Filmes da pandemia: os curtas filmados durante o isolamento social

As obras que ‘furaram’ a lógica de paralisação do segmento audiovisual e trouxeram novos olhares e abordagens num período de incerteza

Tilda Swinton e Pedro Almodóvar
Pedro Almodóvar e Tilda Swinton nos bastidores do filme La Voz Humana (2020)

O mundo cinematográfico parou durante a pandemia do novo coronavírus: cinemas fecharam, os principais festivais cancelaram suas edições de 2020, as produções de filmes e séries foram interrompidas. Diante desse cenário, a organização do Oscar, maior e mais importante premiação mundial de cinema, anunciou que aceitará, na edição de 2021, filmes que estrearem via canais de streaming, deixando de lado (ao menos por um ano) a polêmica recorrente sobre a participação de produções desses serviços na cerimônia.

O retorno, ao que parece, será lento e gradual, em diferentes níveis ao redor do mundo. Não se pode dizer, no entanto, que esse período de quarentena foi um limbo na produção de audiovisual. Com formato e uma demanda de produção bem menores que obras de longa duração, os filmes de curta-metragem se tornaram uma opção possível para ser desenvolvida em tempos de isolamento social. Teve até medalhão da sétima arte realizando seu curta: o cineasta espanhol Pedro Almodóvar filmou La Voz Humana, com a atriz britânica Tilda Swinton.

O filme é uma adaptação da obra La Voix Humaine, peça teatral do poeta, dramaturgo e escritor francês Jean Cocteau. O enredo gira em torno do último telefonema de uma mulher para seu amante, às vésperas do casamento dele. Essa peça já havia inspirado uma das produções mais aclamadas de Almodóvar, o longa Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), o primeiro do cineasta a concorrer ao Oscar, na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira e o principal responsável por torná-lo mundialmente conhecido e prestigiado.

“Tínhamos essa urgência de fazer e exibir durante a quarentena, para que as pessoas que fizeram se verem, além do público da web de um modo geral. Cada resposta que tínhamos influenciava diretamente os filmes seguintes. Então, os filmes foram se transformando, assim como as personagens” | Cavi Borges

O curta havia sido anunciado no início de fevereiro deste ano, antes da pandemia assumir contornos tão dramáticos e foi cercado de expectativa por se tratar da primeira obra cinematográfica de Almodóvar falada em inglês. Previstas inicialmente para abril, as filmagens foram adiadas e ocorreram em julho, em Madrid, capital da Espanha, cercadas de todos os cuidados, com equipe reduzida e testada para comprovar estar livre do COVID-19. Apesar de não se tratar, originalmente, de um projeto gestado na pandemia, se tornou um filme muito simbólico por ter sido realizado durante o período de isolamento, representando uma forma de resistência da sétima arte diante de um grande vácuo na produção de audiovisual.

Mas nem só de filme de ícone da sétima arte vive a produção de curtas da pandemia. Aqui, no Brasil, várias iniciativas surgiram de obras de várias temáticas, propostas e narrativas. Uma delas é o projeto Me Cuidem-se!.

Cena do filme A Volta (2020), de Katia Mesel

Idealizado pelo produtor e cineasta carioca Cavi Borges, é um filme processo (também conhecido como filme-dispositivo, que é quando uma obra é feita com roteiro aberto, sem se saber como será o desfecho) realizado durante a quarentena por 10 pessoas em suas casas. No projeto, já foram produzidos 7 filmes de curta duração, lançados num intervalo de 15 dias um do outro.

“Nossa ideia era continuar filmando mesmo com o isolamento social. Logo que começou a quarentena aqui no Rio [de Janeiro], junto com o Bebeto Abrantes, que é o outro diretor, tive a ideia de fazer esse filme em que cada um se filmaria, do seu celular, mandaria pra gente pelo whats app e nós conversaríamos por telefone e mandaríamos o material para o editor, ou seja, um film-quarentena, em que ninguém tivesse contato [físico], esse era o conceito, e dando liberdade pra cada um se filmar como quisesse”, explica Cavi Borges sobre o natureza do projeto.

Ele explica ainda que não houve uma cobrança ou imposição quanto ao número de vídeos e a frequência com que os participantes enviavam o material captado. “Mas sempre estimulávamos o pessoal a mandar o máximo de vídeos possíveis”, pontuou Cavi. Ele acrescentou que os filmes são uma espécie de co-criação entre as personagens e a direção, dado o contato estabelecido.

A cada duas semanas um curta era produzido para retratar como foi esse período na vida de cada uma das 10 personagens. O recorte para escolha delas foi o da cidade do Rio de Janeiro. “Pegamos pessoas da periferia, da favela, da zona sul, da parte mais rica. Também tem pessoas de faixa etária diferentes. Então, tentamos criar um mosaico do carioca com essas 10 personagens”, explicou Cavi.

Sobre chamar os curtas produzidos no projeto de filmes-processo, Cavi explica que é devido à dinâmica entre produzir o filme e já lançar para o público através da internet e, nesse processo, haver um diálogo e uma influência direta na produção dos curtas subsequentes.

Cena do Filme 6 (2020) do projeto Me Cuidem-se!, dirigido por Cavi Borges e Bebeto Abrantes

“Nós tínhamos rapidamente o retorno do público e da crítica sobre o filme. A partir disso, podíamos fazer um outro filme. Tínhamos essa urgência de fazer e exibir durante a quarentena, para que as pessoas que fizeram se verem, além do público da web de um modo geral. Cada resposta que tínhamos influenciava diretamente os filmes seguintes. Então, os filmes foram se transformando, assim como as personagens”, detalhou Cavi.

Captadas sem que houvesse contato físico com ninguém da equipe organizadora do Me Cuidem-se!, as imagens feitas foram enviadas para edição de forma remota. A ideia é que, reunido todo o material, os curtas se tornem um longa-metragem no fim dessa pandemia. Além da direção de Bebeto Abrantes e Cavi Borges, o projeto conta com a colaboração de Wellington Anjos na edição do material.

“Saí totalmente da minha forma de produzir, tive que encontrar soluções inesperadas, porém com o conhecimento do material técnico à disposição e a forma de cautela, para me garantir um resultado, dentro da variação possível de qualidade” | Katia Mesel

Indo do Rio de Janeiro para o Recife, temos o novo curta da cineasta Katia Mesel, A Volta (2020), um giro em 360º graus no apartamento da pernambucana narrado por um texto que reflete sobre a redescoberta do espaço. Filmado em plano-sequência e com som ambiente, com uma equipe que se resumiu à diretora e seu filho, Avir Mesel, o curta se destaca como uma das obras da quarentena realizadas incorporando as limitações da equipe e a questão do confinamento.

Foi uma das produções contempladas pelo edital do Itaú Cultural Arte como Respiro, com a temática Descobertas e/ou Redescobertas. Katia revela que a ideia surgiu do desejo dela de voltar ao apartamento onde mora sozinha e do qual se afastou durante a quarentena para ficar na casa de um dos filhos.

“Me perguntava intimamente porque razão eu queria voltar pra casa, se eu estava tão bem, num espaço que eu tinha liberdade para andar, que eu tinha sol, natureza, e carinho dos familiares. Mesmo assim eu queria voltar para o meu apartamento, onde moro só. Eu queria entender essa minha vontade, que eu não justificava, não havia um motivo especial para isso. Então comecei a escrever sobre o que eu estava sentindo: falta da minha casa. Esse texto eu fui elaborando bem livremente”, revelou Katia.

Ela, então, soube do edital do Itaú e teve um lampejo sobre inscrever o projeto do filme. “De imediato percebi que essa proposta [de descobertas e/ou redescobertas] se encaixava muito bem naquele momento que eu estava vivenciando. Então comecei a pensar no texto, em função de um espaço de movimentação dentro do apartamento, do tempo determinado no edital (um vídeo de até 3 minutos) e o texto foi se encaixando”, pontuou ela.

Cena do filme 00:17:35, ZL (2020), de Vinícius Silva

Sobre fazer um filme em pouquíssimo tempo e com recursos técnicos limitados, Katia explica que as circunstâncias moldaram a experiência e que, por isso, considera esse um dos filmes experimentais que ela já realizou.

“Saí totalmente da minha forma de produzir, tive que encontrar soluções inesperadas, porém, com o conhecimento do material técnico à disposição e a forma de cautela para me garantir um resultado, dentro da variação possível de qualidade. Digo isso em relação ao movimento de câmera, à luz natural, à forma de captação de som, às lentes disponíveis, e ao tempo exíguo”, analisou a cineasta.

“O período de quarentena, mesmo em um ambiente novo para mim, me impulsionou a ver as coisas de todo dia através de uma perspectiva diferente. A partir daí, foi muito bonito ver que nossos filmes se conversavam sem que fizéssemos muito esforço. Todo o nosso projeto é sobre memórias, esquecimentos, inquietudes, reflexões, olhares.” | Deborah Perrotta

Outro projeto que focaliza o ambiente de confinamento permeado de reflexões, numa proposta ensaística, é o ODRADEK — Domicílio Incerto. O nome é inspirado no conto A Preocupação de um Pai de Família, de Franz Kafka. Criado por Deborah Perrotta e Davi Mello, o experimento utiliza o cinema como um exercício de olhar para os ambientes, para as pessoas e para a memória enquanto elemento de conexão.

Como dispositivo narrativo e estilístico, sua criadora e seu criador utilizam tanto o arquivo, evocando a memória, quanto o espaço de confinamento em que ambos estão — ele, na casa onde mora com sua família na cidade de São Paulo; ela, num apartamento em Turim, na Itália — e suas possibilidades de extensão (a vista da janela, por exemplo). Ela e ele ‘costuram’ tudo com uma narração em primeira pessoa, um tanto performática, que é majoritariamente extra-diegética (ou seja, quando a voz que se ouve não é ambiente, mas sobreposta às imagens), mas tem seus momentos diegéticos (isto é, compõem a ambiência sonora na captação direta), de incorporação de ambiências sonoras.

As produções variam entre filmes-carta, em que ele e ela criam uma espécie de correspondência audiovisual entre si, e vídeo-ensaios em que ambos, isoladamente, refletem sobre sobre experiências, lembranças, sentimentos, aspectos do cotidiano de confinamento.

Sobre o conceito do experimento, Deborah Perrotta disserta que o ponto de partida foi o conto de Kafka: a partir dele e da troca de ideias com Davi Mello a experimento se materializou.

“Davi Mello me apresentou o conto de Franz Kafka As preocupações de um pai de família, já com a intenção de criar alguma coisa baseada naquilo. O conto, sobre aquele objeto indefinido que vive nas casas, às vezes esquecido e outras percebido (causando um certo desassossego àqueles que criam consciência de sua existência) nos era tão fascinante e, ao mesmo tempo, tão bem-vindo devido à situação na qual nos encontrávamos, que foi muito natural a criação do conceito do nosso projeto. Começamos com as vídeo-cartas, uma troca de cartas entre dois amigos, e acredito que foi para nós impossível não resgatar memórias e (re)exercitar o olhar. O período de quarentena, mesmo em um ambiente novo para mim, me impulsionou a ver as coisas de todo dia através de uma perspectiva diferente. A partir daí, foi muito bonito ver que nossos filmes se conversavam sem que fizéssemos muito esforço. Todo o nosso projeto é sobre memórias, esquecimentos, inquietudes, reflexões, olhares. Sem podermos sair de casa, o Odradek nos vinha visitar e nos inspirava a criar”, explicou ela.

Cena de filme do Experimento ODRADEK — Domicílio Incerto (2020), de Deborah Perrota e Davi Mello

Davi Mello complementa ressaltando a relação de longa data como algo essencial para a sintonia de ideias e percepções para o projeto. “Eu conheço a Deborah há 9 anos, estudamos cinema na mesma universidade e fizemos alguns exercícios juntos durante esse período. A Deborah também foi figurinista e assistente de arte em dois curtas que dirigi, A Bordo (2015) e As Viajantes (2019). Sempre compartilhamos de um desejo pelo experimentalismo das imagens e, antes mesmo do Experimento Odradek, planejávamos outros filmes que não fossem ficcionais, formato com o qual estávamos mais familiarizados. Acho que seis meses depois que a Deborah se mudou para Turim, momento em que ela já estava em quarentena, começamos a ter conversas praticamente diárias sobre os últimos acontecimentos”, revela ele.

Os recursos de linguagem usados no experimento são os mais simples: geralmente planos estáticos, intercalados de arquivos, com trilha sonora e narração. Cômodos, vistas de janelas, fotos, imagens que registram atividades rotineiras, produções feitas integralmente a partir do registro de momentos isolados ou da compilação de diferentes tipos de arquivo. Entre os destaques do projeto disponíveis, os filmes Tempo de Espalhar Pedras de Davi Mello, As Ondas, de Deborah Perrotta e Um Filme em Dois Atos, dirigido por ambos.

“Como o propósito do projeto sempre foi trabalhar com o ambiente doméstico, faz parte da estética dos filmes a mesclagem de texturas, ruídos e o uso de fotografias ou vídeos esquecidos em algum HD” | Davi Mello

As escolhas estéticas são justificadas pelas limitações impostas pelo isolamento e pela proposta do experimento.

“Como o propósito do projeto sempre foi trabalhar com o ambiente doméstico, faz parte da estética dos filmes a mesclagem de texturas, ruídos e o uso de fotografias ou vídeos esquecidos em algum HD. Além disso, nós dois possuímos câmeras DSRL simples, um tripé e aparelhos celulares. Também editamos todo o material em nossos computadores pessoais, algo que provavelmente dificultava o processo, uma vez que acabamos coletando muitas imagens e os programas de edição ficavam sobrecarregados”, explica Davi.

Na mesma linha, Deborah justifica a composição da narrativa. “Como é um projeto muito pessoal, íntimo e caseiro (no sentido de feito em casa); percebemos que buscar uma “perfeição” técnica não era o nosso objetivo principal. E fomos percebendo com o tempo que essas limitações ou imperfeições faziam também parte da linguagem e do processo de nossos filmes. Então, assumimos essa liberdade estética e de linguagem de filmes feitos em casa, pois é exatamente aquilo que são”, pontuou ela. “Outra limitação era o som. Eu não disponho de um gravador profissional, também não tem como adaptar nenhum estúdio em casa [risos]. Logo, a solução encontrada foi utilizar o celular. Gravava sempre à noite e quando havia mais silêncio”, completa Davi.

“sou adepto da ideia que tem-se que trabalhar com o que dispõe. Se se dispõe apenas de uma câmera, como no nosso caso, você terá que tirar proveito disso” | Bruno dos Santos

A lógica ensaística perpassa todos os aspectos do experimento, o que ajuda a situar o olhar e a forma de ver e conceber o ODRADEK e suas produções, como situa Davi Mello. “Um filme-ensaio geralmente está preocupado com uma narrativa lírica, herdada da Literatura, e com a performance desse “eu” — aqui, o “eu” pode ser o “autor” ou o “cinema”, não importa. O fato é que existe uma autorreflexão do que é visto/narrado, e no Odradek é quase como se houvesse o desejo de criar um universo particular, para além do isolamento, um campo fabulístico”, concluiu.

Cena do filme Fragmentos (2020), de Arianni Ginadaio e Bruno dos Santos

Com ênfase no espaço de confinamento e na paisagem urbana, o filme Fragmentos , de Arianni Ginadaio e Bruno dos Santos foi filmado no interior do prédio onde eles moram (os dois são casados) e a vista panorâmica que ele tem da cidade de Santo André (SP), captando e amplificando algumas extensões visuais da paisagem, tudo ao som de uma trilha sonora extra-diegética que parece conduzir um “passeio” sobre os espaços em foco e suas ambiências. As luzes do entardecer, as escadarias, a vista da varanda do apartamento e da cobertura do edifício, tudo é interligado como se fosse visto numa perspectiva de quem está dentro do lugar, que olha também para fora.

“A ideia surgiu na minha mente numa tarde em que estava na laje [do prédio], em isolamento e apreciando a vista; até antes de escrever qualquer coisa, nas nossas conversas, eu e minha companheira avaliamos se daquele ambiente daria para tirar algo proveitoso e que encaixaria com a narrativa proposta, e concordamos que sim, com tudo se esclarecendo bem mais após a decupagem [escolha dos planos de um filme] (decupamos com o celular mesmo). A trilha sonora não foi composta por nós, nós a encontramos no Youtube, num banco de áudio — muito bom o que eles têm lá, áudios livres de direitos [autorais]”, detalha Bruno dos Santos sobre o processo de escolha do recorte e composição da narrativa do filme.

Uma narrativa essencialmente contemplativa, que conduz o espectador a observar os espaços e perceber suas peculiaridades e o que de belo existe neles, bem como em suas extensões no espaço urbano.

“Sou apaixonado por Slow Cinema, um cinema mais contemplativo e que preza pela lentidão mesmo; já que nos encontramos em tempos pandêmicos, acreditamos que essa lentidão se adequaria ao cenário vigente, desde que começamos a filmar, já tínhamos esse conceito em mente; a referência acaba sendo esse cinema da lentidão, afinal”, complementou Bruno.

Cena do filme Ser Feliz no Vão (2020), de Lucas Henrique Rossi

Sobre as limitações de fazer um filme num contexto de pandemia, ele pontua que elas devem ser incorporadas em qualquer circunstância, já que o objetivo é produzir algo com os recursos que se dispõe. “Desde o princípio, desde as primeiras conversas que tive com minha companheira, eu já tinha em mente essas limitações e já sabia que teria que trabalhar com elas; sou adepto da ideia que tem-se que trabalhar com o que dispõe. Se se dispõe apenas de uma câmera, como no nosso caso, você terá que tirar proveito disso. Não dispomos de aparatos técnicos, filmamos apenas com a câmera na mão, dando grande importância à decupagem e à montagem subsequente”, concluiu ele.

“eu olhei para o meu próprio pôr-do-sol de maneira diferente — e vi que temos muita beleza no nosso pôr-do-sol. Que é lindo, saca? Mas o cotidiano de São Paulo, e principalmente da quebrada, nos faz ter dificuldade de olhar nossas belezas, parar pra ver o céu” | Vinícius Silva

Seguindo a proposta de utilizar recursos simples, que incorporam a limitação à narrativa, o filme 00:17:35, ZL, de Vinícius Silva, lançado no Programa Convida, do Instituto Moreira Salles (IMS), que convidou diversos realizadores à produzir curtas durante a quarentena, focaliza a paisagem urbana do bairro de Artur Alvim, na periferia da cidade de São Paulo, num entardecer. A câmera estática acompanha o fluxo natural do ambiente, seus ruídos e as mudanças na composição visual que o tempo provoca.

Desde a concepção, foi um filme pensado para ser realizado no contexto da pandemia e do isolamento social. “Eu recebi esse convite [para realizar o filme] através do Kleber Mendonça Filho, que entrou em contato comigo apresentando esse projeto do IMS e, em nome do Instituto, me convidando para ser um dos artistas, com toda liberdade temática e artística possível. Depois do contato do Kleber, a partir daí, comecei a pensar o filme. Mas essa oportunidade, foi interessante para eu começar a realizar um processo artístico na minha caminhada, que eu queria fazer já há algum tempo, que era trabalhar filmes mais experimentais e com um caminho entre museus e galerias de arte”, explica Vinícius.

O conceito do filme surgiu de uma redescoberta no olhar de Vinícius sobre seu bairro, de como suas paisagens dialogam visual e emocionalmente com ele.

“Eu estava em um processo psicológico e emocional que eu gostaria de expressar nesse filme. Como eu estava olhando o meu bairro e como eu estava olhando o mundo naquele momento. Ele pra mim é essa mistura de sentimentos e leitura, ao mesmo tempo que carrega um peso é uma pulsão de existir algo novo, um mundo novo. Mesmo sem saber se será possível. Também é uma espécie de homenagem para a beleza do meu bairro, a beleza do pôr-do-sol. Doido, mas uma das coisas que me influenciaram a olhar o pôr-do-Sol da minha quebrada de modo diferente foi viajar e ver o pôr-do-sol de Paris - e parar um tempo pra isso, né? Ao voltar eu olhei para o meu próprio pôr-do-sol de maneira diferente — e vi que temos muita beleza no nosso pôr-do-sol. Que é lindo, saca? Mas o cotidiano de São Paulo, e principalmente da quebrada, nos faz ter dificuldade de olhar nossas belezas, parar pra ver o céu. E naquele momento que não podia sair de casa, era algo que eu estava fazendo regularmente”, detalhou Vinícius.

A atriz Tilda Swinton caraterizada para o curta La Voz Humana, de Pedro Almodóvar

“Este é o meu terceiro filme feito com material de arquivo, e tenho pensado muito que a escolha das imagens é sempre algo que vem meio do inconsciente - e que a montagem na prática, é meio um golpe de intuição” |Lucas Henrique Rossi

Com uma proposta diferente de todos os outros filmes aqui elencados, o curta Ser Feliz no Vão, de Lucas Henrique Rossi, é um filme que reúne várias imagens de arquivo, de diferentes épocas, ‘texturas’ e suportes para falar sobre temas como negritude, ancestralidade, racismo estrutural.

“O filme se pretende avaliar criticamente o racismo estrutural na sociedade, que obviamente é um tema muito importante. Mas o filme, em sua linguagem, traz isso de forma irreverente, leve, descontraída. Por este motivo, achei que a melhor definição seria de “um ensaio preto”, para deixar em evidência a linguagem e o protagonismo — que foram os dois motivos que fizeram com que o filme surgisse. Logo quando comecei a arquitetar as ideias e a pesquisa me veio a vontade de colocar, em contraste com a ignorância da pseudo-elite carioca, a beleza do povo preto. Ressaltando, assim, o quanto somos geniais e o quanto a elite branca é ignorante e preconceituosa, em linhas gerais. Claro que existem exceções, mas o filme não é sobre elas. Para mostrar fragmentos de nossa potência criativa e da beleza de nosso povo preto numa ideologia de pan-africanismo, acabei trazendo diversas vozes da música que são subjetivamente representantes da diáspora: Victoria Santa Cruz, Nina Simone, Tim Maia, Fela Kuti e Mano Brown. Então, em resumo, o conceito narrativo do filme é apontar o racismo estrutural naturalizado na sociedade, é denunciar a pseudo-elite carioca racista enquanto passamos de forma leve e descontraída por falas de grandes representantes da negritude”, detalha o diretor.

Realizada durante o isolamento, a produção pode ser situada entre os filmes-ensaio feitos integralmente a partir de imagens de arquivo e com uma narrativa construída na montagem do material compilado. Sobre essa proposta, o diretor já tem experiência de outros filmes com esse formato e revela não ter um roteiro definido para a edição, deixando que o processo flua da forma mais orgânica possível.

“Este é o meu terceiro filme feito com material de arquivo, e tenho pensado muito que a escolha das imagens é sempre algo que vem meio do inconsciente - e que a montagem, na prática, é meio um golpe de intuição. Sempre existe ali a ideia, o roteiro, as imagens, a pesquisa, pontos do filme, uma espinha dorsal, etc — mas no fundo, a escolha das imagens quando se lida com material de arquivo, me parece mesmo algo fora de um critério muito bem definido, racional e teórico. Outras coisas entram aqui como a fluidez e a dinâmica de montagem — muita coisa o filme vai pedindo e outras o filme vai retirando de si. Por isso eu penso que os filmes tem vida própria. São meio autônomos, de certa forma”, defendeu Rossi.

“Acredito que alguns filmes sim [vão sobreviver] outros não. Assim como qualquer movimento, grupo artístico ou de obras que surgem em determinados momentos históricos” | Vinícius Silva

Os filmes fora do contexto de pandemia: há “vida” para eles?

Um questionamento que emerge da análise dos curtas produzidos no âmbito do isolamento social, com todas as limitações e condições impostas por essas circunstâncias, é se há uma vida para eles quando dissociados dessa conjuntura. Ou seja, vistas fora contexto de pandemia, essas obras sobrevivem?

Assim com as obras aqui apresentadas, as opiniões são diversas. Vinícius Silva, diretor de 00:17:35, ZL, considera que há muitas fatores que determinam a “sobrevivência” dos filmes ao tempo e fora da conjuntura pandêmica.

“Acredito que alguns filmes sim [vão sobreviver] outros não. Assim como qualquer movimento, grupo artístico ou de obras que surgem em determinados momentos históricos. Mas é isso, acredito que alguns irão ter, sim, vida e uma grande parte não. Sobre esse que eu realizei, sinceramente não sei. Têm muitas variáveis que fazem um filme ficar, ter vida ou não, no próprio circuito de cinema e arte que vai para além dos filmes. E meu filme é só mais um né, o tempo que vai dizer”, avaliou Vinícius.

Cena do Filme 3 do projeto Me Cuidem-se!, dirigido por Cavi Borges e Bebeto Abrantes

Deborah Perrotta e Davi Mello, por sua vez, são otimistas quanto a carreia dos filmes do Experimento ODRADEK — Domicílio Incerto. Quando perguntados se eles acham que as produções do projeto terão “vida pós-pandemia”, ambos foram assertivos em confirmar.

“Acreditamos que sim. Apesar dos filmes e de todo o projeto ter sido criado e realizado sob as condições do isolamento, não é exatamente um projeto sobre a COVID-19 e suas consequências. É um projeto sobre uma casa e aqueles que a habitam. A partir do momento que abrimos a nossa casa, todos podem habitá-la. E recebemos lindas mensagens durante a instalação; de pessoas que se identificaram e outras que foram convidadas a refletir. E acho que “só” isso já ultrapassa as barreiras de tempo e espaço”, justificou Deborah.

“É uma pergunta curiosa, porque essa semana nos escreveram algo em relação aos vídeos-carta: “são como filmes viajantes no tempo”. Eu gostei dessa analogia porque percebo que existe certa atemporalidade no projeto. Claro, ora e outra o espectador é lembrado que a condição dos autores era de um distanciamento social e derivado de uma pandemia global. Entretanto, eu acredito que os assuntos que são abordados se ampliam, perpassam a relação individual e abrem espaço a uma identificação coletiva”, destacou Davi.

Davi ainda revela a intenção de expandir o experimento.

“Temos planos, sim, de expandir a experiência da instalação virtual em outros formatos, sejam em curtas ou médias-metragens. Acreditamos que alguns de nossos filmes funcionam de formas individuais. Não por acaso, um deles acabou de ser premiado pelo edital Múltiplos, do Itaú Cultural. Foi um novo reconhecimento para o projeto”, pontuou.

“Acho que quando tudo isso passar todo mundo vai estar de saco cheio de quarentena e sem disposição pra ver nada relacionado a ela” | Cavi Borges

Na mesma linha, Bruno dos Santos, um dos diretores de Fragmentos, usando o curta como exemplo, atenta para a universalidade de algumas temáticas e abordagens dos filmes produzidos nesse período e que, por isso, dificilmente eles ficariam “datados”.

“O sentimento que deriva, aqui falo especificamente do meu curta, é um sentimento de estagnação, de aprisionamento, de solidão até, sentimentos esses que pós-quarentena ainda estarão impregnados nas pessoas que sobreviverão a essa pandemia; os filmes realizados neste período, que acabam registrando-o, não poderão ser esquecidos justamente por trazerem uma reflexão necessária sobre esse período mesmo, são registros para que não nos esqueçamos desse pedaço da nossa história, da história humana” analisou.

“No audiovisual e nas artes em geral, nada se perde. Pode não ser dada a atenção necessária, naquele momento, mas tenho certeza de que tudo isso vai se tornar o registro de uma infinidade de pensamentos, traduzidos em trabalhos baseados nessa angústia aterrorizante, que assola o planeta” | Katia Mesel

Na contramão, Lucas Henrique Rossi diz não saber avaliar a longevidade das produções audiovisuais. “Eu sempre acho que os filmes tem vida própria, que se comunicam mais do que deveriam, ou menos do que você achava que iria se comunicar”, ressaltou.

“Direto, me pego lembrando de filmes que fiz como produtor, ou mesmo como realizador, e penso: ‘caramba, que loucura!’ Aconteceu isso ou aquilo (seja para coisas boas ou ruins) e tenho acreditado que, no fundo, é fora do nosso controle prever a vida de um filme. Penso ainda que ele [o filme Ser Feliz no Vão] é um filme realizado durante a pandemia, porém, o tema não se relaciona com isso. Eu não sei se os filmes todos agora serão sobre pandemia, eu sinceramente espero que não”, concluiu ele.

Cena de filme do Experimento ODADREK — Domicílio Incerto (2020), de Deborah Perrota e Davi Mello

Cavi Borges é taxativo ao falar que as produções surgidas do Me Cuidem-se devem passar por um período de baixa quando a pandemia acabar, mas que também tem potencial a médio e longo prazo.

“Acho que quando tudo isso passar todo mundo vai estar de saco cheio de quarentena e sem disposição pra ver nada relacionado a ela. Mas no futuro, acredito que o filme poderá ser um registro histórico importante sobre esse período. Então, acredito sim, que deve sobreviver ao tempo”, avaliou o carioca.

Com sua ponderação costumeira, Katia Mesel destacou que filme A Volta e outros realizados nesse período se inserem no contexto do audiovisual de forma mais ampla e que dificilmente serão “desperdiçados”.

“Acredito que A Volta e toda a produção audiovisual decorrente desse momento de quarentena vai ser o retrato de uma situação que nós vivemos de forma mundial. Então, documentário, ficção, experimental ou animação, são modos de retratar esse sentimento angustiante de isolamento, de impossibilidade, de não deslocamento, de pânico, de medo de se confrontar com a morte, do inimigo oculto. Esses produtos audiovisuais que estão sendo produzidos, tendo a situação atual como tema, registram um momento estratificado na realidade de todos. No audiovisual e nas artes em geral, nada se perde. Pode não ser dada a atenção necessária, naquele momento, mas tenho certeza de que tudo isso vai se tornar o registro de uma infinidade de pensamentos, traduzidos em trabalhos baseados nessa angústia aterrorizante, que assola o planeta. Democraticamente, todos podem contar suas histórias, e divulgá-las em diversas plataformas, formando um conjunto de valor inestimável para a compreensão de uma nova realidade”, ressaltou Katia.

Os filmes “sobrevivendo” ou não, o fato é que todos são obras notáveis que integram um recorte de um momento histórico, mas também se expandem a ele e atestam novamente o poder do audiovisual enquanto mídia agregadora de percepções, pontos de vista, emoções, ideias, visualidades e afetos. O cinema segue como um espaço de resistência e reinvenção.

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Sandro Alves de França
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Jornalista, professor e mestrando. Praiêro nas horas vagas. Escreve, reclama, lê e assiste a filmes. 30 anos de sonho e de sangue. E de América do Sul.