3x4: Giovanna Muzel

Giovanna Muzel

Giovanna Muzel da Paixão, ou, simplesmente, Giovanna Muzel é uma jovem cineasta nascida em Osasco, na grande São Paulo, e moradora de Taquari, cidade pequena do interior do Rio Grande do Sul.

Filha de um bancário e de uma mãe dona de casa, Giovanna trabalhou como professora de inglês, designer e ilustradora, e se formou no curso de Cinema de Animação na Universidade Federal de Pelotas, em 2018. Além de fazer filmes (escrevendo, animando, montando e dirigindo!), Muzel também é ilustradora e canta e compõe, se movimentando com habilidade e delicadeza sobre artes diversas.

Só Sei Que Foi Assim (2018), o seu filme de estreia (leia a nossa crítica aqui), que atualmente compete na pré-seleção do Grande Prêmio de Cinema Brasileiro de 2020, nasceu como o projeto de conclusão de curso da faculdade. Não se restringindo aos muros da universidade, o filme fez carreira em festivais e venceu o prêmio do júri de Melhor Filme, do Prêmio Assembleia Legislativa de Cinema, na Mostra Gaúcha de Curtas Metragens 2019, no Festival de Gramado.

Conversamos com Giovanna sobre o seu filme, sobre a sua arte e sobre seus planos para o futuro. Confira abaixo.

Cena do filme Só Sei Que Foi Assim

Curta Curtas: Como você descreve a sua relação com o cinema? O que te levou a querer fazer filmes?

Giovanna Muzel: Muito de assistir filmes veio da minha mãe, ela gostava de levar minhas irmãs e eu ao cinema e a gente também tinha o costume de alugar filmes e fazer maratonas durante as tardes.

Cresci em uma época que locadoras era uma moda em Osasco, e tinha uma particularmente muito boa perto da minha casa, com uma boa seleção de filmes diferentões e menos conhecidos. Acabei entrando em contato com muitas animações fora do circuito tradicional americano, principalmente filmes japoneses e franceses. Tudo isso gerou muitos afetos pelo cinema e pelo audiovisual mas acho que eu comecei a querer a fazer filmes (e principalmente filmes animados) quando eu percebi que eu conseguia ​ ​fazer filmes. Vou explicar melhor:

Lá quando eu tinha uns 15 ou 16 anos, encontrei um canal no Youtube de um rapaz chamado Ed Stockham, que fazia animações de um jeito bem artesanal e “amador”. Os filmes eram sinceros e tinham uma estética caseira charmosa. Ele tinha gravado um vídeo dos bastidores de um de seus curtas e tinha sido literalmente desenhando no papel e fotografando com aquelas câmeras digitais dos anos 2000. Eu achei fenomenal! Até então meu contato com animação era por meio de estúdios profissionais, coisas com 24 frames, última tecnologia. E lá estava esse menino, fazendo um curta com a força de vontade dele, do jeito mais sincero que conseguia, usando o que tinha disponível no próprio quarto. Aquilo conversava comigo, me tocava e me motivava a querer fazer também.

A gente às vezes acha que precisa de grandes programas e equipamentos, e acaba ficando na espera de ter tudo perfeito antes de começar. Quando essa distância do que eu via e gostava e do que eu conseguia fazer ficou mais curta, foi mais ou menos aí que eu decidi fazer cinema.

Nessa época também tive contato com zines punk, e acho que tem também muito a ver, toda a vibe de um trabalho mais caseiro e assumido. Nessa época fiz umas duas ou três animações caseiras para o Youtube, desenhando no papel, escaneando e montando no movie-maker (risos). Logo depois prestei o Enem e descobri o curso de [cinema de] animação.

CC: Além de ter escrito, dirigido, animado e dublado Só Sei Que Foi Assim, você também compõe e ilustra. Como é transitar por áreas que, aparentemente, são tão diferentes (e ao mesmo tempo tão complementares)?

GM: Acho que todas essas áreas têm um ponto em comum que é narrativa. Nem sempre eu soube que eu iria trabalhar com cinema, mas eu sempre quis contar histórias e eu gosto bastante das possibilidades que cada técnica oferece. Embora música seja mais um hobby do que qualquer coisa!

Cena do filme Só Sei Que Foi Assim
Júlia, a personagem principal do curta Só Sei Que Foi Assim, em cena do filme

CC: Seu filme de estreia faturou prêmios importantes enquanto rolava o Festival de Gramado, um dos mais importantes do país. Como foi ser reconhecida assim, logo de cara? Enquanto produzia, achava que o seu filme fosse chegar tão longe?

GM: Foi uma grande surpresa, na verdade. O filme foi meu TCC e, embora eu acreditasse muito na história, eu não esperava que fosse viajar tanto ou ganhar um prêmio em Gramado. Acho que ninguém na universidade esperava isso. Foi o segundo festival que participei e o primeiro que ganhei, de forma que eu estava super nervosa e nem um pouco preparada quando anunciaram meu nome.

CC: Falando do filme em si, a Julia, personagem principal do curta, pode ser considerada um alter ego seu? Se sim, o que você tem de mais parecido com ela e de mais diferente?

GM: Posso dizer que de comum eu também consumo altas quantidades de café ruim com açúcar. De diferente o meu cabelo não é estiloso e não moro com um tigre. Não sei se chamaria [a Julia] de alter ego, mas com certeza coloquei bastante de mim. Toda a pira dos pedaços do corpo caindo surgiu como uma maneira de pensar e processar a minha própria ansiedade. O filme teve essa função “hermenêutica”, por assim dizer. Esse foi um dos motivos que meu professor me convenceu que seria uma boa eu dublar a Julia.

No final acho que todo personagem, seja ele quem for, traz muito de seu autor. Todos eles passam por esse véuzinho chamado percepção e por mais diferente que eles sejam ainda vieram da nossa voz, ainda são reflexos de como interpretamos o mundo. É interessante pensar que na mesma forma que existe meu eu em Julia, também existe meu eu em Santiago [o outro protagonista do curta, o tigre]. Ele é o fruto de diversas impressões que eu tive, da coragem, do medo, da insegurança e do carinho que eu vi em outros e que, no final, repercutiu na minha própria coragem, nas minhas próprias inseguranças.

Lembro que o curta foi meu TCC, e quando o criei eu tinha muito da Julia em mim. No final do curso, quando já estava me mudando da cidade e escrevendo a parte teórica (que foi uma reflexão sobre a prática), de certa forma o Santiago me trouxe uma espécie de conforto que eu não esperava que ele trouxesse, afinal inicialmente eu não tinha pretensão de me tornar um tigre.

CC: Li em algum lugar você contando que o filme era, de certa forma, um reflexo de suas experiências na universidade. Vi o curta antes de saber qualquer coisa sobre ele e senti que ele falava de coisas muito mais amplas, como as dúvidas e incertezas que as pessoas têm em relação ao futuro e ao se arriscar no novo. Foi uma escolha consciente tornar a obra aberta (e maravilhosamente) metafórica para que ela assumisse outros níveis de significação?

GM: Eu me refiro ao curta como um reflexo das minhas experiências porque acho que se eu não tivesse passado quatro anos estudando cinema numa cidade pequena no Rio Grande do Sul ele teria outra cara e seria outra coisa. E é engraçado porque ele transmite coisas muito pessoais sem “dar nomes aos bois” ou explicitamente dizer o que significam. Eu não queria apontar o dedo, mas sim levar à tona alguns sentimentos e abrir uma conversa, deixar a interpretação aberta para o público preencher as lacunas e as metáforas serviram muito bem pra isso, então sim, foi tudo planejado para abrir esse diálogo mais amplo.

E a sutileza e o pessoal estão ainda no curta: a janela da cozinha foi baseada na casa de uma amiga, a paisagem da cidade era a vista do meu apê em Pelotas, a escolha de serem dois amigos não atores interpretando os personagens (o carinho e a proximidade [que resulta disso] é genuíno)… Esses detalhes também aproximam o público com a história, é mais quentinho, deixa mais íntima a pergunta: “foi assim para mim, como foi para você?”

Cena do filme Só Sei Que Foi Assim
Júlia e Santiago, os protagonistas de Só Sei Que Foi Assim

CC: Do que você experienciou até agora, a recepção do público foi mais calorosa entre as pessoas que estão na mesma fase de incerteza que as personagens do filme? Conta um pouco pra gente como tem sido esse retorno por parte do público.

GM: Se eu fosse colocar o filme em um gênero, eu o coloria como [sendo] um coming-of-age, então eu acho que ele dialoga mais com o público mais jovem que está passando por mudanças. Para ser sincera foi um pouco difícil de quebrar a barreira geracional, fui criticada algumas vezes pelo uso de gírias durante o processo de criação dentro da universidade.

A resposta do público é minha parte preferida: eu adoro quando as pessoas vem comentar comigo e lembrar de momentos que elas já se sentiram como os personagens. Ver com quais elas se identificam mais e como processaram tudo que aconteceu. Também é legal para ver se a mensagem transmitiu corretamente, se eu consegui alcançar o que propus.

Teve duas situações que foram muito especiais para mim: uma professora veio pedir para passar o curta para os alunos dela pois eles estavam indo do Fundamental para o Médio. Ela me contou como foi [a experiência], como conversaram sobre o curta e [como os adolescentes] se abriram sobre toda a fase nova que estavam passando, e até um aluno mais durão tinha se emocionado.

Também teve um rapaz que me mandou um e-mail falando que viu o curta em uma mostra e curtiu muito e que agora ele queria fazer animações também. Eu fiquei muito feliz quando recebi essa mensagem, acabou me lembrando de quando eu tinha 15 anos e vi os curtas do Ed. Senti que eu consegui repassar um pouco dessa mágica da animação para alguém.

CC: Pensando a respeito do público, bora falar sobre a democratização do acesso aos filmes de curta-metragem. Como você enxerga a questão da distribuição desses filmes no Brasil de hoje? A distribuição é uma questão pra você ou algo que passa ao largo?

GM: Essa é a parte mais difícil, né? Eu acho que a exclusividade que alguns festivais pedem é uma prática um tanto datada. Incluo ela aqui porque é uma das primeiras etapas e, logo de primeira, já é uma restrição que limita o curta à alguns círculos. Muitas vezes o curta fica preso durante anos, e acho que isso cria uma distância e dificulta a galera a conhecer e compartilhar o material mais recente feito no seu país.

Esse ano postei o Só Sei Que Foi Assim no Youtube, que até agora é a plataforma mais amplamente acessível que conheço. Eu pretendo liberar os outros trabalhos eventuais que eu fizer do mesmo jeito.

CC: Embora a gente tenha excelentes cineastas e animadoras mulheres, se pensarmos em quantidade, o cinema ainda parece ser um meio majoritariamente masculino. Você acompanha a produção de cineastas e animadoras mulheres? De quem você gosta? Quem te inspira? (Em geral mesmo, não se restringindo ao fator gênero.)

GM: Acompanho! Aqui no Brasil curti muito o [filme] Carne, da Camila Kater e quero ficar de olho nos próximos trabalhos dela. A Amanda Treze também foi minha colega de faculdade e eu admiro muito tudo que ela faz! Inclusive já colaboramos em alguns curtas juntas.

Internacionalmente, a Julia Pott foi uma grande inspiração para mim junto com o Ed Stockham. Também acompanho o trabalho da Vewn, do Jack Strauber e do Felix Colgrave.

Cena do filme “Só Sei Que Foi Assim”

CC: Você já tem algum próximo projeto fílmico engatilhado? Se sim, pode dividir conosco alguma coisa?

GM: Tenho! Na verdade eu gosto bastante de comentar sobre os meus processos e resolvi fazer uma newsletter mensal [assine aqui] para conversar e dividir o que venho criando e planejando.

No momento, estou escrevendo um longa (ou pelo menos planejo que seja um, vamos ver aonde que a história vai me levar) sobre três irmãs que se separaram e perderam contato ao longo da vida. Um dia uma delas recebe uma chamada de voz da mãe morta falando instruções misteriosa e isso faz com que elas [as irmãs] tenham que voltar a conversar, desenterrando conflitos antigos, sentimentos e outras bagagens. Não é uma história assustadora! Quero explorar como esses personagens lidam com o luto e como cada um processou essa infância compartilhada e o sentimento de irmandade…

Tenho outros projetos que não são filmes também engatilhados. Pretendo disponibilizar eles gratuitamente na internet.

CC: E pra terminar, como você enxerga o seu futuro enquanto realizadora de cinema?

GM: Eu pretendo continuar produzindo animações de maneira independente e continuar contando e estudando histórias. Esse ano abri um apoia-se para quem quiser e puder colaborar com minha arte [apoie o trabalho de Giovanna, conheça mais clicando aqui!]. Procuro fazer um trabalho menos industrial e espero que eu consiga manter isso ao longo dos anos.

Conheça mais sobre o trabalho de Giovanna Muzo acessando o seu site.
Leia a nossa crítica para o filme Só Sei Que Foi Assim, de Giovanna Muzo.
Leia outras entrevistas da seção 3x4.

--

--

Thiago Dantas
curta curtas :: curtindo curtas, curtindo cinema

Uma espécie de Macabéa, só que mais trouxa. 31 anos, paulistano, comunicólogo e professor.