Semana 6 — O custo de ser bonzinho

Seane Melo
desleiturasemsérie
3 min readDec 15, 2016
Ilustração: Brett Helquist

No último texto que escrevi sobre Desventuras em Série, contei que duas coisas tinham me marcado muito na primeira leitura, há quase dez anos. A primeira, como vocês sabem, são as experimentações na escrita do autor. Já a segunda é algo que a Laura também notou e escreveu um pouco sobre no texto sobre a releitura do oitavo livro: a complexificação dos personagens.

Mais ou menos na mesma época em que lia a história dos órfãos Baudelaire, séries como Harry Potter, Senhor dos Anéis e O Diário da Princesa também disputavam a minha atenção. Desventuras talvez tenha sido a última que comecei a ler, por isso, a diferença da relação com seus personagens me parecia ainda mais evidente.

O que acontecia era que, por mais que amasse todas aquelas outras histórias e sempre acordasse desejando viver aqueles outros universos, em algum momento da leitura das outras séries me sentia invadida por uma vontade louca de jogar o livro na parede e sair gritando coisas como “SIRIUS BLACK MORREU PORQUE VOCÊ É BURRO, HARRY” ou “MIA, É SÓ VOCÊ CONVERSAR ABERTAMENTE COM O MICHAEL QUE AS COISAS SE RESOLVEM”. Confesso que a minha paciência com o Frodo também não era lá essas coisas, mas com os Baudelaire era diferente. Cheguei até o nono livro sem me zangar com nenhum deles e, curiosamente, sem notar isso.

Em contraposição aos vilões exageradamente malvados, as crianças não contam com a vantagem de um julgamento cristalizado. Mas não é o leitor que coloca a representação do bem e do mal em cheque, são os próprios protagonistas. Além de não contarem com adjuvantes de peso, ou melhor, com aquela ajuda inesperada em momentos decisivos, Violet, Klaus e Sunny vivem se indagando sobre até que ponto não estão se igualando ao famigerado Conde Olaf.

Até o oitavo livro, o azar dos tutores das crianças, das poucas pessoas que tentam ajudá-los e até mesmo de outros que se tornam cúmplices do vilão parece um detalhe que torna a jornada dos três órfãos ainda mais penosa e solitária. Mas, em O Espetáculo Carnívoro, eles não só lamentam mais uma perda como têm de enfrentar o difícil peso de achar que, para pouparem suas vidas, entregaram um aliado a uma morte violenta.

O que parece realmente distinguir os órfãos Baudelaire de outros protagonistas é a capacidade de serem mais espertos que os próprios vilões. Mas quando eles chegam nesse lugar, onde parecem estar a frente dos planos do Conde Olaf, somos obrigados a refletir junto com eles se esse é um lugar que realmente podem ocupar sem deixarem de ser os mocinhos. Afinal, parece que ser bom vem sempre acompanhado de ser meio trouxa.

Pelo nosso cronograma, ontem (14/12) iniciamos a leitura do livro dez, O escorregador de gelo. Semana que vem teremos texto da Laura Mollo sobre a leitura desse livro. Em tempos tão difíceis, em que as desventuras dessas crianças parecem brincadeira perto da nossa realidade, vamos nos unir nessas leituras para tentar segurar as barras de se viver nesse mundão.

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Seane Melo
desleiturasemsérie

Jornalista e escritora maranhense, autora do romance “Digo te amo pra todos que me fodem bem”