Acessibilidade em filmes de curta-metragem

Um passo importante para uma real democratização do acesso

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Cena do filme A Onda Traz, O Vento Leva, de Gabriel Mascaro

A principal bandeira que o Curta Curtas defende desde o seu nascimento é a democratização do acesso aos filmes de curta-metragem no Brasil. Democratizar, segundo o dicionário, é “tornar popular; colocar ao alcance do povo, da maioria da população”.

Nesse sentido, curtas são, paradoxal e concomitantemente, mais e menos democráticos do que longas. Se por um lado filmes de curta-metragem são mais fáceis de serem produzidos do que filmes de longa-metragem, por outro lado o acesso e a disseminação desse tipo de cinema são bem mais difíceis.

Já falamos em edições passadas a respeito dessas questões quando abordamos em nossa última edição a produção de curtas-metragens durante o caos da pandemia de COVID-19 e também quando discutimos, na terceira coluna do Plano Detalhe, sobre como a internet possibilitou que canais de distribuição diversos facilitassem o acesso aos filmes de curta. Dessa vez, nossos olhares são lançados para um aspecto crucial da democratização do acesso aos filmes: a acessibilidade para pessoas com deficiências.

No Brasil, segundo dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem mais de 6,5 milhões de pessoas com deficiência visual, sendo 582 mil cegas e 6 milhões com baixa visão. De acordo com a mesma pesquisa, há no país mais de 10,7 milhões de pessoas com alguma deficiência auditiva. Assim, podemos dizer que desconsiderar essas pessoas no debate sobre democratização do acesso ao cinema de curta-metragem é o mesmo que desprezar o significado de democratizar, já que juntas essas populações correspondem a mais de 8,5% do total de brasileiros.

Cena da versão acessível do filme Recife de Dentro Pra Fora, de Kátia Mesel

Por essa razão, é essencial que nós, enquanto sociedade, lutemos pelo direito à cultura para todos e cobremos do Estado medidas que possibilitem o acesso de todas as populações, inclusive das com deficiências. De acordo com a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU), quando pensamos nos direitos das pessoas com deficiência devemos pensar a questão da deficiência não somente como algo relacionado ao indivíduo, mas também com as relações sobre as possíveis barreiras e a interação das pessoas com deficiência com o ambiente.

Esse debate, do ponto de vista legal, vem avançando nos últimos tempos. A Agência Nacional do Cinema (Ancine) estipulou, através da Instrução Normativa de número 116, em dezembro de 2014, a obrigação da inclusão de recursos de acessibilidade nas obras audiovisuais fomentadas com recursos públicos federais. A medida garantiu que todos os projetos que utilizaram verbas, seja por fomento indireto (renúncia fiscal) ou pelo Prêmio Adicional de Renda, incluíssem recursos de legendagem, legendagem descritiva, audiodescrição e Libras.

A mesma Ancine, por intermédio da Instrução Normativa de número 128, postulou, em 2016, que todas as salas de cinema do país deveriam ser acessíveis a pessoas com deficiências visuais e auditivas a partir de primeiro de janeiro deste ano. Com a pandemia do novo corona vírus, a verificação do cumprimento da norma se tornou impraticável, mas, até setembro do ano passado, há registros de que 35% das salas de cinema dos grandes complexos exibidores (considera-se um grande complexo cinemas grupos com mais de 20 salas de exibição) e 30% das salas dos grupos menores (até 20 salas) já se movimentavam para atender a essa demanda.

Cena da versão com acessibilidade do filme Clandestina Felicidade, de Beto Normal e Marcelo Gomes

Todas as medidas coadunam com a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15), em vigor desde janeiro de 2016, que prevê que as pessoas com deficiência têm direito à cultura da mesma forma que pessoas sem deficiência, sendo garantido o acesso aos bens culturais com acessibilidade de formatos.

Ainda assim, há diversos filmes que acabam por não ganhar audiodescrição, legendagem descritiva e tradução em Libras porque não foram financiados com recursos públicos, e sim com dinheiro conseguido através de campanhas de financiamento coletivo, as famosas vaquinhas. Nesta seara, é importante que os realizadores pensem também nessa parte do público que tem, como já vimos, todo o direito de ter acesso a esse tipo de bem cultural.

É interessante perceber como, além de todas as vantagens sociais de se propiciar o acesso à cultura a mais pessoas, essas medidas sociais também são benéficas do ponto de vista econômico. Para atender a essas demandas, há muitas empresas que se dedicam exclusivamente a essas questões, empregando dezenas de pessoas.

O processo de audiodescrição de um filme, por exemplo, demanda pelo menos dois profissionais: um roteirista, que descreve as ações e os detalhes do filme, e uma pessoa cega que trabalha como consultora, direcionando e sugerindo as modificações necessárias. O roteirista deve pensar em traduzir em palavras as imagens do filme. Cabe a ele emoldurar na voz descrições dos lugares, do figurino das personagens e das expressões e ações dos atores. Nesse sentido, o profissional acaba sendo os olhos do espectador com deficiência visual.

Já a legendagem para surdos e ensurdecidos tem como propósito traduzir sons e efeitos sonoros para a modalidade escrita da língua em língua de sinais ou na mesma língua do filme original. A versão traduzida em língua de sinais é exibida em um quadro, costumeiramente no canto inferior da tela.

Cena do curta O Terno, de Gabriela Amaral

Alguns repositórios online, como certos canais do Youtube e a Cinemateca Pernambucana, disponibilizam em seu acervo alguns filmes com opções de acessibilidade. Mas, quando se pensa na quantidade de filmes disponibilizados sem essas opções, o volume de filmes acessíveis, em termos comparativos, acaba sendo mínimo — o que é curioso, já que as leis anteriormente descritas preveem que tais filmes sejam adaptados. Ainda assim, é possível assistir a curtas importantes de cineastas renomados, como O Terno, de Gabriela Amara; Clandestina Felicidade, de Beto Normal e Marcelo Gomes; A Onda Traz, O Vento Leva, de Gabriel Mascaro; e Recife de Dentro Pra Fora, de Kátia Mesel. Esses últimos ganharam opções de acessibilidade graças a I Mostra de Curtas Pernambucanos Acessíveis Online da Fundaj, que promoveu a disponibilização de oito curtas-metragens com essas opções.

Ainda sobre o mercado de curtas, vale destacar algumas iniciativas que deram visibilidade a filmes com acessibilidade para pessoas com deficiência nos últimos anos. Nessa direção, o Festival VerOuvindo, idealizado por Liliana Tavares, completou em 2019 cinco anos de existência. Tendo como foco a produção audiovisual com acessibilidade, o festival promove, na região metropolitana do Recife, exibições de filmes de longa e curta-metragem e organiza debates acerca de temas correlatos.

Na mesma direção, há também a Mostra Terceiro Olho. Organizada pelo coletivo Malta Cinema & Som, em Salvador, a mostra teve como missão debater a acessibilidade no audiovisual. Seus reflexos permaneceram para além do evento: hoje, cinco anos depois, ainda é possível assistir aos filmes com audiodescrição no canal da mostra no Youtube.

Tão interessante quanto o festival de Liliana e a Mostra Terceiro Olho foi a 1ª Mostra Surdo Cinema, produzida pelo intérprete de Libras William Tomaz, que aconteceu em Brasília em março do ano passado. Objetivando colocar a produção feita por pessoas surdas em foco, o evento exibiu gratuitamente filmes como Libras é merda?; O Corpo da Liberdade; Não Me Toque; e A Boneca de Sangue, dos diretores Luérgio de Sousa, Pammelleye Rebecca Machado, Renata Cristina Rezende, Michelle Nakamura e Johnnatan Silva.

Todos esses movimentos confirmam a necessidade de se produzir e dar visibilidade a obras de pessoas com deficiências e também de propiciar recursos de acessibilidade ao cinema de curta-metragem. Público para isso há. Resta, agora, que as leis sejam cumpridas e que a cultura seja, de fato, um direito democratizado de todos e para todos.

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Thiago Dantas
curta curtas :: curtindo curtas, curtindo cinema

Uma espécie de Macabéa, só que mais trouxa. 31 anos, paulistano, comunicólogo e professor.