Festa da firma

Alex Xavier
Discórdia
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8 min readDec 30, 2020

Fim de um ano que nem começou. Leia o conto coletivo que o Discórdia criou para “celebrar”

Os autores do Discórdia: Dani Rosolen, Luci Savassa, Eduardo A. A. Almeida, Filipe Souza Leão, Nathalie Lourenço, Alex Xavier, Renata Py e Camila Cruz

Este ano, calculo cerca de 360 horas desperdiçadas em reuniões virtuais. Nem meus gatos aguentam me ver falando com o notebook. Eles já tentaram miar alto, passar na frente do monitor, deitar no teclado, dar patadas atrás da tela e derrubar copos. Hoje, mordiscam a barra da minha calça assim que me sento à mesa da sala, meu novo escritório. Quando recebo o e-mail do RH me convidando para uma “festa da firma 100% online”, passo o cursor sobre “Recusar”. Nem fodendo. Já basta ter participado de três dos “happy hour” que a empresa inventa em fim de mês, para que a gente se embriague em casa, um falando por cima do outro, até sentir pena da própria imagem e fechar a câmera, torcendo para ignorarem nossa janelinha ali no canto da tela. Sem falar das chamadas de vídeo fora de hora. Que urgência uma startup de panetones pode ter para justificar uma ligação do chefe às seis da manhã ou às dez da noite, às vezes, no fim de semana? Entre fevereiro e outubro, a PaneTOP é uma empresa de marketing apenas, alimentando redes sociais e prospectando clientes. Mão na massa mesmo só a partir de novembro. Recuso? Ainda pedem para vestirmos branco e simular uma contagem simbólica de Ano Novo. Cruzes! Vou recusar. Logo abaixo, porém, há outro e-mail não lido, do Valdécio, o dono da porra toda. “Margarida, conto com você para agregar a equipe nessa celebração após um ano tão difícil para todos nós”. Ele promete enviar um kit de panetone faça-você-mesmo para cada funcionário, acompanhado de uma garrafa da cerveja artesanal que ele mesmo produz com seus dois sócios, a IPA Brodagem. Que horror. O pior fica para o final. Segundo ele, essa interação é importante, pois, assim que voltarmos do recesso, caberá a mim, gerente de Atendimento, eliminar cinco pessoas da folha de pagamento. Um dos gatos finca os dentes no meu calcanhar. E eu deixo.

Hoje tem festa da firma, vai ser on-line. Eu vesti essa camisa branca que eles pediram. Tive que comprar uma nova, afinal, devo aparecer bem na tela. Arrumei o fundo também, coloquei balões dourados, uma minichampanhe para aparecer no canto inferior esquerdo ao lado do panetone faça-você-mesmo que enviaram a cada funcionário. O champanhe, mesmo sendo mini, foi mais caro do que a camisa e os balões juntos, mas quero fazer tudo certinho este ano. Mandei a esposa e as crianças ficarem na casa da avó Bia, prendi o Guga na área de serviço para não fazer barulho. Não posso estragar nada. Ano passado, seu Valdécio falou que tinha tentado de tudo, mas sabe como é, tiveram as mudanças de governo e tal, instabilidade econômica. Muito sábio ele, até me disse assim, lembro direitinho: “Augusto, meu caro, você é um ótimo funcionário, o melhor da casa” — nessa hora veio até um frio na barriga. “Este ano a PaneTOP cresceu bastante, investimos bem em infraestrutura, só essa cafeteira da minha sala custou mais de três mil reais, fora a manutenção mensal e as cápsulas. Então, te peço mais um pouquinho de paciência, sua promoção vai sair, você já está até realizando as novas tarefas, não é mesmo?” Passei 2020 com muito FOCO, FÉ e FORÇA, os valores da firma. Vou fechar este ano com chave de ouro e começar o novo com grana no bolso, com a glória de Deus, nosso Senhor. Seu Valdécio faz a abertura da festa, falando como 2020 foi difícil para a PaneTOP, queda no faturamento, demissões, mas que com esse time guerreiro e os cortes de salários, 2021 vai ser bem melhor. Fico emocionado, foi mesmo um ano difícil para todos nós, ele disse, inclusive, que não pode mandar o Jr. para o intercâmbio na Europa. Pois é, essa pandemia afetou a todos nós, misericórdia.

Depois de tudo que passei neste 2020, salário cortado e trabalhando da mesa da cozinha, com uma conexão capenga, dividida com meus dois filhos, que estão fazendo o ensino médio online, talvez o que eu mais desejasse no fim do ano fosse colocar as angústias para fora em uma festinha, beber demais e curtir com meus colegas de trabalho. Mas online, porra? Sem condições. Decido bancar a louca mesmo e usar uma estratégia inventada por Mariana, a minha caçula, nas aulas de física. Assim que o relógio marca 19h, início da confraternização virtual, coloco em frente à tela um manequim da loja do Zé. Enquanto eu engordo horrores comendo de outubro a janeiro os panetones da PaneTOP, meu marido tem uma loja de roupas esportivas. Mas é isso, coloco o manequim ultrarrealista na frente da tela e nem me importo que seja uma figura pouco parecida comigo. A cor do cabelo é o que mais denuncia, na verdade. A boneca é loira e eu sou morena. Foda-se. Se perguntarem, falo que tingi o cabelo só para a festa e que não interagi porque minha câmera estava travando. Depois de cinco minutos da “festança”, acho que ninguém percebeu a minha ausência. Ou melhor, a minha presença travestida. Margarida inclusive me mandou mensagem privada no chat, dizendo que gostou da mudança de visual. E Augusto, como sempre, veio com aqueles xavecos impróprios. Acho que posso ficar despreocupada e aproveitar, longe das telas, o panetone que enviaram e a bebidinha sem graça da Brodagem. De graça, até injeção na testa. Aliás, injeção é o que eu mais desejo para 2021. Injeção, não, vacina. Mas acho que dá no mesmo.

Não chamaram terceiros. Valdécio não chamou. Filho da puta. Sou terceiro há tanto tempo nessa merda de companhia que, se bobear, sou mais primeiro que ele. Tempo suficiente para ter todos os acessos à rede e pegar um link para participar. Os novatos aí chamam de startup, mas até dois anos atrás era Padoca Val Ltda., fazíamos pão de cachorro-quente para estádios de futebol. Pão que nem cachorro comia, diga-se de passagem. Sou da época em que existia futebol no Brasil. E meu panetone é marca Dia, minha cerveja é Itaipava. O ano foi ruim para todo mundo, mais ainda para terceiro sem décimo terceiro. Fiquei pensando se achariam estranho eu estar na festa. Não, todo mundo me conhece. Talvez passaria em branco até pelo Valdécio. Por isso, separei uma camiseta preta. Por isso, mantive as calças na gaveta. Hoje vou requerer minha aposentadoria. E vai ter até festa para comemorar.

Ano bosta, festa bosta, música voz e violão mais bosta ainda, ninguém sabe o que fazer em frente à câmera, todo mundo de copo cheio. Ixi, e agora começou um vídeo cheio de fotos da equipe TOP PaneTOP. Era só dar na mão do carinha das redes sociais aqui fazer, até no Powerpoint ficava melhor do que essa porra. As garrafas de cerveja artesanal do patrão já foram, abri as que paguei do meu bolso. Mais duas horas assim não rola, pura depressão. Deve ter alguma coisinha pra alegrar por aqui. Fundo da gaveta, fundo da gaveta, saquinho, doce, aeee, um pra derreter. Agora sim, olha a cara de filho da puta do Augusto, a vaca da Margarida, calor, calor, tirar a camisa, do pé que brotou Maria nem margarida nasceu. Tinha um enrolado por aqui também, achei, se perguntarem é cigarro de palha, de palha. Por que a câmera da Juju, vulgo minha chefe, linda ela, tão bonito o rosto e o corpo e tudo, tá desligada? Juuuu tudo bem por aí? Tá curtindo? Boa ideia, boa ideia. Se estranhar o approach é só dizer que tava meio alto depois. Cuidado, digitando, Oie :) Tá uma tristeza, né? Mas parece que você tá curtindo. Calor por aí? Hahahaha. Vixe, maravilhoso 7,6% de teor alcoólico da cerveja, patrão, Juju tá soltinha. Não tá calor por aí também, chefinha?

Quando planejei essa festa inovadora, tive receio de que não fizesse jus à minha fama de grande anfitrião e líder popular, que todos fazem questão de seguir. Tinha certeza de que compareceriam em peso, isso sim, mas me preocupei com a diversão. Sem o olho no olho, sem o contato físico, sem o espírito descontraído da Chácara “Paraíso do Val” em Ubatuba, — endereço sagrado das últimas cinco festas de fim de ano da PaneTOP — , o evento poderia ser um fracasso. Mas agora que já estamos próximos da contagem da Virada, percebo que tudo correu bem. Meu discurso de abertura foi um sucesso, arrancando lágrimas e aplausos, minha IPA Brodagem está na lista de bebidas favoritas dos funcionários e os novos PaneTOPs veganos de azeitona com maracujá e passas são de lamber os beiços! Margarida está radiante, Regina até tingiu o cabelo, Augusto me mandou mensagem parabenizando e agradecendo por tudo, Juju está rebolando na câmera, quem diria… Ronaldo tirou a roupa! É isso mesmo, Ronaldo? Eita! A festa está esquentando! Um sucesso, um sucesso!

Maldito Catho Online. Paguei assinatura por 5 meses e só consegui vaga de estágio nessa biboca. Sorte mesmo teve a Katarina, a empresa dela levou todo mundo pra um resort em Porto Seguro, onde cada um pode sair do quarto uma hora por dia pra aproveitar com muito distanciamento social. Enquanto isso, eu tenho que ficar aqui dando tchauzinho na câmera de dois em dois minutos pra mostrar que tô aqui mesmo. Sem falar que sobrou pra mim fazer o vídeo horroroso da Equipe Top PaneTOP e compartilhar da minha tela. Alô, Valdécio, a vaga não exigia conhecimento de edição de vídeo. Pelo quanto pagam eu não devia saber nem digitar. Pior é aguentar isso sóbria, porque a primeira coisa que meu pai fez foi confiscar as duas garrafas de IPA Brodagem que mandaram. Agora que o pessoal começou a dar vexame deu uma melhorada. É print screen atrás de print screen. Já tenho da Juju mamadaça, da bunda peluda do Ronaldo, do Augusto chorando depois que o chefe ignorou as cinco indiretas que ele deu sobre aumento. Será que configura prova de assédio sexual e assédio moral? Será que é suficiente para um processinho? Pelo menos sairia desse estágio fuleiro com um pezinho de meia. Depois eu penso nisso, por enquanto vou salvando tudo numa pasta chamada “Plano B”. Agora o bicho tá pegando. Hora de compartilhar a tela de novo. Dessa vez vai ser beeeeem melhor do que o vídeo. O pessoal vai a-do-rar saber a lista de pessoas que o Valdécio escolheu pra demitir dia 4. Ninguém mandou me delegar a função de colocar os nomes nos templates de demissão. Isso não estava no meu job description. Tenho certeza. Até hoje guardo o print da vaga do Catho Online.

Parece que a única que não tomou a IPA Brodagem adulterada foi aquela estagiária nova. Menos mal, ela certamente não vai criar problemas com a sua sobriedade. Devia me doer eu acabar com a festa desses pobres no auge da animação, mas acho é graça. E por mais que eu queira ver a gostosura da Juju rebolando, vou ter que finalmente me apresentar. Me surpreende o Valdécio, que desde o início sabia de tudo, parece que entrou na fantasia da fábrica dos panetones. Vai entender o psicológico das pessoas. Mal sabem que provavelmente a polícia já está na porta de cada um deles. Devo ter no máximo mais cinco minutos para comunicar, me desculpar e cumprir fuga. 3, 2, 1… “Olá, Pessoal! Sou o Eduardo, vocês já devem me conhecer da televisão. Para aqueles que não me conhecem eu sou o verdadeiro dono dessa empresa. Quero que saibam que eu nunca soube de nada sobre a gestão dos negócios, entrei apenas como investidor, fui enganado pelo Valdécio. Sou honesto, bato no peito com o juramento da minha religião. Fui enganado, como todos vocês. Nunca imaginei que a PaneTOP é uma das maiores fachadas de empresas criadoras de fake news da história. Augusto, não foge… Você foi o único que não foi enganado, sabia de tudo desde o início. Juju, minha querida, olha o seu WhatsApp, se você sair dessa, siga as instruções, deixei você bem amparada. Epa, espera, vocês não podem me pegar. Eu não sabia de nada. Valdécio, para de rir, conta pra eles.

Este conto foi escrito pelos oito integrantes do Discórdia. Siga-nos também no Facebook e no Instagram.

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Alex Xavier
Discórdia

Jornalista e escritor. Mas queria ser escritor e jornalista. Autor dos livros O teatro da rotina e Não vai dar tempo (ambos da editora Patuá)