Outros jeitos de usar a crítica

Esta poderia ser uma resenha, mas não é

Dawton Valentim
Dawton Valentim
6 min readFeb 28, 2018

--

Outros jeitos de usar a boca, Rupi Kaur. Tradução de Milk and Honey, por Ana Guadalupe, para a Editora Planeta, São Paulo. 2017. 208 p.

❝você conseguiu chegar ao fim. com meu coração nas mãos. obrigada. por chegar aqui a salvo. por ter cuidado com o que há de mais delicado em mim. sente-se. respire. deve estar cansado❞ (p. 207).

Esta poderia ser uma resenha ou crítica sobre o livro Milk and Honey, da jovem indiana radicada no Canadá Rupi Kaur, que virou Outros jeitos de usar a boca, na tradução de Ana Guadalupe para a Planeta, no Brasil. Não é. Apesar de eu ter arriscado meia dúzia de stories para comentar o que achei da leitura do livro, seria insensato tratar de uma obra que não foi escrita a partir ou para o lugar de fala que ocupo. O livro foi escrito por uma mulher, para mulheres e a partir de dores e vivências femininas e/ou feministas. Eu não caibo nessa narrativa e é fundamental aprender a admitirmos isso, sobretudo no momento sócio-histórico em que estamos.

Esta é uma reflexão, a partir da leitura do livro de Kaur, sobre crítica (literária ou não). Estabelecer a intenção de propor uma reflexão e não uma crítica é importante especialmente porque, assim como faria numa resenha, terei de contextualizar a obra e minha experiência de leitura, mas para outros propósitos, que espero alcançar ao fim do texto (estou sem esperanças, todavia).

Para quem quiser uma resenha propriamente dita, duas: Infinitas Vidas e Super Interessante.

Aliás, três.

Os “instapoetas”

No fim de 2017 (mas também visível em 2016 e até em 2015), especialmente na imprensa internacional, reportagens deram conta de um fenômeno literário surgido, como de costume nos dias de hoje, da internet. O mesmo espaço que revolucionou nossa relação com a política, com debates sociais e com hábitos de consumo cultural e midiático trouxe a poesia, um dos gêneros mais impopulares (ou subestimados?) da Literatura, para o topo da lista de livros mais vendidos do mundo. O livro foi Milk and Honey, de Rupi Kaur, pulicado, primeiramente, de maneira independente e, depois de grande repercussão, relançado sob os holofotes do mainstream. No Brasil, publicado como Outros jeitos de usar a boca, o impacto não foi menor. Especialmente depois de a youtuber Jout Jout recomendar o livro em seu canal.

“Bibliografia obrigatória da ‘família Jout Jout’”, com mais de 1,5 milhão de integrantes.

Grande parte do alcance de Kaur se deve à internet. Hoje, com mais de 2,3 milhões de seguidores no Instagram, a escritora se junta a nomes como Lang Leav, Tyler Knott Gregson, Robert M. Drake, João Doederlein, Zack Magiesi e outros para formar uma categoria ou gênero literário que a mídia está chamando de “instapoetas”. Ou seja, poetas que utilizam as redes sociais (principalmente o Instagram, mas também o Tumblr, o Facebook e o Twitter) para o compartilhamento de seus textos, mostrando, entre outras coisas, que a poesia não estava morta, mas, sim, precisando de novos meios, inclusive digitais.

Esse fenômeno demonstra uma das funções mais sociológicas da Literatura: o registro de transformações sociais. A popularização dos instapoetas acompanha uma geração que está cada vez mais conectada por smartphones e redes sociais digitais, tendo sua atenção disputada a todo instante por explosões de novos links, memes e informações em tempo real. É natural desta nova poesia se construir a partir de uma linguagem mais direta e acessível, tratando de temáticas que dominam os trending topics e que “viralizam” justamente (mas não só) por isso, com poemas curtos e brancos (sem rima) em sua maioria. Se os subtextos se deixam ver com mais facilidade, não é igualmente fácil ignorar a habilidade dos textos de gerar identificação e de tocar em temas difíceis, como estupro, assédio, feminilidade, relacionamentos e outros.

Também é natural que poetas jovens, entre 18 e 29 anos, sejam os protagonistas do movimento que é visto por alguns críticos como simplista, uma vez que são eles, os nativos digitais, que já nasceram dentro da lógica digital, da internet como realidade padrão. É preciso, no entanto, não confundir simplicidade com simplismo. Contextualmente, a grande parte da “instapoesia” é tão simplista quanto “a pedra no meio do caminho” de Drummond, ou seja, não é. Da mesma forma com que escolhem uma maneira mais objetiva ou simples de falar de temas densos, os poetas digitais não escolhem reduzir a potência da mensagem, mas, sim, reduzir o rebuscamento que, muitas vezes, afasta o grande público do texto e sufoca o interesse geral pela poesia.

Não à toa, muitos dos tantos comentários que Outros jeitos de usar a boca recebeu são depoimentos de pessoas que não gostavam ou nunca tinham lido poesia, talvez pelo inconsciente coletivo, em parte culpa do letramento escolar, de que o gênero é difícil, inacessível e enfadonho. Foi a dúvida “será que poesia é mesmo tão difícil?”, plantada pelo sucesso de vendas de Kaur, que fez grande parte das pessoas ler o livro e se identificar com as pautas identitárias dali. Pautas essas que vão ao encontro da mídia em que nascem, também dedicada ao particular e ao si, formando um conjunto febril de simpatia. Talvez incomode à crítica que tenha sido Kaur e os instapoetas que levaram a poesia à lista de bestsellers e não algum canônico; talvez falte a ela a sensatez de observar os textos contextualmente, dentro de um espaço-tempo que abraça fortemente o que é rápido, objetivo, postado em 400 por 400 pixels; ou, ainda talvez e apesar de todo o frisson, haja quem não tenha sido tocado pelo texto. E tudo bem, também.

Atrizes foram convidadas pela Planeta para um vídeo lindíssimo sobre Outros jeitos de usar a boca.

A crítica e os (dis)likes

Outros jeitos de usar a boca não é unânime. A própria poeta Rupi Kaur considera que o trabalho, escrito enquanto tinha 18 anos, foi superado por trabalhos seguintes. À medida que o livro encontra o grande público e abre caminho para mais publicações poéticas no mainstream, está sujeito a cada vez mais apreciações, nem todas tão apaixonadas quanto a maioria. Aliás, nem todas dessas vêm de críticos acadêmicos, jornalistas e escritores, mas também de leitoras e leitores que não são alcançados pela narrativa (ou que não a alcançam, dependendo do ponto de vista). Leitores que vão desde os que dizem “ok, não é pra mim, mas é bom pra começar a ler poesia” até aqueles que fazem perfis parodiando o estilo da indiana, com uma grande zona cinzenta entre aquele 8 e esse 80.

A fim de construir uma poética que não faça os leitores “agonizarem em todas e cada uma das palavras”, Rupi escreve, sim, um texto facebookiano (ou instagramático, como queira), afinal essa é a proposta: uma poesia de tema forte, forma direta e que satisfaça pessoas de diversas culturas, localidades e etnias. Constatar isso não é desmerecer Milk and Honey (nem poderia, considerando que faz tempo que a “crítica especializada” perdeu esse controle) assim como se identificar com cada verso do livro não é evidenciá-lo como insuperável. As intenções da autora estão impregnadas na poesia que, sim, é poesia, poesia nova. São experiências de leitura particulares e sem esse poder conspiratório de desconsiderar uma produção, mas, sim, de colocá-la em debate (o que a faz repercutir ainda mais).

A confusão que existe, neste caso, entre discriminação ou invalidação e apreciação ou experiência de leitura divergente se deve à paixão com que nossa geração trata hits, tomando críticas, sejam quais forem, pessoalmente, personificando-as. Um comentário desfavorável se torna, assim, um ataque pessoal. Nesse cenário e ainda mantendo o pensamento entre a crítica moderada e a crítica apaixonada (ou seja, não incluindo ridicularização e afins, que nem merecem comentários), postar (leia-se dizer) que um livro pop (leia-se bestseller) ou parte dele não tocou ou não foi tão marcante para um como foi para outros é evitado sob o risco da perda de seguidores e likes (leia-se influência). E esta está longe de ser uma reflexão necessariamente acadêmica (especialmente no sentido da palavra que tenta, aí sim, desmerecer um ponto de vista impopular); está mais perto de ser o compartilhamento de uma angústia: em que feed pode-se postar sincera e amistosamente o que se achou de um livro?

Uma espécia de curta em stop motion com poemas de Outros jeitos de usar a boca. Ficou lindo. ❤

Ou seja, que a polêmica dê margem à descoberta e valorização de cada vez mais pessoas que, antes não conseguiam estar no mainstream, entrando, aqui, desde a poeta indiana até as poetas que estão aí, na sua cidade, se mobilizando por meio da palavra. Que ela também seja ponto de partida para percebermos que, a despeito da preocupação com métricas e formas, o texto literário precisa ser visto a partir da sociedade que o lê e de seu contexto sócio-histórico. Finalmente, em vez de tomar as leituras divergentes (aquelas que não acompanham a maioria) como ofensas pessoais ou ataques ideológicos, sugiro que as aproveitemos como espaços de discussão. Deixemos o algoritmo-bolha apenas para as redes sociais.

Gratidão e até!

--

--

Dawton Valentim
Dawton Valentim

Crônico por natureza. Linguista, revisor e professor. Em todo canto: @dawtonv