3x4: Torquato Joel

Considerado um nos nomes mais expressivos do circuito curta-metragista do Brasil, o cineasta paraibano tem muita história para contar

Torquato Joel, cineasta paraibano

Torquato Joel é citado com frequência pela sua filmografia de curtas. Foi, para várias gerações de cineastas paraibanos e nordestinos, uma forte referência na estilística e na abordagem temática de seus filmes. Ainda é.

Natural da cidade de Sousa, no Alto Sertão da Paraíba, veio morar em João Pessoa na adolescência, na década de 1970. Na capital paraibana, foi introduzido ao cinema através das matinês do antigo Cine Municipal — enquanto seus colegas iam a praia, ele “se enfurnava” numa sala fechada e mergulhava no universo cinematográfico. Esse encontro com a sétima arte mudaria para sempre sua trajetória de vida.

Na década de 1980, Torquato ingressou no curso de engenharia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) — e foi no circuito universitário que ele tomou contato com o cinema de Super 8 realizado por outros alunos da instituição como João de Lima, Bertrand Lira, Pedro Nunes Filho, Vânia Perazzo e Marcos Villar. Após ter se deparado com um cinema possível e pujante da geração paraibana superoitista que ele decidiu trocar de graduação: se tornou aluno do curso de Comunicação Social.

Ambientado na comunicação, se deu conta que poderia estudar e fazer cinema: Torquato participou do Ateliê de Cinema Direto do Núcleo de Documentário da UFPB (NUDOC). Em 1982, viu a chance de realizar um estágio de aperfeiçoamento em cinema direto no Atelier de Réalisation Cinématographique Varan, na França, e embarcou para o para o país europeu na companhia de outros cineastas paraibanos iniciantes como Bertrand Lira, Marcos Vilar e Vânia Perazzo.

De volta ao Brasil, Torquato seguiu na produção independente de audiovisual e construiu uma trajetória marcada pela originalidade, ousadia e reinvenção. Em 1992, recebeu prêmio na Jornada Internacional de Cinema da Bahia com seu filme A Alma da Pedra, realizado em videotape devido a crise na produção cinematográfica nacional insaturada na Era Collor.

Nos anos seguintes, lançou filmes como Margem da Luz (1996); A fome de Lázaro (1997); Verme na Alma (1998) e Passadouro (1999), este último um curta filmado em 35 mm, com fotografia de Walter Carvalho, um dos mais prestigiados fotógrafos do cinema brasileiro, foi selecionado para a mostra competitiva do Festival de Roterdã, na Holanda e vencedor do Prêmio da Crítica no Festival de Brasília e dos prêmios de melhor filme, roteiro e direção no Festival de Cinema de Gramado. Outros filmes como Transubstancial (2003), sobre a poesia de Augusto dos Anjos, Gravidade (2006), Estes (2010), Trasmutação (2013) e Muído (2016), se destacam na filmografia de curtas de Torquato Joel.

Em 2018, ele lançou seu primeiro longa-metragem, Ambiente Familiar, ficção com elementos documentais e biográficos que narra a história real de três rapazes que moram juntos e formam um novo modelo de família. O filme é pré-finalista do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2020.

Torquato se prepara ainda para lançar, no próximo ano, o seu segundo longa, Corpo de Paz, atualmente em processo de pós-produção. E já planeja o seu próximo curta.

Para além da cinematografia, Torquato se destaca como um dos grandes incentivadores da difusão audiovisual na Paraíba: desde 2006 está à frente do ViAção, projeto que fomenta a formação de público e a produção audiovisual no interior paraibano. Em 2012, criou, junto da cineasta e professora da UFPB Virgínia Gualberto, o Jabre — Laboratório para roteiristas de cidades paraibanas com menos de 200 mil habitantes.

Cena do filme Passadouro, de Torquato Joel

Desses projetos, surgiram diversos cineastas da nova geração do cinema paraibano. Sobre isso, Torquato avalia que a “conjugação destes projetos, aliados a outros ao longo do tempo, resultou num movimento efervescente de cinema interiorano”.

Entre iniciativas de fomento de audiovisual, filmes e ações culturais, Torquato Joel segue “na estrada” do cinema há quase quatro décadas e demonstra que ainda tem muito chão pela frente. Tivemos uma conversa sobre sua cinematografia, referências, novos projetos, democratização do curta, dentre outros assuntos.

Curta Curtas: Você é reconhecido com um dos melhores curta-metragistas do Nordeste e sempre viu a si mesmo com um cineasta que, em sua produção artística, prima pela síntese. Após o lançamento de Ambiente Familiar, seu primeiro longa, você se define hoje como um curta e um longa-metragista. Ter feito seu primeiro longa alterou e/ou ampliou a sua visão sobre o cinema? Explica pra gente esse teu processo.

Torquato Joel: Certamente que sim. Sempre fui avesso à ideia de fazer longa, mas desde os primeiros curtas que existia certa “pressão” externa pra que eu fizesse filmes com duração mais extensa. Senti-me muito livre no curta pra experimentar o que me desse na telha. Fiz isso e muitas vezes sem concessão alguma, sem considerar o ponto de vista da recepção. E era por aí que residia minha resistência ao longa, além do receio de não ter muito o que contar numa duração extensa de uma narrativa, sobretudo por essa certa obsessão pela síntese.

Lembro-me de uma conversa que tive com Marcelo Gomes à época em que frequentávamos os festivais com nossos curtas. Marcelo me disse que estava saindo do emprego na UFPE pra mergulhar no seu primeiro longa. Fazer longa era a “vibe” dele e ainda é da quase totalidade de quem entra no cinema. Eu era funcionário da UFPB, mas jamais imaginei sair de lá porque o curta era o meu projeto e também tinha meus planos pra disseminar o cinema pelo interior da Paraíba.

Mas, a gente muda, né? Só “idiotas não mudam”. O longa é uma experiência que me faz estreitar, por exemplo, a relação com a figura dramática já desde o roteiro. A ideia de personagens em meus curtas relacionava-se diretamente com composição dentro das “pinturas”. Nos meus longas, a presença das personagens humanos deixou de ter o quase caráter de objetificação pra ganhar vida com sentimentos mais expressos.

Outro aspecto que comecei a compreender a partir do longa é a atuação e seu estado quase mediúnico. A atriz e o ator incorporam outras pessoas num estado de mediação com a própria consciência. Foi fantástico perceber isso na prática através dos exercícios que fiz e na própria construção das personagens com o elenco, e que me conferiram uma noção muito clara da experiência da atuação.

CC: Mesmo após ter filmado seu longa e ter projetos de outros longas já “engatilhados”, você segue fazendo curtas. Há algo além do custo e da facilidade na produção que te instiga a seguir nessa modalidade de cinema?

TJ: A instiga é instintiva. Não tenho controle sobre ela. Dia desses eu estava com amigos explorando a paisagem de uma serra do Curimataú paraibano. Em certo momento fechei os olhos pra sentir o ambiente sonoro. Com a ausência da visão, a audição apura mais: entre as várias camadas de sons de pássaros, de ondas de ventos sacudindo folhagens, percebi a intervenção do assobio grave da ventania nos fios de alta tensão de um poste próximo que até então eu não tinha atentado. Aquele pequeno experimento auditivo virou mote para a ideia de um curta sobre a interferência humana na paisagem natural. É um tema oportuno ainda mais nestes tempos em que o recado tá sendo dado ao ser humano para a indispensável reconexão com o todo.

CC: Muito se fala sobre os curtas-metragens terem a vantagem de uma certa liberdade e independência: eles podem tocar em temas que os longas dificilmente abordam, seja pelo custo de produção, seja pelo crivo do mercado, que não assimila uma boa parte de temáticas e propostas estéticas. Como você enxerga o processo criativo para realização do curta-metragem? Concorda que há mais liberdade de abordagem e de narrativa experimental, por exemplo, ou essa é mais uma ideia difundida no meio que uma realidade? Fala um pouco sobre isso pra gente.

TJ: Há anos vi um filme de Derek Jarman, Azul (1993). Foi uma experiência inquietante, dessas que nos deixam ligados e querendo experimentar algo semelhante. Fiquei com a ideia fixa de fazer um filme com algo como texturas fixas na tela, como tecidos de granulações, e que o som fosse o sentido. Anos depois, radical, mas não tanto quanto Jarman — que colocou de forma monocórdia o azul na tela — , fiz Estes.

Quando desenvolvi a pesquisa do roteiro, percebi que uma marca identitária das personagens estava impressa nas ocupações das casas: o piso de cimento gasto pelas tantos anos de uso, as janelas com tintas desbotadas pela ação do tempo e das chuvas erodindo as estruturas de madeira, o úmido lodo intervindo na parede pintada e corroendo tijolos…

Cena do filme Transubstancial, de Torquato Joel

Decidi que cada personagem seria representada por uma textura de sua respectiva casa. Aliado a isso, pensei trabalhar os depoimentos como o concretista Décio Pignatari, de quem eu e Bertrand Lira [cineasta paraibano] tínhamos feito uso de um de seus poemas no nosso primeiro curta em Super 8, Imagens do Declínio. Palavras e frases emblemáticas das personagens, sobre o poder e o exercício de democracia com a eleição de prefeito e vereadores de uma rua na periferia de numa pequena cidade do Brejo paraibano, foram aplicadas repetidas vezes em intensidades distintas.

Ao longo da narrativa, à semelhança da estrutura da poesia concreta de Décio, essas falas vinham às vezes como um eco. Estes, o título do curta, foi uma experiência que me deixou no limbo, entre o ambiente de cinema e o das artes visuais. Ou seja, o filme não se encaixava em nenhum dos dois mundos. É um preço que se paga por experiências assim tão extremadas.

Pelo descompromisso com regras de mercado, acredito que o curta é certamente mais propenso às liberdades de abordagem e de narrativa. Além do mais, o curta é reduto da avidez inquieta da juventude.

Por outro lado, quantos e quantos longas já não vimos ousados na abordagem ou nas experimentações narrativas? Acredito que a grande sacada do realizador é entender e aceitar plenamente os possíveis limites de sua ousadia em termos de recepção.

CC: Entre os seus curtas, há algum que você considera melhor ou mais expressivo na sua filmografia? Qual é?

TJ: Eu diria que alguns foram mais exitosos em termos de visibilidade, ou apreciação, do que outros. Como já falei, radicalizei muitas vezes. Hoje certamente não sou tão extremo. Acho que estou cauteloso com o tempo. Tenho buscado esboçar pistas mais tangíveis para quem está do outro lado da tela. E também pela razão que vejo com muita clareza o quão cinema é um instrumento transformador, depois de muitos anos levando ações ao interior da Paraíba para um público muitas vezes completamente leigo no assunto. Mesmo assim costumo nas explanações [explicitar] o rico leque de possibilidades da linguagem, que vai das narrativas dentro dos padrões clássicos aos experimentos mais sensoriais muito colados nas artes visuais.

Agora, em meu entendimento pessoal, já não cabe mais o nível de experimentação radical em que me envolvi, embora eu resvale inevitavelmente por ele vez em quando. Encaro isso como uma busca do equilíbrio. Quando vejo Estes, fico dimensionando o nível de ousadia a que me propus, mesmo sabendo à época a limitada possibilidade de recepção. Cada vez mais, penso numa métrica narrativa que dose celeridade e contemplação como estratégia, sem perder certo nível de expressão particular no processo.

CC: Boa parte dos seus curtas tem um viés telúrico muito forte. Você como um ambientalista atuante, além de alguém que promove elementos culturais próprios da Paraíba, consegue congregar muito bem esses elementos em filmes como Iko-éte, Verme na Alma, Transubstancial. Fala mais sobre sua relação com a natureza e com a cultura paraibana — e como ela aparece representada nos teus filmes.

TJ: Em certo momento de minha vida voltei a me reconectar com o sertão, algo que tinha perdido desde que vim morar em João Pessoa. Vejo um caráter simbólico nessa minha volta às origens: interiorizei-me. Essa busca já começa nos meus primeiros curtas. A imagem primal que deu o “start” pra Passadouro, um velho homem ouvindo rádio no cair da tarde, é fruto da memória afetiva que tenho de meu pai e das nossas visitas regulares aos parentes nos sítios durante minha infância. A luz, a sombra, os sons e os cheiros ficaram inapagáveis na minha lembrança. Então, Passadouro é uma forma de reconexão afetiva com meu pai que eu tinha perdido no início da adolescência. A memória reavivada da infância me estimulou a expressar a atmosfera da natureza e do espaço humano nos filmes. Muita coisa ganhou corpo na minha trajetória cinematográfica desde então, inclusive a ideia de interiorização do cinema.

Cena do Filme Moído, de Torquato Joel

E convenhamos, a urbe cada vez por si só já não nos atende. Depois da pandemia quem não entender isso vai ficar num vácuo. Já li estudos afirmando que coisa muito pior virá no pós-coronavírus. Só negacionistas não entendem a dimensão do que se avizinha. Tratei o assunto antevendo de forma simbólica e curtíssima em Gravidade. Vamos precisar mais e mais nos reconectarmos à natureza com um nível de consciência muito mais efetivo, muito além do mero discurso. Em nome do lucro, o planeta vem sendo devastado desde o século XV, com as caravelas. Ou mudamos a mentalidade ou sucumbiremos.

Já estou arregimentando amigos para construirmos um espaço rural coletivo sustentável. Mas quero o equilíbrio, não pretendo radicalizar e viver unicamente no mundo rural. Sou muito urbano também, apesar dos pesares.

CC: Outro elemento muito forte na tua obra fílmica é o erotismo. Num Estado ainda dominado pelo conservadorismo e uma cultura do senso comum um tanto provinciana, quando se fala de sexualidade, como você avalia a representação erótica no teu cinema?

Em Moído, no preâmbulo, eu quis dar um choque na hipocrisia com uma xoxota e um pau no pré-coito. Não um choque gratuito, mas apontar o óbvio de que somos frutos da relação de um pau com uma vagina. Sem firulas, dizer que o que vem a seguir na narrativa é resultante desse ato que, muitas vezes, é reprodutivo.

Expus o corpo masculino em alguns curtas, não só porque ainda hoje é muito pouco visto, mas porque era totalmente procedente a exposição nesses filmes. Por outro lado, o corpo da mulher é exaustivamente explorado por motivos que já sabemos.

Em Corpo da Paz, longa em finalização, trato de uma abordagem reversa: a não erotização do corpo como temática.

CC: Você definiu o filme de curta duração como “a capacidade de síntese sem prejuízo ao que está sendo narrado”. Não acha, entretanto, que isso também se aplica a um filme de longa-metragem — embora em menor proporção, obviamente — pensando em grandes filmes de longa que são referência em síntese estética e discursiva como Santiago (2007) e No Intenso Agora (2018), ambos de João Moreira Salles, por exemplo? Você considera que conseguiu aplicar essa lógica no seu longa, Ambiente Familiar (2018)? Fala um pouco pra gente sobre como você avalia esse processo.

TJ: A síntese é desafio muito maior no curta do que no longa (óbvio!). O desafio do curta é determinar o que é absolutamente imprescindível contar, enquanto no longa essa premissa é mais flexível. Além do mais, o curta é muito mais livre também para a possibilidade do não contar. São muito poucos os que suportam hora e meia, duas, de puro estado de sensações. Já vi o público esvaziar a sala em longa de quem tinha tratado esse tipo de experiência somente em curta.

E na real, devo considerar também que meus longas são amálgamas de curtas. As sequências comuns a todos fazem a ligação entre eles. É o caso de Ambiente Familiar, um filme sobre superação de traumas infantis em que tudo é tratado em fragmentos pelos quadros. É difícil organizar uma compreensão do passado para quem viveu perdas, abandonos ou rejeições na infância. Esse conceito apliquei na narrativa porque fiz diversos processos psicoterapeutas por mais de vinte anos para dar firmeza ao meu caminho. Sinto-me um doutor no assunto depois desses anos todos [risos]. Hoje essa experiência serve de base pra construção mais sólida de personagens nos roteiros. E vi o quanto o filme deu respostas às lacunas pessoais dos três personagens/atores focalizados.

Cena do filme Ambiente Familiar, de Torquato Joel

Corpo da Paz segue o mesmo principio de justaposição de curtas. Nos dois filmes tive que exercitar a síntese até mesmo para viabilizar a produção ao condensar muitas vezes uma cena num plano só. Um único plano dizer toda a intenção de uma cena foi coisa que aprendi no curta.

CC: No início da tua trajetória no audiovisual você trabalhou com Super 8 e 16 mm. Depois fez filmes no chamado “cinema eletrônico” e também filmou em 35 mm, para depois fazer a transição para o digital. Fala um pouco sobre essa mudança de suportes, as similaridades e diferenças de fazer cinema usando cada um deles.

TJ: Por conta dos custos, na película a gente só ligava a câmera quando tinha certeza do plano. Havia certa liturgia no ato de filmar. Até mesmo a posição de responsabilidade do fotógrafo no momento de “rodar o filme” perdeu certa tensão no pós-película. Em termos tecnológicos, o que veio depois flexibilizou muito o processo. Houve uma total diluição do rigor no planejamento e, consequentemente, na execução.

Demorei um tempo pra entender toda essa mudança. Antes de ligar a câmera, mantive a severidade do planejamento até cair a ficha que esse novo era algo desejado fazia tempo. Se estou bem lembrado, os franceses da Nouvelle Vague já sonhavam com isso.

Em certos projetos, flexibilizei o roteiro por conta da liberdade do digital, algo que eu já tinha arriscado em Verme na Alma.

Hoje, enfatizo as similaridades, não me atenho às diferenças porque me adaptei às grandes vantagens do digital. Uso os termos filmar ou gravar porque são palavras sinônimas, apesar das diferenças entre película e digital.

CC: Você coordenou, coordena, foi e é envolvido em várias ações de democratização e fomento à atividade audiovisual independente. Muitos deles, como o ViAção Paraíba e o Jabre foram responsáveis por suscitar o surgimento de diversos cineastas da nova geração paraibana, caso de Kennel Rógis, Ramon Batista, Oscar Araújo, Veruza Guedes e vários outros. Como vê seu papel nesse processo — e o processo em si?

TJ: Em 2006, através da Coordenação de Extensão Cultural da UFPB (COEX), criei o Projeto ViAção Paraíba voltado, sobretudo, para levar ao público do interior o cinema que estava sendo feito na Paraíba. A ideia era despertar uma visão crítica do cinema, apresentar as possibilidades amplas da linguagem, e, se possível, estimular o surgimento de realizadores. Na formação que tive com os discípulos de Jean Rouch do Cinema Direto, fazer filmes não necessariamente era coisa para eleitos.

Dois ou três anos depois, percebi que pontualmente, em algumas cidades, havia realmente gente produzindo filmes de forma precária, ou desejando fazê-los. O problema é que ações pontuais como o ViAção não estimulam o potencial se não forem acompanhadas de projetos subsequentes. Tive a ideia de criar um laboratório de imersão total para desenvolvimento de roteiros. Com zero de recursos disponíveis, articulei Dhiones do Congo, um ex-aluno do ViAção, para conseguir junto à prefeitura local as condições de hospedagem e alimentação na Serrinha, uma pousada afastada da cidade.

Elaborei a metodologia de trabalho tendo como princípio fundamental a colaboração coletiva no processo de criação. Como pensei inicialmente na seleção de dez argumentos, seria necessária outra pessoa pra coordenar comigo tantos projetos de roteiros a serem desenvolvidos. Foi nesse tempo que conheci a professora Virgínia Gualberto. Virgínia passou a ser parceira estratégica do Laboratório Jabre durante vários anos.

A conjugação destes projetos, aliados a outros ao longo do tempo, resultou num movimento efervescente de cinema interiorano. Creio que o ViAção e o Jabre foram exitosos em relação aos demais surgidos na mesma época devido ao fato de que não dependeram, e não dependem até hoje, de fomento de editais pra acontecer.

CC: O que motiva a seguir fazendo cinema hoje, diante de um cenário de tanta dificuldade e incertezas?

TJ: O motivo é estar vivo. É valer-se de uma linguagem pra falar desse fenômeno impressionante que é a existência.

Nunca foi fácil fazer cinema aqui, pelo menos na Paraíba. Tivemos certo alento com os editais da Prefeitura Municipal de João Pessoa nos últimos tempos. Mas sempre coloquei dinheiro em meus filmes, mesmo naqueles aprovados em editais. Em alguns, sobretudo porque “viajei” muito mais do que a grana permitia. O caráter de resistência agora vai ter outro sentido, ou o sentido anterior, vamos ter que voltar a fazer cinema na raça como antes, até que essa maré destrutiva seja extirpada.

Cena do filme Transmutação, de Torquato Joel

CC: Pegando gancho na pergunta anterior, quais teus próximos projetos no audiovisual?

TJ: Estou em fase de finalização de Corpo da Paz, um longa fincado em fragmentos de memórias da minha infância. Depois disso, desenvolverei meu próximo curta, que certamente será aquela ideia que coloquei no início dessa nossa conversa.

De longas futuros, só tenho fascínio por um projeto de um indígena potiguara do século XVII. Mas aí são outros quinhentos, é preciso ter grana pra ir até os anos de 1600.

CC: No Curta Curtas, defendemos a bandeira da democratização do acesso aos filmes de curta-metragem, através de sua liberação em plataformas de exibição online, uma vez que mostras e festivais são importantes, mas circuitos limitados. O que acha dessa pauta?

TJ: É uma pauta por demais necessária. Os curtas estão vivos, mas precisam de janelas. Há uma infinidade de obras geniais do passado e recentes que precisam ser vistas. Dia desses procurei um curta húngaro intitulado Vento, que foi grande referencia pra mim, mas não o encontrei. Outro dia um amigo me resgatou Um Incidente na Ponte de Owl Creek, outra grande referencia. Eu costumava repetir como minha a frase de que um filme pra ser uma grande obra cinematográfica independe de sua duração. O resto é fazer o jogo do mercado que relegou o curta à condição de primo pobre do cinema.

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Sandro Alves de França
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Jornalista, professor e mestrando. Praiêro nas horas vagas. Escreve, reclama, lê e assiste a filmes. 30 anos de sonho e de sangue. E de América do Sul.