiveram oportunidades mais privilegiadas de acesso.

Meu relato pessoal é que, quando entrei no meu primeiro emprego em tecnologia, eu não era exatamente a candidata ideal: não sabia falar inglês, tinha estudado somente em escolas públicas, não tinha conseguido entrar numa faculdade pública e nem tinha dinheiro para pagar uma particular, tinha acabado de concluir meu primeiro e único curso na área de computação: um curso técnico.

Por algum motivo eu entrei nesse emprego e nessa carreira de onde não saí mais. Em virtude do meu potencial, fiz muitas coisas das quais me orgulho bastante. Apesar das minhas dificuldades iniciais, não acho que eu era a última colocada na corrida dos privilégios. Certamente há muitas pessoas atrás de mim. Mas é preciso ter consciência de que se a “régua de potencial” da sua empresa estiver ajustada aos primeiros colocados dessa corrida, você poderá criar uma enorme barreira de acesso para a diversidade.

As pessoas agregam valor para sua empresa por muitas outras características que vão bem além da grife da universidade onde estudaram, do inglês fluente, do MBA fora do país. Você tem um time forte pelo conjunto da obra, não pelos indivíduos sozinhos. É preciso balancear as experiências das pessoas no time.

Diamantes não brilham porque os átomos que os constituem brilham, mas devido ao modo como estes átomos se agrupam em um determinado padrão. O mais significativo é frequentemente o padrão e não as partes. E isto também acontece com as pessoas.

Mark Buchanan (2007), em O Átomo Social

Uma grande iniciativa da Creditas é o programa de mentoria, que é focado em grupos historicamente reprimidos. Através desse programa, pudemos contratar mulheres do Reprograma, Laboratoria e permitimos que duas tripulantes migrassem de suas áreas para tecnologia.

Além disso, bem como nossas vagas, nas nossas definições do job design das várias áreas da tecnologia não consideramos a formação superior como critério para definir a senioridade das pessoas. A ideia por trás disso é que o mais importante não é como você obteve o seu conhecimento, nem onde, mas sim o que você conhece e é capaz de entregar.

3. Crie um ambiente propício

Dê voz e empodere as mulheres de seu time. Converse com as pessoas e se posicione — a empresa precisa oficializar os valores em que acredita para que isso ecoe por todo o espaço. Incentive a criação de comitês e grupos de trabalhos para discutir o tema das mulheres em tecnologia.

Em diversos momentos a Creditas se posicionou de forma afirmativa em relação a diversidade, não somente de gênero, não somente em tecnologia. Citando uma ação que realizamos, recentemente aconteceu uma conversa entre os homens de tecnologia, puxada pelo Leo, para falar de situações ruins que aconteciam na empresa.

E ainda mais recentemente, criamos um grupo de diversidade que conta com sub-grupos trabalhando em temas diferentes: pessoas negras, mulheres, mulheres em tech, pessoas com deficiência e LGBTQ+. Todos os grupos respaldados e em total alinhamento com a gestão da empresa para criar ações afirmativas.

Dentro de tecnologia, temos um grupo das mulheres, que promove encontros periódicos para fomentar discussões variadas. É o “Papinho das TechMinas”. Já tivemos encontros para conversar sobre temas totalmente técnicos, sobre feedbacks difíceis, autoconfiança e por aí vai.

4. Aprenda com as fricções e faça mudanças

A presença das mulheres no seu time poderá trazer à tona discussões que antes não aconteciam. Se isso acontecer, que ótimo! Dê atenção a isso e faça mudanças verdadeiras.

A Creditas mudou muito desde sempre, aprendeu e se adequou para ser um lugar cada vez mais seguro. Muitas crises geraram mudanças significativas. Foi após um episódio específico, causador de grande manifestação das mulheres de tecnologia, que surgiu o programa de mentoria e passamos a dar atenção a utilizar uma linguagem neutra nas nossas vagas.

Quando reflito sobre o que já fizemos por aqui, me parece que as grandes crises sempre trouxeram as ações mais significativas. Aprendi que essa fricção faz parte do processo, não estamos num conto de fadas, o que faz diferença é o quanto a empresa se preocupa em evoluir de verdade.

Dividindo a manga

Às vezes o discurso pode assustar e parece até que queremos tratamento especial para as mulheres, parece que é uma seita em que homens não têm vez.

Não é esse o intuito. Não se trata de dar mais privilégios para algumas pessoas ou grupos, é sobre equalizar as oportunidades. Escrevi esse post pensando num episódio do desenho Meena, que marcou muito minha infância e meu modo de ver as questões de gênero. Esse post é minha tentativa de replicar aquilo que mais me marcou naquele episódio do desenho, é sobre colocar mais gente no nosso lugar, de trocar de papéis por um instante para vivenciar as dificuldades e aprender a “dividir a manga”, (vai ter que assistir pra entender a analogia, né?).

Tem interesse em trabalhar conosco? Nós estamos sempre procurando por pessoas apaixonadas por tecnologia para fazer parte da nossa tripulação! Você pode conferir nossas vagas aqui.

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