A COPA EM VINTE DIAS #13

O fotógrafo de Deus

O fotógrafo argentino que se atrasou para uma partida da Copa de 86, e registrou uma das fotos mais famosas do futebol.

Drible da Vaca
DribledaVaca

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Por: Vitor Magalhães

Em 1966, nascia uma rivalidade que perdura até hoje: Argentina x Inglaterra, como já foi narrado em um texto anterior. Dezesseis anos mais tarde, entre abril e junho de 1982, os países travaram uma sangrenta batalha pela posse dos arquipélagos austrais das Malvinas. Os ingleses saíram vitoriosos da então “Guerra das Malvinas”, após a morte de mais de 600 soldados argentinos. Em 86, o México seria palco de uma nova batalha entre as nações, dessa vez, dentro de uma cancha. Na chegada ao estádio eram visíveis alguns cartazes com dizeres como “Las Malvinas son Argentinas”. Os argentinos venceram a partida por 2–1 com dois gols de Maradona. Dois dos mais famosos gols da história das Copas: La Mano de Dios” e “El gol del siglo”. Vingando na bola, a trágica derrota bélica sofrida quatro anos antes.

O zagueiro Roberto Perfumo falou em entrevista ao The Guardian em maio de 2002, sobre o sentimento que o povo argentino carregava naquela partida:

Em 1986, vencer aquele jogo contra a Inglaterra era o suficiente. Vencer a Copa do Mundo era secundário para nós. Bater a Inglaterra era nosso verdadeiro objetivo”.

Maradona mítico // Eduardo Longoni

Quando ouço a palavra “efêmero”, lembro da frase: recordar é viver. As efemeridades são essenciais à vida, e ao futebol também; servem para nos lembrar de caminhos tomados e glórias alcançadas, ou como não repetir posturas em tempos de derrotas amargas. São ferramentas usadas por saudosista, que resgatam na memória esses momentos, às vezes, singulares. Algumas efemeridades nunca serão mais do que isso, estarão para sempre paradas no tempo, perdidas e sem registros.

Por sorte, o fotógrafo argentino Eduardo Longoni, não permitiu que um dos momentos mais marcantes e efêmeros da história das Copas, se perdesse. E como que por um empurrãozinho de Dios, registrou o ocorrido que será narrado a partir de agora.

Em 1985, a Cidade do México sofreu um dos maiores terremotos de sua história, que matou milhares de pessoas e deixou outras centenas de milhares desabrigadas. O local já era conhecido mundialmente por ser um dos centros urbanos mais colapsados em termos de locomoção pública. Multidões de gente tentando se movimentar ao mesmo tempo e engarrafamentos, eram cenas de dia um típico na metrópole. Um ano mais tarde, a cidade tornaria-se a primeira a sediar duas Copas diferentes.

Eduardo Longoni

Nas quartas de final daquele Mundial, o argentino pretendia chegar cedo ao local do jogo para garantir um dos melhores lugares do gramado. Longoni, saiu do hotel com tempo suficiente para chegar ao Estádio Azteca, onde Argentina e Inglaterra se enfrentariam, mas a Cidade do México tinha outros planos para ele. O fotógrafo levou cerca de três horas para percorrer os quatro quilômetros que separavam os dois lugares. Você deve estar se perguntando: “mas por que ele não seguiu o caminho a pé?”, afinal eram apenas 4 km. Bom, naquele tempo os equipamentos fotográficos eram diferentes dos atuais. Longoni carregava um baú que continha o seu laboratório “portátil” — por assim dizer — , para revelar suas obras imediatamente após a partida. Na ocasião, o peso dos equipamentos fotográficos dificultou uma possível caminhada ao estádio.

Na chegada ao Azteca, sentou-se no único lugar que lhe restara, atrás do gol. Suas chances de garantir um bom registro fotográfico daquela posição eram quase nulas. Longoni acomodou suas duas câmeras, uma para fotos de longo alcance, e outra para fotos de curto alcance, e tentou fazer o melhor que pôde daquele canto, até então, esquecido da cancha.

Quando a Mano de Dios aconteceu, o fotógrafo contou em entrevista detalhes do momento em que, na velocidade de um clique, garantiu que aquele momento se tornasse eterno.

“Eu tinha o olho na câmera que estava com a lente curta, quando todo mundo estava usando a lente longa. Porque foi uma jogada rápida, confusa. Houve um chutão e a bola ficou pairando aí. A maioria dos fotógrafos, eu acho, abaixaram a câmera porque era uma foto em que o goleiro vai agarrá-la e o atacante pula desnecessariamente. E eu não tirei o olho do lance. E vi essa cena estranha. Disparei. Sabia que algo tinha acontecido, mas foi muito rápido. Disparei de novo.”

Na hora de revelação no quarto escuro, Longoni viu emergir aquela imagem que conhecemos hoje. Aonde não havia nada, de repente estava Maradona com o punho cerrado, disputando a bola com o goleiro inglês. O efêmero estava ali, lhe saltando os olhos.

A famosa foto de Eduardo Longoni

Ele então percebeu que todas as casualidades que o levaram até aquele momento foram obras divinas. Como se Deus pedisse para ele estar lá, no “pior” lugar possível e no momento do lance improvável. Longoni se refere ao registro como “uma foto nascida do erro”. O erro aqui referido é a circunstância que o levou a estar naquela parte da cancha na tarde de 22 de junho de 1986.

Foi um gol sujo. Quando Maradona socou a bola, era como se ao mesmo tempo golpeasse a rainha da Inglaterra e todos os seus súditos, e devolvesse ao povo argentino toda a sua dignidade e orgulho. Apesar do lance ser ilegal, a história do fotógrafo de Dios existe por isso, o que nos leva a perceber que há momentos em que o futebol não cabe na regra.

Entrevista com o fotógrafo de Deus - (Em espanhol)

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Drible da Vaca
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Perfil destinado à divulgação do futebol sul-americano. Autor: Vitor Magalhães. E-mail: oficialdribledavaca@gmail.com