The Pawnbroker (1964)

ou: Sidney Lumet, um gênio que merece ser mais lembrado

Matheus Massias
10 min readMay 11, 2014

Decerto o cinema americano tem estabelecido seu panteão, ou cânone, de diretores, sejam eles Hollywoodianos ou do mercado independente. O cinema de Sidney Lumet não é um cinema tão comentado (ou pelo menos não me parece) como o de um Coppola ou Scorsese, ou até mesmo o cinema de um Stanley Kubrick, os quais têm marcas e valores, sejam estéticos ou temáticos, diferentes, porém importantes. Fiz referência em especial a esses três diretores ao traçar uma linha mais ou menos cronológica em relação ao início e fim da carreira deles, embora se saiba que Kubrick nos deixa em 1999, com De Olhos Bem Fechados; e Lumet, com uma carreira de quase sessenta anos, parte em 2011, deixando em 2007 o extraordinário Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto (escrevi brevemente sobre o filme aqui) como seu último filme, e um legado merecidamente instigante. Foi com esse último filme que Lumet foi introduzido ao mundo do cinema digital, uma experiência que ele amou, por causa das conveniências de gravação, e só de imaginar o que ele poderia ter feito é tentador, visto que diretores como o anteriormente mencionado Scorsese abraça de maneira positiva o cinema digital.

No momento em que eu ficar mais a par da obra de Lumet e, consequentemente, da de Coppola, confirmarei minha hipótese de que — apesar de não ser muito bom usar essa comparação — o cinema de Lumet é superior ao de Coppola, apesar de trabalhos como O Poderoso Chefão e Apocalypse Now ressoarem na história do cinema (e apesar, de novo, do meu apreço por Tetro), ao invés de, digamos, 12 Homens e Uma Sentença e Um Dia de Cão. Esses dois últimos filmes citados, de Lumet, são apenas dois (grandes!) exemplos do que se pode constatar em sua obra; é patente a habilidade do diretor em trabalhar e desenvolver cenas e planos em ambientes fechados, exigir ao máximo dos atores em questão; quem é que se cansa da sala de discussão do júri em 12 Homens e Uma Sentença? Ou ainda, quem é que enjoa da performance frenética e improvisada de Al Pacino em Um Dia de Cão, dentro do banco ou na calçada discutindo com a polícia e gritando “Attica! Attica!”? O uso do espaço contido, fechado, abafado, quente, é uma das coisas que mais me chama atenção nos filmes de Lumet, e agora, em especial, no filme O Homem do Prego (1964).

O filme começa curiosamente em câmera lenta, mostrando crianças no campo, uma mulher pegando água no rio, um homem ao longe no pé de uma árvore, degustando seu fumo e lendo um livro, um senhor barbudo e uma senhora em outra árvore; aparentemente é uma família reunida e feliz, aproveitando o final de semana. A música que toca é terna e acolhedora, mas de repente se torna tensa e mais rápida, os rostos e os olhares também se afligem, Lumet percorre cada olhar e expressão dos que ali estão presentes, construindo a tensão através da montagem. O espectador não vê o desfecho desse momento; no entanto, essa espécie de prólogo é de extrema importância para o que virá no filme.

Sol.

Em outro plano, através de um zoom in, Lumet mostra um homem, deitado, no conforto de uma cadeira de sol, que nos é apresentado como Sol, ou Solly (um provável diminutivo de Solomon). Em seguida, Lumet nos apresenta a mulher que chama por Sol, que está lhe oferecendo limonada. Com uma guinada de câmera, Lumet constrói uma mise-en-scène belíssima, enquadrando três personagens próximos, incluindo Solly, a mulher e mais um homem lendo jornal, e mais dois ao fundo, que estão em seus quintais, regando o jardim:

Esse é apenas um exemplo, dentre tantos outros, de composição de cena, que Lumet nos oferece em O Homem do Prego. As primeiras cenas, que acontecem nesse ambiente, já nos dizem e mostram um pouco quem é esse homem, além do título em inglês que nos informa que o homem em questão é um penhorista. A mulher, que oferecera limonada, se aproxima e conta seus planos de viagem para a Europa, e Sol seriamente pergunta “e por que você quer ir a Europa?”, a mulher e o homem do jornal falam da atmosfera diferente, que se pode “sentir/cheirar a diferença”, e então Sol retruca “é mais como um fedor, se bem me lembro”. A resposta de Sol deixa no ar inferências de uma passado que ainda não conhecemos.

O homem, como dito acima, trabalha numa loja de penhor, vai ao trabalho de carro, mas também anda pelas ruas até lá, olha as feirinhas de calçada, as pessoas na frente das casas, a vizinhança ao redor; nesse aspecto, o filme cativa bastante, é bem realista, é sujo e agradável ao mesmo tempo, não há maquiagens, nem a plasticidade do filme Hollywoodiano geral, imerso no mundo dos estúdios e dos cenários removíveis.

No decorrer do filme, descobre-se que o lugar em que o filme se passa é o Harlem, rico em culturas e multiétnico; Lumet se volta para a personagem de Jaime Sánchez, que faz o rapaz de descendência hispânica, Jesus Ortiz. Num apartamento apertado, Jesus é um jovem performático, fala com entusiasmo e energia, e sua mãe, uma senhora já, arrisca no inglês, mas sua comunicação com o filho se resume praticamente ao espanhol. Ela implora para que o filho não se meta em problemas e ele, em contrapartida, lhe promete que não vai fazer nada de ruim, que dessa vez seu trabalho é “estritamente legal”. Jesus trabalha com Sol, que agora é tratado como Mr. Nazerman, a cena de entrada é incrível, com a câmera posicionada na parte de fora da loja, ou melhor, na área limitada pela grade, que separa os trabalhadores do recinto dos clientes, Lumet segue a entrada de Jesus, indo com a câmera da direta para a esquerda e depois voltando, como se além disso quisesse mostrar também o interior da loja.

Após percorrer o caminho, a câmera para e se instala de uma forma que enquadra o Mr. Nazerman, o cliente que já havia chegado e Jesus:

Tais enquadramentos são absolutamente peculiares, e substancialmente essenciais para o filme, no desenvolvimento da cena através do espaço. As grades, ao invés de serem um empecilho, são de extrema importância para a construção das cenas, que se desenvolvem a partir da relação de Nazerman com sua clientela, que dia sim, dia não, vem oferecer algum utensílio pessoal em troca de alguns dólares: é o rapaz do prêmio de oratória, que declamou todo “O Corvo”; é a senhora negra da voz exaltada e radiante que quer penhorar castiçais; o senhor negro, que deve ter mais ou menos a idade de Nazerman, que aparece ali mais em busca de uma conversa inteligente do que para penhorar algo, embora o faça; entre outros. Esse aspecto do filme me faz lembrar ligeiramente de O Cheiro do Ralo (que também escrevi brevemente aqui), onde cada cliente, com seu respectivo item, tem uma história diferente, um sentimento pelo objeto, mas que não interessa nenhum pouco ao penhorista. A troca da mercadoria pelo dinheiro é, de um lado, sentimental, às vezes alegre e cordial, por outro lado é fria, moralmente séria, porém educada.

Outro lado do filme que se passa no interior da loja é a relação do senhor com o jovem Ortiz que trabalha com ele. Ortiz, sempre ávido, trata o senhor como mestre, professor, e diz que só se sujeitou a trabalhar na loja pois o anúncio do jornal procurava alguém interessado em aprender os detalhes do ramo. Em certo momento, três homens aparecem na loja querendo penhorar um aparador de grama, e eis que uma cena-chave é exibida:

Números

O rapaz pergunta, “onde você conseguiu esses números, tio?” — a partir desse momento, se o espectador não havia sacado o possível background do senhor Nazerman, é que se especula o possível passado do penhorista: nos campos de concentração (e o uso das grades na composição do cenário faz alusão provavelmente direta ao ambiente de extermínio dos judeus). Essa, sem dúvida, é a pista mais sensata, além do nome peculiar, Nazerman, e do relativo desgosto do senhor pelo ar europeu. Inocentemente, Ortiz pergunta se os números são de alguma sociedade secreta, Nazerman responde secamente, “sim”, e então o rapaz indaga, “o que eu faço para me juntar?”. Nazerman, que estava de cabeça baixa conferindo alguns documentos, olha para o rapaz e retoricamente pergunta, “o que você faz para se juntar?”, pensa e então responde, “você (tem que) aprende(r) a andar na água”.

Duas outras importantes personagens no filme são as de Geraldine Fitzgerald e Brock Peters, que fazem a senhora Birchfield e Rodriguez, respectivamente. Embora sem muito êxito, a personagem da senhora Birchfield aparece no filme para despertar algo sentimental (e amoroso) em Nazerman, que só tenciona a relação dos dois e mexe no passado do homem. A cena em que os dois se encontram na praça, e que a discussão é moldada pelo posicionamento de cada um através dos bancos é admirável. A personagem de Rodriguez, um homem negro rico, é de certo modo marcada por incongruências, que são explicadas mais tarde no filme, e que se associam ao passado de Nazerman também.

As associações de imagens e cenas do presente com o passado de Nazerman são fundamentais para a narrativa do filme. Duas das mais fortes são quando o senhor está voltando para casa, e no caminho para o carro, vê um jovem sendo espancado por várias homens, ele tenta escalar as grades, mas sem êxito:

A edição do filme a fim de fazer contrapontos com o presente e o passado, acima mencionados, é de extrema importância:

O outro exemplo é quando uma moça, notoriamente magra e grávida tenta penhorar seu anel de noivado, que julga ser de diamante, mas Nazerman recusa, pois detecta que o material do objeto não passa de vidro.

As cenas são interpostas com a memória de Nazerman do campo de concentração, quando através de grades, os judeus tinham que estender as mãos, geralmente trêmulas, para que seus anéis fossem confiscados:

O conflito temporal e ter sobrevivido ao holocausto são uma das maiores angústias de Nazerman, e é o que marca de forma dramática e triste o filme, através de seu comportamento frio e amargo com as pessoas, seja em sua família ou no trabalho. Mendel, um senhor com quem ele tem uma relação familiar, está de cama, aparentemente doente, mas ainda forte para criticá-lo:

“Culpa, e aí está. Culpa de encontrar-se vivo. E então você se cobre numa espécie de mortalha e se sente compartilhando a dignidade da morte com aqueles que realmente morreram. Me diga… será que o sangue sempre flui através do seu corpo, Sol Nazerman? Você pode sentir dor? — Não — Você é uma farsa. Você respira, come, anda. Você ganha dinheiro. Você fica com um sonho e dá um dólar. E dá esperança — Eu sobrevivo — Sobrevive? A sobrevivência de um covarde, e a que preço! Sem amor, sem paixão! Sem piedade! Morto! Sol Nazerman, o morto-vivo!

A aspereza e experiência, além da vivência, de mundo de Nazerman o faz acreditar que o dinheiro é o que mais importa na vida (sendo que a avareza e riqueza são um dos estereótipos mais frequentes do povo judeu), e esse ensinamento desperta a cobiça de Ortiz, que vê no velho homem uma figura para se inspirar e seguir. Os momentos finais do filme acompanham de forma magistral o que já foi comentando até aqui, e por todo o filme é deleitante o modo como Lumet nos mostra essa história, seja na sua técnica cinematográfica, de composição de cena à zoom-ins e zoom-outs, movimentos de câmera, e o trabalho em equipe que foi feito com a atuação esplêndida de Rob Steiger como Sol Nazerman, de Jaime Sánchez como Jesus Ortiz, entre outros. A importância da trilha sonora, conduzida e composta por Quincy Jones (sim, aquele que provavelmente foi e é mais conhecido por ter produzido o ícone pop Michael Jackson), deve também ser acentuada; no momento em que toca “Soul Bossa Nova”, por exemplo, sabe-se que ali tem algo a mais.

É ratificante a progressão dos planos finais, o close nos rostos das personagens que passaram pela vida de Nazerman nessas quase duas horas de filme, o uso exímio, mais uma vez, da edição, alternando o sofrimento do senhor, com sua futura redenção.

O Homem do Prego é uma amostra da importância e magnitude do cinema de Sidney Lumet, um diretor que exerceu uma carreira extensa e prolífica, que são sinônimos quase absolutos de qualidade. Seus filmes são um penhor ao cinema, uma garantia de beleza e arte sempre eficazes e maravilhosas, além de acessíveis. É de suma importância lembrar mais desse gênio que o cinema deu cria.

Florianópolis, 11 de maio de 2014

M. B. Massias

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