Saúde mental, consumo e a nova realidade do século XXI

As novas tecnologias criadas nas últimas décadas mudaram por completo a dinâmica de nossa interação com a realidade, mas essas consequências não são positivas.

Gabriel Goulart
Diários de Kairos
8 min readJun 9, 2018

--

“Tudo tem o seu tempo determinado, e todo propósito debaixo do céu tem o seu tempo.” (Eclesiastes 3:1) — Ecclesiastes Tree, Jennifer Treece

As recentes notícias dos suicídios de Kate Spade e Anthony Bourdain são mais um indício de um problema que vem se agravando cada vez mais na sociedade ocidental do século XXI: doença mental. O suicídio é hoje a 10ª maior causa de morte entre os americanos, e uma das 3 que só crescem, além do Alzheimer e de overdose de drogas. No Brasil, é a 4ª maior causa de morte de jovens entre 15 e 29 anos. Existem muitos fatores distintos que podem levar uma pessoa a cometer tal ato, mas o que vou tentar descrever aqui é uma única origem para este crescente fenômeno — e possivelmente para muitos outros que têm nos assolado nos últimos anos, seja na área política ou cultural.

A origem do problema é na dissonância cognitiva entre nosso mapa da realidade mental e a realidade que nossos sentidos percebem a nossa volta. Cada um de nós tem um modelo de como o mundo funciona em nossa mente, e cada um de nós percebe a realidade muitas vezes de maneiras especificamente distintas, mas no geral muito similares. A diferença entre a realidade da nossa mente e a realidade dos sentidos é o que chamamos de dissonância cognitiva. Na história da humanidade, tal diferença não era tão drástica a ponto de afetar a maneira que convivíamos com o mundo ao nosso redor. Eventos singulares, como a chegada dos europeus em terras indígenas, ou a destruição da sua própria civilização, acarretaram em um aumento dessa dissonância cognitiva por parte das pessoas afetadas por estes eventos, mas estes foram ocasiões muito isoladas, muito porque as pessoas viviam de forma isolada, a maioria em regiões rurais, como viveram boa parte dos humanos no decorrer da história.

Isso começou a mudar no momento do qual a maneira que interagimos com as pessoas mudou. Com a chegada da Revolução Industrial, as pessoas passaram a viver em cidades e a maneira da qual convivíamos com pessoas mudou drasticamente. Da pacata vida do campo à movimentada vida urbana em um curtíssimo intervalo de tempo, de um mundo sem máquinas para ambientes automatizados, dos trabalhos sazonais na agricultura para 12 horas diárias enclausurados em fábricas, tal transformação acarretou em uma mudança na realidade dos sentidos que pode não ter sido seguida pela realidade da mente.

Taxa de suicídios entre sexos por 100,000 habitantes no Reino Unido.

O gráfico ao lado mostra exatamente isso. É visível como o número de suicídios aumentou drasticamente nos anos antecedentes à I Guerra Mundial. Tal fenômeno da época se relaciona ao famoso poema “A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock” de T.S. Eliot. Não farei uma longa análise dele, isso cabe em um artigo próprio, mas de forma resumida, o poema fala de um homem que vive em uma cidade, mas que se sente isolado do resto dos seus concidadãos e é assolado pela sua impotência como indivíduo moderno.

O gráfico também mostra contudo, que a taxa de suicídios caiu de forma abrupta após a II Guerra Mundial, mas esta fase da história é muito singular. A sociedade na época foi impulsionada pelo aumento dramático na taxa de natalidade, uma euforia do pós-guerra, e os tempos de campo já estavam muito no passado.

Isso passou a mudar na década passada com um evento que nos afetou tanto quanto a Revolução Industrial afetou as pessoas de sua época: a adoção da internet. Desde 1999, a taxa de suicídio nos Estados Unidos aumentou em 30%. Neste novo milênio, a civilização ocidental passou a sentir muitos efeitos desta adoção em massa da rede mundial de computadores. Em poucos anos, passamos de comunicações via telefone de baixa qualidade que custavam caro à transmissão de informações quase que instantâneas e grátis — o mundo estava nas nossas mãos, passamos a estar a um clique de distância de qualquer conteúdo que estivesse disponível na internet, a um clique de distância de qualquer pessoa do mundo. Habilidades incríveis é claro, mas para toda boa invenção, há alguém que a use para motivos não tão nobres. Os anúncios passaram a estar presente em todos os cantos, filmes, séries, músicas passaram a ser criadas com o único propósito de nos fazer comprar mais e mais, de nos fazer acreditar em uma narrativa completamente falsa: de que estamos a um objeto de distância de sermos completos.

A felicidade prometida nessas mídias, a sensação de realização que nos foi jurada ao adquirirmos certos produtos não é cumprida. Isso é visível em propagandas de margarina onde famílias tomam cafés da manhã com uma felicidade quase que transcendental. Nessas propagandas, o produto não é a margarina mas sim a felicidade ao consumirmos a margarina. Por mais que possamos dizer a nós mesmos que não acreditamos que margarina irá nos trazer alegria, tal noção de ação e reação é impregnada no subconsciente coletivo das pessoas. Uma mentira contada mil vezes torna-se verdade. A Coca-Cola é um excelente exemplo disso: quantos de nós não gostamos das propagandas de Natal da empresa, e quantos de nós não compramos o refrigerante na mesma época?

Hoje, tudo acabou virando um produto. Alimentação passou ser acompanhada de propagandas. Sentimentos como amor e paixão tornaram-se motivos para consumo — tal qual acontece nos dias das mães, dos namorados e no Natal. A felicidade e a alegria passaram a somente ser alcançadas quando adquirirmos um carro ou tomamos um refrigerante. Viagens deixaram de ser experiências culturais para serem episódios nas pequenas séries das vidas das pessoas — criadas não para uso próprio, mas para satisfazer uma audiência de milhões sedentos por mais doses de fantasias.

O nascimento das redes sociais agravou ainda mais este problema com um fenômeno singular: pessoas, em geral celebridades, transmitindo suas incríveis vidas pessoais para os pequenos dispositivos que carregamos em nossos bolsos. Essas transmissões são diferentes de filmes porque tratam de pessoas reais. De repente, passamos a acompanhar atualizações minuto a minuto de modelos com corpos esculpidos com uma incrível precisão, mostrando quão felizes são suas vidas acompanhadas das barras de cereais X enquanto aproveitam seus dias correndo na praia. De fato, ter um estilo de vida saudável com uma dieta balanceada e exercícios é um fator crucial para uma boa vida. O problema é novamente, a incapacidade da promessa se tornar realidade. Existem limites pessoais a serem respeitados mas que são ignorados: algumas pessoas são incapazes de adotar tal estilo de vida por inúmeros fatores distintos, falta de tempo ou recursos são alguns desses, e assim se sentem desconectados da realidade por não serem como essas pessoas em seus celulares.

Ao tratarmos essas vidas idealizadas como reais, forçamos as pessoas a cometerem sacrifícios reais afim de alcançar o impossível e assim, quando uma parte de suas vidas não está como deveria estar de acordo com esse estilo idealizado, a dissonância cognitiva aparece. O aumento dos índices de depressão e suicídio entre estudantes universitários somente ilustra este ponto. Pressionados para satisfazer todas as necessidades de suas vidas pessoais e profissionais, acabam sacrificando o bem-estar. Não é normal dormir pouco. Não é normal prejudicar a saúde pelo trabalho ou pelos estudos. Não é normal que nossos jovens estejam tomando anti-depressivos. Sobre esse ponto, especificamente para estudantes, recomendo o ótimo artigo da Isabella de Oliveira: Suicídio e Medicina.

Entre 2015 e 2016 estudei na Universidade de Cornell nos Estados Unidos, reconhecida por ser uma faculdade de alta qualidade de ensino, mas também por ter um dos maiores índices de suicídio entre estudantes universitários nos Estados Unidos. O campus da universidade era atravessado por pequenos rios e riachos, assim muitas pontes foram construídas. Eram nesses locais que muitos alunos cometiam tais atos. A resposta da universidade perante a essas calamidades não foi alterar a pedagogia da universidade, não foi diminuir a carga de trabalho ou estudos, foi construir redes de proteção debaixo das pontes. De fato, Cornell oferece também acompanhamento psicológico, mas o fato de terem construído tais redes de proteção só mostra que eles não sabem como resolver o problema. As universidades, que deveriam ser nossa pedra angular de conhecimento e inovação, não passam de cúmplices desta epidemia que pode ter consequências catastróficas para nosso futuro.

As redes sociais nos mostram e nos prometem vidas belas e felizes, mas a realidade é completamente diferente, o que agrava ainda mais a dissonância cognitiva. Se o que eu vejo não representa minha realidade pessoal, então algo está errado, ou é minha mente ou é o mundo, e assim uma camada de incerteza aparece. Passamos a questionar o que de fato é real neste mundo cada vez mais irreal. As instituições, desde o governo até o casamento, não transmitem a mesma confiança como no passado. Não confiamos mais nas notícias porque sabemos que fake news estão por toda parte. A linguagem — o mecanismo mais essencial que conecta nossa mente com a realidade ao nosso redor — passou a ser alvo de uma camada de ambiguidade: estamos nos comunicando por emojis porque perdemos a capacidade de falar diretamente.

Em um mundo de dúvidas e incertezas, nos voltamos às únicas coisas que aparentam ser reais. Trump e Bolsonaro exemplificam isso perfeitamente. Eles são respostas absurdas, fingindo não ser, para um mundo ainda mais absurdo. Na tentativa das pessoas de buscar racionalidade para o irracional, elas se voltam àquele que consegue criar o melhor espetáculo de revolta para essa audiência faminta. Isso, para mim, é o ápice do mundo de consumo: a revolta tornou-se também um produto. Almejamos fugir da vida moderna em busca de contato com a natureza, em busca de qualquer coisa que se assemelhe à realidade e assim nasceram os escoteiros, resorts nas montanhas, filmes e séries como Black Mirror e Into the Wild, produtos que apelam ao nosso desejo intrínseco de revolta, pela nossa noção inconsciente de que o mundo que vivemos hoje de fato não é natural.

O crescimento do autoritarismo-patriótico nos últimos anos é uma consequência deste problema. O problema de termos nos isolado da natureza em conglomerados urbanos, de termos nos distanciado daquilo que nos faz seres humanos, de termos criado uma realidade alternativa em face à essa fuga da natureza, de termos industrializado emoções naturais como amor e felicidade. É reconhecendo as características do problema que a fé passa a ser um mecanismo valioso em um mundo absurdo.

Por fim, a sanidade e a felicidade não são coisas que podemos adquirir, como objetos a serem comprados em qualquer loja de conveniências, mas são estados mentais a serem trabalhados, dia a dia. Exercer a autossuficiência, estar em contato com a natureza, amar a vida pelo fato estarmos vivos, abraçar a irracionalidade dela, aceitar quem somos com todas as nossas qualidades e defeitos são os únicos caminhos para uma vida realmente saudável.

Para receber em primeira mão novos artigos sobre história, filosofia, tecnologia e religião, assine nossa newsletter em diariosdekairos.com

--

--