Só Sei Que Foi Assim

Animação de Giovanna Muzel funciona como um coming-of-age maduro e delicado

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Só Sei Que Foi Assim (2018) é uma animação de sete minutos dirigida pela cineasta paulista Giovanna Muzel.

O curta, que nasceu como o projeto de conclusão do curso de animação de Muzel, se desenvolve a partir da amizade entre Júlia e Santiago, uma garota e um tigre, que dividem uma xícara de café e também planos e receios sobre a vida e o futuro.

Enquanto conversam, as personagens discorrem, com intimidade e afeto, sobre a necessidade de se pôr altas doses de açúcar no café, sobre a necessidade de se tomar café para aguentar o tranco da faculdade e sobre ir perdendo pedaços de si durante o caminho que se faz e ir acumulando coisas sem abrir mão. Júlia, aliás, ilustra isso de maneira literal: são frequentes as cenas em que mãos e membros são descolados do seu corpo, como se tivessem sido cortados. Santiago, por sua vez, vive com uma mochila nas costas, e quando confrontado afirma que não é acumulador, mas um colecionador, que que “tem medo de esquecer elas [as coisas] em algum lugar e não conseguir voltar pra pegar”.

Em pouco mais de dois minutos, Muzel apresenta e colore seus personagens com falhas e características muito humanas. Se no começo parecem como qualquer outro desenho animado, ao fim dessa apresentação elas deixam de ser apenas desenhos e passam a ser representações de sentimentos humanos, demasiadamente humanos. A naturalidade com que os diálogos e ações se desencadeiam é tamanha que lembram o cinema de Richard Linklater, mais especificamente as reflexões de Acordar Para a Vida (Waking Life, 2001), ao passo que os desenhos em si remetem, em algum grau, aos desenhos de BoJack Horseman (2014–2020) e A Hora da Aventura (2010–2018).

E é nessa direção reflexiva e aparentemente pequena que o filme segue, quando Santiago diz que estava lendo e percebeu que era um tigre e que precisava fazer coisas de tigre e morar em um lugar de tigre (tanto ele quanto Júlia parecem viver numa área urbanizada, típica de cidade grande). E é nessa direção que o filme vai quando Júlia decide acompanhar o melhor amigo na empreitada.

Há no filme de Muzel uma ode discreta à coragem. Não à coragem do impetuoso herói dos moldes clássico, desprovido de medo e de receios. Mas à coragem do herói comum, do herói cotidiano, do herói pequeno, que mesmo com medo resolve seguir em frente sem saber exatamente o que o espera. Nessa ausência de grandes peças e situações, Júlia e Santiago, revelam fragilidades e uma disposição mútua de se ajudarem, de dar conselhos (“Olha, é o que eu te disse àquela vez: você tem que parar de ficar onde você não tá”, diz Santiago em dado momento).

Sendo muito mais adulto do que parece ser à primeira vista, Só Sei Que Foi Assim diz em seu discurso coisas muito maiores e mais profundas do que as coisas que diz em primeiro nível. Não se trata apenas da jovem que perde pedaços de si pelo caminho ou do tigre domesticado que tem medo de voltar à (sua) natureza. Se trata, sim, da jovem que perde pedaços de si pelo caminho e do tigre domesticado que tem medo de voltar à (sua) natureza, mas também diz respeito a todo o universo que cerca essas personagens e a todas as coisas que ditam suas escolhas, além de falar, claro, sobre o processo de crescer mesmo com medo de mudar. Tudo é extremamente metafórico, mas também direto: o subtexto ganha concretude e literalidade nas imagens (a perda de membros de Júlia ou a dificuldade de Santiago em adentrar em lugares carregando toda a sua bagagem são exemplos disso) e o texto funciona, justamente, pela despretensão e pelo desejo de não querer soar como uma grande metáfora sobre as coisas, apesar de ser.

Nesse sentido, os traços de Giovanna convergem nesse mesmo norte não-megalomaníaco: utilizando com frequência imagens quase que estáticas para ilustrar ações e falas dos personagens (os três quadrinhos do começo do filme, por exemplo, remetem diretamente ao formato essencial de tirinhas) e cores opacas e alegres, a diretora é hábil ao imprimir ideias e sensações que, assim como o filme como um todo, parecem “pequenas”, mas revelam toda uma grandeza por detrás de cada quadro.

E é assim, com ternura e com afeto, que Muzel encerra sua reflexão, sem dizer o que será de seus personagens, mas acenando para um otimismo que soa latente e discreto. Talvez, diante da realidade do filme (e da vida), o único tipo de otimismo possível.

Só Sei Que Foi Assim
Direção: Giovanna Muzel
Ano: 2018

Assista ao filme aqui. Aproveite e leia a entrevista que fizemos com a diretora clicando aqui.

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Thiago Dantas
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Uma espécie de Macabéa, só que mais trouxa. 31 anos, paulistano, comunicólogo e professor.