Top 5: Torquato Joel

Alquimia, mundo em colapso, Luta de Classes, globalização no Sertão e a poética de Augusto dos Anjos

Torquato Joel é uma referência da cinefilia paraibana e nordestina quando o assunto é curta-metragem. Seus filmes já circularam pelo interior do Nordeste, por todo o Brasil e também em outros países por meio de oficinas, cursos, festivais e mostras de cinema. A grande maioria deles está disponível para ser vista online e gratuitamente.

Como um cineasta que prima pela síntese narrativa, seus curtas não possuem ‘firulas’ e comunicam as ideias com uma precisão formal quase cirúrgica, mas sem forçar ou deturpar o conceito artística da obra. No cinema de Torquato tudo flui, e esse fluxo encontra várias formas e propostas estilísticas para contar suas histórias e representar suas ideias.

Temas como a cultura local, pertencimento, a relação telúrica com a natureza, arte do poeta da terra, o sincretismo entre o arcaico e o moderno no Sertão, a distopia de um mundo que explora seus habitantes e exaure seus recursos naturais, as relações de poder e dominação de umas classes em relação as outras, a alquimia que transforma a junção de elementos em combustão em criação artística estão presentes na filmografia de curtas do cineasta paraibano.

Visando contemplar a diversidade de fases e propostas narrativas, o Curta Curtas apresenta o Top 5 de filmes de Torquato Joel:

5. Transmutação (2013)

Com a sensibilidade que lhe é característica, Torquato registra o cotidiano e um ferreiro que, em seu ofício, é um verdadeiro alquimista, transformando ferro derretido em obras de arte, objetos de decoração, utensílios, bustos, lembranças.

A potência das imagens é algo que deslumbra e envolve, criando uma espécie de campo magnético-cimemático entre o espectador e o filme. Em dado momento, a construção visual e a trilha sonora provocam uma imersão capaz de nos fazer sentir o calor do fogo e da caldeira, as ondas magnéticas que emanam da combustão dos metais.

Cada plano é aproveitado de forma primorosa, o curta explora muito bem os códigos narrativos e estilísticos de tempo, espaço, luz, sombra, brilho, focalizando os elementos naturais e a intervenção humana sobre eles, que cria a “ilusão” de se criar algo. Ou seria a percepção de uma realidade criativa? Assista e tire suas próprias conclusões.

Veja ao filme aqui.

4. Gravidade (2006)

Uma realidade distópica: um homem (literalmente) despido de tudo, sem qualquer referência ou caráter, se refestela sobre restos de comidas, cercado de ossos e de uma paisagem árida, entrecortada apenas por uma árvore de galhos secos. Sons de uma música nostálgica, da era de ouro do rádio, embalam parte da sequência, enquanto a câmera faz um giro de 360 graus focalizando o horizonte cinzento e escuro, com fumaça, escassez e lugubridade.

Toda essa atmosfera é construída com precisão narrativa e imagética, tornando um cenário de terra arrasada e cataclismo num tratado poético-visual sobre o que será do mundo caso sigamos nesse ritmo de exploração predatória.

O trabalho de composição visual do fotógrafo Walter Carvalho, aliado ao domínio da linguagem do cinema de Torquato tornam essa experiência algo tanto perturbadora quanto fascinante. A frase da peça clássica de Shakespeare ecoa (abstratamente) aqui: “Como é horrível e belo o dia que não conheci”.

Assista aqui.

3. Moído (2016)

A divisão social das classes e sua relação de exploração metaforizada numa alegoria que divide os grupos em camadas: os do topo, que estão no olimpo da beleza e da fartura — e se refestelam, os do meio, que não tem os mesmos privilégios, mas mantém a mesma relação exploratória com o segmento hierarquicamente mais baixo, que é a base e se alimenta dos restos do que é jogada do topo, não enxerga a luz do dia, vive coberta de lama e não vê perspectiva de ascensão.

A alegoria pode ser tanto referência à Caverna de Platão quando à uma corporificação visual da famosa figura da pirâmide social. Quando do lançamento do filme, o diretor definiu a produção como “um ensaio poético-audiovisual sobre a luta de classes”. Com um trabalho de composição visual primoroso, um triunfo da direção e da fotografia esplêndida do pernambucano Breno César, Moído alegoriza o mundo-moinho que tritura sonhos, elege seus ícones e perpetua desigualdade.

Com elenco inteiro de alegorias-vivas, com atrizes e atores completamente nus, a nudez aparece como elemento de nivelamento simbólico e de choque visual. Torquato falou sobre essa escolha estética em entrevista à 3x4 do Curta Curtas: “Em Moído, no preâmbulo, eu quis dar um choque na hipocrisia com uma xoxota e um pau no pré-coito. Não um choque gratuito, mas apontar o óbvio de que somos frutos da relação de um pau com uma vagina. Sem firulas, dizer que o que vem a seguir na narrativa é resultante desse ato que, muitas vezes, é reprodutivo”.

Veja aqui.

2. Passadouro (1999)

Um dia na vida e na rotina de um sertanejo que vive da agropecuária, num recorte de agricultura familiar e recursos limitados. O vaqueiro é uma espécie de cavaleiro, a armadura é o seu gibão de couro e a espada a enxada. Tudo isso em meio a uma modernidade híbrida que traz novas ambiências como o rádio, a TV, a antena parabólica que interliga o recanto rural ao mundo das informações televisionadas.

Com belas imagens, em mais uma parceria frutífera com o fotógrafo Walter Carvalho, Passadouro percorre os elementos de um ambiente e suas “texturas”, cores, simbolismos: registra a culinária, a religiosidade, os hábitos do cotidiano e situa as personagens num microcosmo que é prenuncio de uma realidade inescapável: a globalização chega em todo lugar, até nos recônditos mais afastados.

Torquato constrói um verdadeiro relicário audiovisual sobre o impacto da globalização no modo de vida das pessoas; faz isso com incrível domínio formal e sensibilidade estética, num dos curtas mais premiados do cinema nordestino moderno. Uma obra híbrida, misto de documentário e ficção. Foi selecionado para a mostra competitiva do Festival de Roterdã, na Holanda e vencedor do Prêmio da Crítica no Festival de Brasília e dos prêmios de melhor filme, roteiro e direção no Festival de Cinema de Gramado.

Assista ao filme aqui.

  1. Transubstancial (2003)

O curta mais “longo” de Torquato Joel passeia pela poesia de poeta paraibano Augusto dos Anjos em imagens de paisagens naturais, lugares e projeções de poemas na tela, tudo interligado e transbordando lirismo por todos os planos e sequencias.

A poética de Augusto dos Anjos, que reúne morbidez, paixão, fé, ímpeto e resignação é representada em belas sequencias contemplativas que dialogam com seu lirismo e suas simbologias. Mais que isso, o filme as amplifica: a poesia augustiana vira “pintura” na tela audiovisual de Torquato, fazendo ver, sentir, introjetar seus significados, numa sensorialidade tão latente que extravasa à tela.

Aqui, Joel se apropria dos versos de Augusto dos Anjos e os consubstancia em algo que faz jus a beleza e a potência da obra poética do paraibano. Cinema enquanto referência, (re)apropriação sensorial, reverência e expansão. Um exercício de estilo e tanto!

Assista ao curta aqui.

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Sandro Alves de França
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Jornalista, professor e mestrando. Praiêro nas horas vagas. Escreve, reclama, lê e assiste a filmes. 30 anos de sonho e de sangue. E de América do Sul.