Anti-descartáveis

Samuel de Almeida
Desen
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4 min readNov 7, 2017
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Minha mãe tem uma grande tigela de porcelana, bem decorada, a qual ela ganhou de minha avó, e foi dada à ela por meu bisavô — tropeiro e vendedor de louças e porcelanas.

Engraçado pensar agora que eu nunca conheci meu bisavô, nem mesmo por fotos, mas — graças à porcelana — você agora sabe um pouquinho sobre ele.

Quando eu era criança, e todo objeto estava sob risco de ser quebrado cedo ou tarde, essa porcelana ficava em cima do armário, longe do meu potencial destrutivo. Não era apenas uma tigela bonita para servir comida aos domingos. Era uma lembrança.

Outras peças, talvez até mais bonitas ou mais caras, não ficavam sob a mesma proteção do alto do armário. Eles eram, de certa forma, descartáveis.

Hoje em dia, temos cada vez menos porcelanas e outros objetos que irão atravessar gerações, e fazer com que nossos bisnetos falem sobre a nossa história em qualquer plataforma estranha que vai existir lá pra 2167.

Imagina o meu bisavô, que tinha a carta como tecnologia mais avançada para se comunicar com a família, sabendo que eu perguntei sobre ele à minha mãe — a mais de 400 km de distância — e ela me respondeu em alguns segundos?

Tudo bem. É provável até que eles vão conhecer a nossa história (se tiverem algum interesse) através das pistas que deixamos espalhadas pela internet. Quem sabe?

No entanto, acreditamos que algumas coisas mais importantes que tigelas também podem ser descartáveis — quando não é tão fácil assim se livrar ou conseguir uma nova caso elas “quebrem”.

Fazemos isso com as pessoas, por exemplo.

Uma relação importante vai mal? Tudo bem, podemos começar outra.

E não é que você devesse se prender à um relacionamento com alguém que sempre te coloca pra baixo, critica todos os seus planos e faz você se sentir mal. Esses são os casos em que se afastar da pessoa compensa — de uma maneira que nem dá pra descrever.

Outras vezes, no entanto, a situação não é um relacionamento abusivo. Acontece de alguém que esteve do seu lado e te apoiou, demonstrava querer seu bem, mas de repente começa a se afastar, se fechar no próprio mundo.

Fulano nunca mais apareceu, né?

Sim, fulano deixa de estar presente, não sai mais com você e a turma, conversa pouco, ficou “estranho”. Mas isso torna ele alvo do descarte? Não poderíamos ser nós a tentar consertar as rachaduras que estão surgindo nessa relação?

O silêncio do outro muitas vezes é o mais alto grito de ajuda que ele é capaz de dar. Quem sabe pelo que o nosso amigo está passando, ou o quanto ele precisa de nós?

Sentimentos são outra categoria de peças “anti-descartáveis” que tentamos jogar fora e procurar outra melhor.

Essa ansiedade aqui não está dando certo, deixa eu ir comprar uma tranquilidade rapidinho pra ver se encaixa.

Minha felicidade quebrou, será que já lançaram uma versão mais nova?

Quem dera fosse assim tão simples.

O problema é que às vezes tentamos fazer com que seja. Mas o que quebra dentro de nós não é levado pela coleta de lixo.

Quando percebemos que não é tão simples jogar fora esses sentimentos, que mesmo colocando eles pra fora de casa todos os dias, eles reaparecem no mesmo lugar, tentamos escondê-los dentro de uma caixa, no fundo de uma gaveta que pretendemos nunca mais abrir.

E parece que tudo está resolvido. Decidimos deixar essa gaveta especialmente para os problemas, e sempre que alguma emoção não é como queremos, encontramos uma caixa e colocamos lá dentro. A vida se tornar simples!

Ou só parece… até que um cheiro estranho começa a sair da nossa gaveta mágica.

Dia após dia, tentamos ignorar. Passamos o dia inteiro convencendo a nós mesmos de que está tudo bem, para sentir esse odor assim que chegamos em casa à noite.

Nossos amigos nos visitam, e no começo tem vergonha de perguntar, mas ficam com aquela expressão estranha — sabemos no que eles estão pensando. Depois de algum tempo se arriscam a perguntar: Cara, que cheiro é esse? Tem algo de errado por aqui!

E dizemos rapidamente que não. Espalhamos algum perfume barato no ar. Os dois cheiros se misturam e criam um novo odor, ainda mais estranho e desagradável. Não dá para mascarar direito.

Apenas meses depois criamos coragem para abrir a gaveta. Destampar as caixas. E aquilo que guardamos, meio quebrado, se tornou algo horrível. Os problemas cresceram, a sujeira tomou conta desses sentimentos — agora parece impossível consertar qualquer um deles.

Não sabemos nem por qual começamos!

E assim, episódios de raiva, decepção, arrependimento, ou qualquer uma das tantas emoções que parecem quebradas se transformam em problemas muito mais sérios e difíceis de lidar.

Precisamos pedir ajuda à família, aos amigos, quem sabe até algum profissional especialista em fazer esse tipo de faxina.

Se você está acumulando caixas com sentimentos quebrados, tentando se livrar deles, talvez seja a hora de encontrar algum tempo para tentar consertar ou limpar o que for necessário.

Pode parecer difícil — e olha, boa parte das vezes realmente é, não vou negar — mas é necessário! Peça ajuda a quem você acha que pode ajudar.

E caso já tenha aberto as suas gavetas e caixas, saiba que por mais sujeira e impurezas que você encontre por lá, sempre é possível se livrar dela e deixar a sua casa limpa como antes.

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Samuel de Almeida
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Aquela bio com uma crise existencial por não saber me definir.