Agora que ela se foi — Parte 1

Crônicas caninas: o amor que vira dor

Ela se foi vencida por doença, envolvida pelo amor transformado na mais triste das decisões: a de interromper o sofrer, devolvendo à alma a liberdade presa a um corpo sem alegria ou vivacidade, escravo das dores e limitações que lhe tiravam a vida.

Com ela, foi-se a luz de uma casa feliz. Já sentíamos a ausência da sua presença recolhida, encolhida e curvada a seus pesares de fim, mas ela estava lá, escondida embaixo de minha mesa de trabalho ou enroscada no apertado da pequena lavanderia. Ela queria ficar em paz e a deixávamos.

Não vinha mais nos saudar pela manhã, com o rabo enroscado rodando qual helicóptero. Primeiro eu, depois ele, para, na seqüência, passar pela cortina e se deitar no nicho atrás da janela. Era hora do banho de sol. Também não vinha mais à mesa, sobretudo no café da manhã. Não pedia mais bananas, nem saia de onde quer que estivesse, ao som do plástico desembrulhando madeleines. Memórias de Guemantes para uns, memórias de Vitória para outros.

Nem se dispunha à satisfação dos longos passeios. Com muito convencimento, entrava no carro, ainda cedo, e era dirigida ao parque ao lado. Achada a grama, descia e fazia rápido o que precisava fazer. À noite, com ela jogada ao chão, recusando-se a sair do prédio, era por nós arrastada ate o canteiro da frente. Um xixi eternamente longo e a volta direta para onde havia saído.

Mas ela estava lá. Retirava-se aos poucos de nossas vidas, como se para nos preparar, mas estava lá. E estando, íamos ao seu encontro, com as mãos cheias de pedaços de banana e bocadinhos de madeleine. Sentávamos ao seu lado no apertado da lavanderia minúscula, acariciando o seu corpinho trêmulo. Conversávamos com ela, cantávamos para ela as conversas e os cantos dos últimos 12 anos.

Agora, nem isso. Bananas apodrecem e sobram madeleines.

Deixou a casa tristemente limpa e o vazio dos espaços outrora ocupados. A sala sem alma, a alma sem ela.

Bucareste, 7 de agosto de 2017.