Diário de criação
do Vitória, um RPG
de corpo e alma

dreamup
Design e Teoria dos RPGs
9 min readDec 17, 2014

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Da inesperada travessia por uma tormenta criativa

Recentemente participei na Promo RPG Lisboa Fall/Winter 2014 com um RPG que podem ler e comentar também aqui no Medium. Apesar de qualquer processo criativo ser bastante subjectivo, várias pessoas me disseram ter interesse em relatos de como se pode criar um RPG e é por isso que escrevo este artigo, mas sem qualquer pretensão quanto à qualidade do jogo ou validade da minha maneira de fazer as coisas. Se o design de RPGs te interessa, talvez outros artigos dentro desta série te sejam mais úteis ou, pelo menos, ajudem a dar contexto a este diário. Dividi-lo em 7 dias hipotéticos, desde o momento em que soube do concurso até ao dia em que submeti a minha participação.

Dia 0

Querido Diário

Quando o regulamento do concurso foi anunciado, copiei e colei para dentro de um ficheiro de texto esta frase dos Critérios de Participação:

O RPG deve ser concebido especialmente de maneira a ser jogado por 6 a 12 pessoas de todas as idades, num evento de família ou uma pequena festa.

Numa primeira leitura, ainda pensei que podia arranjar qualquer coisa para isto, mas agora penso que não tem mesmo ponta por onde possa pegar. À partida, não devo participar.

Dia 1

Caderno de Encargos

Veio-me à cabeça algumas hipóteses, mas não encaixam no que é pedido, nem sei porque é que ainda ando a pensar nisto. Queria dividir os jogadores em equipas, mas isso não dá se for um número ímpar. Seis a doze é muito variável. Já para não falar que nem é suposto ser um jogo só para crianças ou só para adultos, até nisso é híbrido. Também não vejo grande interesse em escrever um LARP igual aos muitos que já há. Por outro lado, não posso complicar muito a coisa pois tem que ser mais ou menos acessível a qualquer pessoa. Há pouca margem para trabalhar.

Ainda por cima, queria ver se fazia um jogo em que houvesse pouco ou nenhum conflito. É ainda outro requisito a ter em conta, apesar de até poder ajudar a tornar este RPG num jogo mais de família. De resto, uma abordagem mais casual significa que não precisa de ter continuidade entre sessões ou fichas de personagem, um LARP muito leve portanto. Genericamente os LARPs também têm aquela tendência para os jogadores evitarem conflitos entre eles de modo a não necessitarem da intervenção constante de um organizador. Aí o gozo estará na riqueza de interacção entre personagens/jogadores. Preciso de pegar nisso como uma brincadeira que possa ser um jogo mediante a apetência dos jogadores para entrarem na actividade mais ou menos a sério.

Dia 2

Inspirações

Livros, séries, videojogos e filmes são referências comuns muito úteis, mas sempre me pareceu que os RPGs estão bastante próximos da tradição oral de criar histórias, nomeadamente do teatro de improvisação. Os meus exercícios de google-fu a esse nível levaram-me recentemente até à commedia dell’arte e ao “Improvisation for the Theatre”, um livro que é citado como sendo o primeiro no treino do improv contemporâneo.

São duas fontes interessantes na medida em que a commedia mostra-nos a tradição do treino corporal que ainda hoje é muito importante para os actores e, a esse nível, o detalhe expressivo e a capacidade atlética que são exigidos não podem ter correspondência com os RPGs e a sua abordagem lúdica da interpretação de personagens. No entanto, o livro de Viola Spolin expõe o improv como uma actividade de ocupação dos tempos livres para gente sem qualquer experiência de teatro e, nos exercicíos que propõe, é dada muita importância a uma expressão física e objectiva em que a palavra actor está intimamente ligada com a action em palco.

Claro que eu percebo zero de teatro, mas se calhar é possível escolher três ou quatro máscaras da commedia, aquelas que sejam mais fáceis ou reconhecíveis, e, seguindo a proposta de Viola Spolin, usar esses movimentos corporais para criar personagens num RPG.

Dia 3

Três Naipes de Cartas

Supostamente devo usar um baralho de cartas normal. Tenho outras ideias possíveis para LARP, mas cartas parece-me o mais simples de se arranjar. A questão é o que fazer com elas, não é? Por causa das crianças a jogar, o melhor será talvez cada jogador só ter uma carta, algo que até pode guardar no bolso. Então algo nessa carta representa uma das máscaras do género da commedia? Quatro máscaras, quatro naipes? Ou uso antes as figuras e talvez o Ás? Não sei. Para já, ainda não escrevi nada nem faço ideia de como o jogo poderá funcionar.

Penso que consigo isolar três arquétipos inspirados nas formas corporais da commedia. Se calhar, dava jeito serem quatro, mas não posso pedir demasiado dos jogadores nem vale a pena correr o risco das formas se confundirem. Conforme estão, distinguem-se bem e, se usar um universo medieval, o tema é bastante evidente. Mas então uso três naipes e deixo um de fora? Podia usar valete, dama e rei, mas não vale a pena ter de explicar que a dama tanto poder ser uma personagem feminina como masculina. Além de que são claramente três nobres, não encaixa nos arquétipos. Não, tem que ser três naipes e um fica de fora. É estúpido, cheira-me que este RPG vai ficar na gaveta.

Dia 4

Capela de Espadas

Estava a tentar dormir e ainda tenho isto a chatear-me a cabeça. Última tentativa, vou usar o truque do costume: quando se vai contra parede nas mecânica, vira-se para o tema (e quando se vai contra a parede no tema, vira-se para as mecânicas). Ok, tema, qual é o “naipe” que fica de fora? “Naipe” tipo elementos de uma sociedade, classes, famílias, profissões, o quê? De um império, nação ou cidade?

Vamos por cidade que é uma escala mais fácil de imaginar para um jogo casual. Tipo cidade-estado. Em guerra contra outras cidades-estado? Não, não podemos ter conflito. Mas guerra pode ter acontecido, desde que seja apresentada num tom positivo, tipo paz depois da guerra. E as pessoas combateram e ganharam, a cidade pode chamar-se Vitória para ser um nome simples e ficar bem explícito que não há qualquer trauma, estão todos felizes e contentes neste sítio.

Está bom, tema, então o naipe de Espadas pode ser o arquétipo daqueles que tombaram em combate. Já não fica estúpido ficar de fora. Para os outros naipes, é evidente que Ouros são os mercadores, Copas podem ser os príncipes e Paus os camponeses. Depois inspiro-me na simbologia dos naipes para descrever os arquétipos, não há problema.

Dia 5

Deixa-me dormir

Ainda estou acordado a pensar. Como é que isto se pode parecer minimamente com um jogo? Não sei, mas aposto que das coisas mais divertidas deve ser sacar uma carta do baralho e “vestir” aquele “naipe”. Aliás, seria um desperdício um jogador andar com o mesmo arquétipo do princípio ao fim. Então tem que haver uma maneira simples das cartas rodarem. O jogo tem que fazer isso acontecer a um determinado ritmo. Como? Dado o caderno de encargos, qual é o jogo quase infantil que encaixa aqui? Talvez aquele jogo de memória em que tem de se fazer pares a partir de símbolos escondidos.

O único problema é que vou ter de depender do Anfitrião para fazer o jogo avançar nos casos em que podem não haver cartas do mesmo valor. Mas também não tem que intervir constantemente, pois os jogadores precisam de tempo para irem descobrindo entre si quem tem quais valores. E, de qualquer forma, para garantir o máximo de acessibilidade ao jogo, o papel do anfitrião não só encaixa no tema de festa como é bom estar sempre presente para ajudar os outros jogadores. Grupos mais experientes saberão rodar entre si a função de anfitrião num dos momentos em que se tire uma nova carta do baralho.

Dia 6

Escrever, Escrever, Escrever

Cheguei aquele ponto em que a ideia para um jogo precisa de ser canalizada para algo minimamente pronto, senão vai-me continuar a assombrar. Hoje comecei a arrumar ideias em conversa com a página em branco. O tema parece-me bastante óbvio, mas é bom investir alguns parágrafos em pintar um certo universo, pois muitos leitores precisam disso para agarrarem o jogo. Não pode é ser algo tão detalhado que o anfitrião tenha de estar ali a falar eternamente antes de se poder começar. De qualquer forma, tenho o texto estruturado quase passo-a-passo para que se vá fazendo alguma coisa enquanto o anfitrião explica o que se passa e como se joga.

Também estou a fazer o exercício de escrever no presente evitando usar palavras que mostrem aquele medo de se dizer como é que se joga, aqueles “podem” e “devem” que acabam por fragilizar o texto. Não é “devem tirar uma carta do baralho”, é “tiram uma carta do baralho”. De resto, nesta versão não vou interromper o texto com exemplos, isso fica para quando já souber de casos concretos através de playtesting. Por falar nisso, vou colocar uma secção com uma espécie de crítica ao jogo para o leitor não ter que adivinhar quais são as ideias-chave e ter já previstas algumas questões que possam aparecer durante a sessão.

Dia 7

Só o Texto Importa?

Por mais que se diga que nestas versões não interessam a arte ou a diagramação, já sei que pouca gente vai ler um RPG que não tenha uma “cara”, por isso vou arranjar uma ou duas imagens e fazer um copy-paste bonitinho para o Medium. Também tenho uma música que gravei recentemente que talvez possa usar para fazer um vídeo.

Claro que aquilo que o jogo precisa é de arte para cada arquétipo e, posteriormente, da edição de um baralho de cartas com os nomes da Capela no naipe de Espadas e as instruções para os príncipes, mercadores e camponeses em cada um dos outros naipes.

Para já, o que eu posso fazer é pôr o texto em todos os formatos possíveis e ver como é recebido. Um LARP tem um potencial interessante pela maneira como envolve um número considerável de pessoas a jogar. A nível da licença CC, não sei que derivações se poderão fazer. Suponho que se pode complicar a Capela de Espadas colocando nela muito mais informação. Quanto ao universo, penso que os arquétipos medievais são demasiado fortes, acho que não dá para se jogar numa nave no espaço, por exemplo. Claro que o playtesting poderá sempre suscitar novas ideias, vamos ver.

Design & Teoria dos RPGs é uma série de artigos movidos pela paixão de criar e jogar. Podem ser lidos aqui no Medium e alguns também podem ser ouvidos nesta playlist de vídeos. Partilha os teus favoritos com os teus amigos roleplayers e contacta o autor no Twitter ou através do e-mail jogadorsonhador arroba gmail ponto com.

Ricardo Tavares foi o criador do podcast “Jogador-Sonhador”, o primeiro podcast sobre RPGs em Portugal. Foi também organizador do evento criativo RPGénesis em todas as suas edições e escreveu uma variedade de RPGs, cenários e adaptações. É um dos anfitriões do grupo Roleplayers — Porto que procura promover o hobby dos RPGs nesta cidade. Fez parte da administração do site abreojogo.com (antigo RPG Portugal).

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