CriptoFunk pra descriptografar mentes e quadris

Hannah de Vasconcellos
data_labe
Published in
8 min readDec 3, 2018

Por Fernanda Távora e Hannah de Vasconcellos
Fotos:
Suzane Santos | Amarévê

Na sua primeira edição carioca, a CriptoFunk chegou no último dia 24 para engrossar o debate sobre privacidade, segurança digital e liberdade de expressão. Aconteceu no Galpão Bela Maré, um espaço lindo de arte e cultura na favela da Nova Holanda, uma das favelas do complexo.

Oficina de afrofunk: criptografe dados, descriptografe o corpo

O evento, seguindo o movimento internacional das CryptoParties, foi resultado de um esforço coletivo* para pautar as ideias acerca da internet e seus muitos temas. Foi um dia de atividades, entre mesas, exibição de filme e debates, que abriram conversas sobre autocuidado, direitos humanos, bruxarias internéticas, entre outros.

Autocuidado on e off

A primeira mesa foi sobre integralidade ao pensar segurança: “Cuidado integral: segurança digital, física e autocuidado”. Para iniciar as reflexões, a pergunta provocadora foi lançada: como usar a tecnologia para continuar no ativismo sem esquecer de si mesmo? Antonio Neto, da Justiça Global, Amarela, da Escola de Ativismo, Thamyra Thâmara, jornalista militante de várias frentes, e com mediação de Lucas Teixeira, da Coding Rights, a mesa fluiu. Thamyra abriu o microfone mandando a real sobre ativismo nas favelas e periferias “É preciso trazer o debate das estratégias de proteção de dados para a base. Falar de segurança não apenas digital, mas também segurança física de quem está mais sujeito à violência do estado nesses territórios.”

Primeira mesa com Thamyra Thâmara, Antonio Neto, Amarela e Lucas Teixeiras, respectivamente

Neto fez coro sobre esse papo de proteção, dividindo as estratégias em quatro momentos com o objetivo de reduzir as nossas vulnerabilidades e as chances de ser impedida e impedido de atuar nos nossos territórios: “O primeiro é fazer uma boa avaliação de contexto e conjuntura, sendo contexto a favela, por exemplo, e a conjuntura a situação do país. O segundo é realizar uma boa análise de risco, identificando as forças a favor, as forças contra e as forças de direção desconhecida, as chamadas forças em disputa. É preciso saber quem e o que pode nos colocar em risco. O terceiro momento é construir uma boa estratégia singular de proteção, levando em conta os dois primeiros momentos. O quarto e último é avaliar e monitorar esse processo de construção de medidas de proteção, continuamente.”

A partir de uma pergunta do público, fomos provocadas e provocados a pensar sobre corpo e medo. Amarela, ao responder, nos lembrou de percebermos o nosso corpo físico quando falamos de segurança também no espaço online. Afinal, por mais que se crie uma identidade exclusiva para esse espaço, ainda somos nós presentes ali na frente da tela. “O medo é um afeto que é usado muito contra a gente. E, por isso, precisamos trabalhar a sensação de segurança, como se sentir bem nos espaços online. Não só na criptografia mas também no dia-a-dia. O corpo também está online.”, disse.

A complexa pergunta sobre o que é estar seguro permeou toda a conversa. Nosso momento político pede cuidado e autocuidado: “Devemos evitar os dois extremos, o da negligência de achar que não estamos em perigo e o de cair na paranoia”, finalizou Neto.

Violações de Direitos Humanos: o que e como fazer?

As duas mesas seguintes aconteceram concomitantemente: “Segurança em situações de violações de Direitos Humanos” e “Internet feminista: privacidade, violência online e resistências”. Na primeira, informação e segurança foram as palavras-chave para o debate que aconteceu entre as/os participantes e Thainã de Medeiros do Coletivo Papo Reto e Guilherme Pimentel do Defezap. A mesa se propôs a trazer estratégias — tanto offline, quanto online — de segurança para quem pretende registrar situações de violações de direitos humanos.

O primeiro ponto destacado pelos debatedores foi a importância da informação, que deve ser coletada durante o registro da violação, feita na maioria dos casos por filmagens de celular — a ferramenta mais simples e mais acessível para quem é de favela e periferia. É importante ter em mente seis perguntas básicas: quem?; o quê?; onde?; quando?; por quê? e como?. “Serve para que a pessoa que faz o registro tenha foco e volte a atenção para outro tipo de informação além do registro em vídeo”, destaca Guilherme. Segundo o representante do Defezap, essas informações são decisivas para que o caso de violação de direitos humanos seja encaminhado para uma solução jurídica. A informação também é essencial para que a vítima da violação possa contar com o apoio da organização.

Thainã falou sobre como a segurança deve ser pensada de forma coletiva quando os registros de violações de direitos humanos são feitos. “Se você sentir medo, não faça a filmagem sozinho, chame alguém para ir com você. Se você tá indo pro caô e o caô ainda está acontecendo, avise outras pessoas para que elas saibam onde você está indo”, avisa o jornalista. Ele aponta ainda que filmar em dupla pode ajudar as pessoas envolvidas a focar melhor nos acontecimentos: enquanto um filma, o outro protege. Uma das estratégias, ainda segundo ele, é que um integrante filme o outro durante o registro da violação. Isso pode ajudar a ter uma nova perspectiva visual do acontecimento e, ao mesmo tempo, protege o outro integrante de sofrer uma agressão, já que isso também ficaria registrado nas filmagens.

Sempre estivemos aqui, por uma internet inclusiva

Ao mesmo tempo, a galera que colava na CriptoFunk podia ouvir Narrira Lemos e Steffania Paola, ambas da coletiva Cl4ndestina, falando sobre internet feminista. A mesa foi guiada pelas dinâmicas propostas pela dupla. A primeira foi andar pela sala e, ao som de palmas inesperadas, parar e se apresentar pra quem estava mais perto de você. Papo vai, papo vem, todo mundo se conheceu assim, de maneira leve. Logo, fomos provocadas e provocados a pensar: qual é a sua primeira lembrança de contato com alguma tecnologia e qual é sua primeira lembrança de contato com a internet? Não poder usar o telefone enquanto usa a internet, ser apresentada à tecnologia como algo masculino e até morar perto de falésias, que eram uma barreira ao acesso à internet, foram algumas das respostas.

Pesquisamos no Google as palavras “tecnologia”, “internet” e “hacker” e, a partir disso, percebemos o que já vivemos: falta representatividade feminina. “Sempre estivemos aqui e temos exemplos históricos como as programadoras do ENIAC, em 1946, e as engenheiras da NASA, durante a Guerra Fria, que inspiraram o filme “Estrelas além do tempo”, destaca Steffania. Narrira emenda apontando que, apesar da liberdade que a internet parece entregar, a rede tem dono e remonta um período muito anterior à criação dos computadores e do que conhecemos como tecnologia atualmente. “Até hoje, os cabos da internet fazem as mesmas rotas marítimas da época das colonizações, literalmente”. A internet parece uma coisa nova, mas os interesses por trás dela, não.

Depois de apresentar mulheres inspiradoras da história do país e do mundo, a pergunta ecoou: afinal, o que é uma internet feminista? Narrira e Steffania explicam que é um ambiente solidário, colaborativo, que se preocupa com privacidade e segurança e que torna a resistência possível. Por um espaço online — e offline — mais feminino, feminista e diverso.

Autodefesa com Krav Maga

O papo seguinte foi com o Piranhas Team, grupo que ensina Krav Maga para autodefesa da população vulnerabilizada, como LGBTs e mulheres. Assim como na primeira mesa, a importância da proteção física foi muito debatida pela mesa formada por Vitória, Halisson e Polly. “O empoderamento também passa pela liberdade de se sentir seguro”, afirma Victoria. Com demonstrações e dicas, a conversa revelou que todo mundo é capaz de aprender a se defender e passar por possíveis situações perigosas com mais segurança. A Cripto seguiu mais empoderada depois dessa.

Demonstração da galera do Piranhas Team

Pausa para um coffee break regado, energias renovadas para participar de duas atividades que aconteceram ao mesmo tempo: a exibição do filme Freenet?, seguido de um debate, e a oficina de cuidados digitais. Freenet? é um documentário, fruto de um trabalho colaborativo, sobre o futuro da liberdade na internet. A exibição foi provocativa e nos fez pensar os bastidores da internet, pensando naqueles que mais sofrem com as políticas na rede: nós, os usuários.

O poder de saber o que é internet

A oficina de cuidados digitais, com a Amarela e o Lucas Teixeira, começou com uma pergunta: qual a primeira coisa que vem à cabeça quando se fala em internet? A provocação gerou debate e iniciou um papo sobre como funciona a estrutura da internet. Entender esse funcionamento é o primeiro passo para entender como podemos usufruir do espaço que a rede oferece com segurança. O data_labe já fez um vídeo contando um pouquinho sobre como a internet funciona em parceria com o Nexo Jornal.

Tanto Amarela quanto Lucas bateram na tecla de que a internet é física e não se resume apenas ao wi-fi ou ao 3G. Quando falamos da estrutura física da internet, fica mais fácil entender, por exemplo, como grandes empresas têm acesso aos nossos dados, por onde isso é possível e porquê isso acontece. Amarela destacou ainda a importância de entender a internet como algo físico. “Se a internet é física, ela é um espaço político também. Temos que enxergar a rede como um espaço de disputa política”. E de que forma podemos nos proteger na rede? Para começar, sabendo como funcionam os principais aplicativos de troca de mensagens.

Whatsapp, Telegram e Signal foram colocados à prova na oficina. Qual é a sua escolha?

Acharam que a gente não ia rebolar nossa bunda na Cripto?

Hora de descriptografar os quadris! Última oficina do dia: Afrofunk, com Taísa Machado. Ao som de muito funk, aprendemos a soltar o quadril, a rebolar em vários estilos do mundo e a se achar linda demais. Taísa, com uma metodologia de dar gosto que você pode conhecer um pouco nesse texto incrível, nos fez relaxar e animar ainda mais para a festa que estava por vir.

Oh a Taísa dando aula

Seguindo a tradição da CryptoRave de São Paulo e colocando em prática os ensinamentos da Taísa, nos jogamos na pixxta ao som de muito funk para fechar a CriptoFunk carioca do jeito que a gente goxxta. A festa foi comandada pelas djs Octarina Lux, Ingryd e Gabi Lino e você pode ouvir o set da Octarina tocada na Cripto aqui.

Nós do data_labe acreditamos na potência de um evento como esse acontecer e acontecer na favela. O autocuidado é política pra além de resistência e o cuidado em todas as esferas — on e off — é estratégia para seguir na missão.

A gente, do data_, segue na missão | Da esquerda para a direita: Giulia Santos, Juliana Marques, Fernanda Távora, Gilberto Vieira, Juliana Sá e, embaixo, Hannah de Vasconcellos, Eloi Leones e Clara Sacco

*A Criptofunk é resultado de um trabaho colaborativo entre data_labe, Intervozes, Mapa das Mina, Observatório de Favelas e Redes da Maré.

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Hannah de Vasconcellos
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Jornalista, mestra em Políticas Públicas em Direitos Humanos (UFRJ) e doutoranda em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ). Escrevo o que transborda.