Histórias de um educador incansável

Uma carta para o Zé

Alex Bretas
Educação Fora da Caixa
18 min readDec 16, 2015

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José Pacheco é um dos educadores responsáveis por transformar a Escola da Ponte, em Portugal, em uma referência internacional de educação emancipadora. Hoje, vive no Brasil e colabora com o Projeto Âncora, em Cotia, SP, além de fazer parte de diversos movimentos de transformação educacional.

Fonte: Unisuam News.

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São Paulo, 16 de dezembro de 2015,

Tiros pontiagudos, pressão, medo do que escapa, morte certa. Gatilhos de fuga, debandada, força interior, um furacão de sentimentos controversos. Resistência, re-evolução, resiliência, respiração, ofegante, sensação de que lhe falta o ar, e o chão. Passos de botas ao som da voz de Zeca Afonso em “Grândola, Vila Morena”. Portugal, 1974: um mundo de viveres e dúvidas interno conectado adrenalisticamente a um mundo de inconsistências e raivosidades, externo. Vontade incontestável de mudança. Histórias de quem sentiu na pele os horrores da vida bélica, mas também os encantamentos humanos que surgem também nos cenários de guerra. A humanidade penetra até nos lugares mais insalubres. “Causos” que se fazem no limiar entre o épico e o lírico, mas o épico me interessa menos. O que me fascina é perceber como experiências tão tensas e marcantes se refizeram em você e contribuíram para te humanizar, ao invés de te deturpar.

Zé, fui pego por uma avalanche no dia em que ouvi você narrando os episódios que lhe ocorreram durante a Revolução dos Cravos. Eu estava cursando a pós-graduação em Pedagogia da Cooperação e Metodologias Colaborativas e esperava ansiosamente pelo seu módulo. Fizemos uma roda, era domingo. Mesmo com uma tragédia familiar recente, você e a Claudia, sua esposa, fizeram questão de comparecer. Sentamos para ouvir suas histórias, mas a mente e os cabelos ficaram de pé. Meu caro, o que se passava na sua cabeça e em seu coração naquele 25 de abril? Tentei reconstituir no início desta carta (com toda minha ignorância) um pouco do que, lá, estava vivo para você. Se, por um lado, foi isso que tentei fazer, talvez o que eu tenha realmente conseguido seja somente relatar o que se acendeu em mim ao lhe escutar.

(Outra coisa que também tentei e não consegui foi encontrar minhas anotações daquela nossa roda de conversa… Além disso, não aprendi nada sobre a Revolução dos Cravos na escola, ainda que talvez tenha decorado uma ou duas informações quando esse conteúdo caiu na prova de história. Logo esqueci, como você sabe bem. Tudo isso fez com que eu precisasse, agora, ler e buscar sobre o assunto para que fosse capaz de contar minimamente essa história aqui. Perdoe-me por não dominá-la, mas acredito que você entenderá minhas razões.)

Ao que me lembro, você foi soldado do Movimento das Forças Armadas (MFA) e contribuiu para fazer a Revolução dos Cravos acontecer. A senha para o início da revolução foi dada à meia-noite por uma estação de rádio, e o poema de Zeca Afonso entoou o caminho rumo à mudança que se queria ver. O regime salazarista não tinha mais vez, e Portugal começava a ser pensado de outro jeito. Pelo que li, foi nesse período que Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau, todos até então colônias portuguesas, obtiveram independência. Antes de se ocupar com o desenvolvimento da autonomia em crianças e jovens, Zé, você ajudou países a conquistá-la.

Você não costuma compartilhar muito sobre esse período, pelo menos não nas vezes em que estivemos juntos. A Escola da Ponte e, mais recentemente, o Projeto Âncora tomam quase todas as atenções. A primeira talvez seja o berço de sua “loucura com alguma experiência prática”, e o segundo representa o transbordamento do aprender para muito além da instituição escola, a partir da noção de comunidades de aprendizagem. No terreno da educação, ambos representam caminhos muito necessários para uma narrativa de mundo mais próxima daquela que queremos. Uma narrativa que espelha os princípios do projeto da Ponte: solidariedade, responsabilidade e autonomia.

Ainda assim, quis trazer um pouco dos enredos revolucionários porque a partir deles descobri que, além de um hábil contador de histórias, você também vivenciou muito intensamente várias delas. Talvez, no limite, este seja um dos segredos de quem conta boas histórias: tê-las vivido.

Perguntas que dão coerência

Além de propagar sua sabedoria por meio de histórias, você também utiliza perguntas. Ou melhor, estimula as pessoas que vão até você a fazerem perguntas. Zé, foram bem poucas as vezes em que te vi fazendo discurso pronto, palestra pré-planejada. Tudo é arquitetado na relação sua com quem te encontra em eventos de educação, escolas e conferências. Admiro muito isso em você, especialmente porque é de coerência que estamos falando. Sei que você acredita que todo ato de aprender começa pela pergunta; se as pessoas querem aprender ao se encontrar contigo, que aprendam com você e não que sejam ensinadas por você. Ao fazer a escolha por uma interação com perguntas desde o início, o ambiente se transforma: de uma palestra expositiva caminhamos rumo à aprendizagem imprevisível.

Quando me perguntam porque eu optei pelo caminho do doutorado informal, geralmente o que respondo é que foi por coerência. Não queria aula forçada, queria diálogo aberto. Ao quase “conseguir” entrar num programa de pós-graduação, a luz que piscou em minha cabeça sinalizava prudência. Em seu Dicionário de Valores em Educação, eis o primeiro parágrafo que você escreveu sobre a prudência:

O Guardian publicou um estudo da London School of Economics, no qual se defende que o principal objetivo das escolas deve ser o de ajudar a criar pessoas bondosas e felizes. Para esse fim, talvez as escolas devam adotar um modo de funcionamento assente num relacionamento que eleja a estética da sensibilidade, estimulando o espírito inventivo no lugar da mesmice das aulas, habituando o jovem a conviver com o incerto em substituição da reprodução mecânica de um planejamentos de professor. E, sobretudo, jamais separando o desenvolvimento da cognição do desenvolvimento da afetividade. Podemos aprender sem dor. Bastará que a prudência seja posta no ato de educar. E, se a virtude pode ser ensinada, será mais pelo exemplo do que pelos livros.

Acho muito engraçado (é rir para não chorar) pesquisadores da prestigiada London School of Economics terem precisado de um estudo para chegar à conclusão que chegaram. Talvez seja porque extirparam de nós a capacidade de filosofar; felizmente, estamos relembrando como se faz. Se ser prudente é algo próximo de ser sensato, não é difícil perceber que perdemos a sensatez nos processos de ensinagem que se verificam hoje na maioria dos ambientes escolares. Frequentemente vejo você dizendo que não há qualquer base científica para práticas dadas como certas hoje na educação: aulas de 50 minutos, provas, séries, turmas, disciplinas… Para mim, além da falta de base científica, essas tradições também não carregam preocupação ética. Os projetos político-pedagógicos das escolas são todos muito bonitos e com palavras fortes e bem colocadas, mas a distância disso para o que se vê em suas práticas cotidianas é abissal. No mesmo Dicionário de Valores, você também escreveu assim:

Li (já não sei onde) que a ética assemelha-se a uma reta: a menor distância entre os pontos A e B, onde A é o Ideal e B, a Ação. Deveremos tolerar a incoerência entre o pensar e o fazer, ou aceitar a necessidade de fincar barreiras perante procedimentos moralmente contraditórios?

Além de fincar barreiras, precisamos fincar bandeiras. Em suas peregrinações pelo Brasil e pelo mundo, vejo que você, Zé, está hasteando uma bandeira por uma educação verdadeiramente emancipadora. Aquela que sai do ponto A e chega no ponto B sem fazer curvas, que trabalha por um mundo ideal calcado na harmonia da vida e no desenvolvimento humano sustentável. Isso acontece na medida em que nutrimos a autonomia e a corresponsabilidade. E esses valores só podem ser cultivados em ambientes onde todos sejam vistos em sua liberdade e considerados em sua capacidade de discernimento.

A pergunta essencial: o porquê

Queria te pedir licença, Zé, para compartilhar mais histórias suas com quem nos lê. Tendo vivido uma infância pobre, sei que você chegou a viver num cortiço, mas sei também que conheceu um senhor bastante culto, já idoso, de quem muito se aproximou. A educadora Maria Antonia de Oliveira me contou que vocês gostavam muito de conversar, e ele te emprestava livros e incentivava seu gosto por música. Como a Maria disse, esse senhor pode ter sido seu primeiro mentor, alguém essencial para que criemos força e resiliência especialmente em momentos difíceis como os que você viveu.

Ao começar a frequentar a escola pública, já vi em entrevistas você dizer que se sentia excluído e humilhado. De engenheiro eletricista foi parar na educação por vingança, e prometeu a si mesmo que toda criança realmente aprenderia com suas aulas (e não passaria pelas mesmas situações traumáticas que você passou). O problema, você percebeu quando se tornou professor, estava justamente no fato de dar aulas. E esta foi só a primeira ficha que caiu de uma série de várias outras, atraídas pela gravidade dos questionamentos que você se fazia. Não foi um percurso solitário: você tratou logo de encontrar alguns educadores que compartilhavam dos mesmos incômodos. Foi logo depois de ter atuado na Revolução dos Cravos que essa sua nova jornada começou, numa escola nos arredores da cidade do Porto. Eis o que coletei de dizeres seus sobre as transformações da Escola da Ponte:

Nós abandonamos o sistema de turmas, porque ninguém nos explicou o que era uma turma, e muito menos uma turma do lixo [referência a uma turma a que eram direcionados somente os “piores” alunos da escola]. Deixamos de ter séries, porque se compreendemos que cada ser humano é único e irrepetível, não fazia sentido haver séries. Deixamos de dar aulas, porque é inútil dar aulas para um aluno médio que não existe. Deixamos de fazer prova porque a prova não prova nada. Deixamos de ter padrões de tempo, toques de campainha, porque entendemos que a normalização só fazia sentido no século XIX, na primeira industrialização. Deixou de haver livro ponto, deixou de haver manual igual para todos, deixou de haver o trabalho do professor sozinho, o professor passou a trabalhar em equipe. E tudo isso ao longo desses trinta anos.

Em 2016 o repensar da Escola da Ponte completa 40 anos. Queria te contar, Zé, como foi para mim quando fiquei sabendo pela primeira vez o que vocês fizeram por lá. Eu ainda estava na faculdade em Minas, e muito embora não cursasse pedagogia, meu interesse por educação aumentava ano após ano. Comecei a atuar como representante discente e a organizar seminários acadêmicos, até que a coordenação do curso me convidou para ajudar a pensar uma reforma curricular. Meu papel seria envolver os alunos nas discussões. Quase ninguém se envolveu. Não havia espaço real para propor nada que de fato mudasse alguma coisa, e os alunos já haviam se acostumado com a passividade e a monotonia das aulas em forma de monólogos.

Em paralelo, minha companheira Ana, que já morava em São Paulo, me disse que iria fazer uma formação em educação democrática numa escola chamada Politeia. Achei interessante, mas passou batido num primeiro momento. Até que, ao visitá-la, me deparei com a apostila do curso com uma enorme quantidade de textos de gente como Leon Tolstoi, Yaacov Hecht e… José Pacheco. À medida que eu começava a lê-los, meu coração acelerava como se eu estivesse cara a cara com um baú do tesouro. Minha primeira reação foi tentar fazer algo com aquilo dentro de onde eu estava — no ensino “superior”. Escrevi e publiquei artigos sobre o assunto e tentei mais uma vez mobilizar os alunos, sem sucesso. E os artigos foram parar em algum periódico que ninguém lê.

Continuei escavando os tesouros da aprendizagem livre, e tudo fez sentido quando decidi começar o percurso que culminou na publicação deste livro. Logo no início desse caminho fui conhecer o Projeto Âncora a convite seu. Que felicidade a minha ao perceber que uma iniciativa do mesmo quilate da Escola da Ponte estava florescendo por aqui. As crianças fizeram a apresentação do espaço e deram a sua perspectiva a respeito de como viam a educação que se fazia ali. Me entusiasmei com muitas coisas, mas principalmente por ter presenciado a vivência real dos princípios defendidos pela escola. Havia coerência! Também me encantei com a preocupação do projeto em nivelar os salários de todos os membros da equipe, da faxineira à coordenadora. (Confesso que não sei como anda isso atualmente por lá. Poderia me esclarecer, Zé?) Na verdade, essa questão dos salários me acertou como uma flecha: se realmente acreditamos que cada ser humano tem uma contribuição singular e a exerce por meio de seu trabalho, por que toleramos recompensas monetárias distintas? Por que mesmo é que o responsável pela limpeza ganha menos que o professor? E se escavássemos esse porquê? O que mais me salta aos olhos nisso é a coragem de vocês de se perguntarem esse tipo de coisa.

(Coragem tão necessária para despertarmos de uma realidade dada como certa, nada vai mudar, tudo vai ser sempre do mesmíssimo jeito. Lembrei quando você fala das três síndromes que o Brasil padece em se tratando de educação: a Síndrome do Pensamento Único, que nos faz achar que só há uma maneira de se fazer as coisas, a Síndrome do Viralata, segundo a qual acreditamos que tudo que é bom vem dos “pedigrees” de fora, e a Síndrome de Gabriela, que se ouve na música “eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim…” Pode até ser que a generalização não seja verdadeira, mas fato é que quando muita gente começa a detectar num povo essas características, é porque algo não está certo.)

Fonte: Nordestina Desvairada.

Perguntar os porquês talvez tenha sido a principal estratégia que levou você e seus amigos portugueses a reformularem a Escola da Ponte, estou certo? Acredito que o mesmo mecanismo também foi essencial nas transformações vividas pelo Projeto Âncora. Na verdade, ousar os porquês mais difíceis em situações nas quais às vezes nunca sequer paramos para refletir é fundamental em qualquer tentativa de mudança.

Ao resgatar as três síndromes, minha memória acabou acessando também um trecho do livro de Yaacov Hecht, “Educação democrática: o começo de uma história”. É quando ele se embasa nos autores Paul Watzlawick, John Weakland e Richard Fisch, que abordam as três formas de não se resolver problemas:

“1) Negar que o problema existe: ações são necessárias, mas nada é feito. “Nós não sofremos disso na nossa escola”; “não vamos exagerar, nós todos somos produtos do mesmo sistema”; “seja o que for, está desse jeito agora e assim permanecerá, nós não temos controle sobre isso”.

2) Tentativas de resolver problemas que não podem ser resolvidos ou que sequer existem: ações são tomadas onde não são necessárias. Mudanças são feitas nas escolas como parte de uma corrida sem foco em busca dos novos modismos educacionais; as inovações às vezes até se contradizem entre si. Como resultado, assistimos a uma enxurrada de projetos que acaba sufocando as escolas.

3) Quando as soluções acabam se tornando problemas e nós tentamos consertar as coisas com “mais do mesmo”: mais autoridade, mais disciplina, mais provas, voltando assim ao velho modelo que já conhecemos”.

Acredito que as três estratégias acima são fabricadas ou pela nossa falta de reflexão sobre os porquês, ou pelo nosso medo de enfrentar as consequências uma vez sabendo deles. Quem sofre da Síndrome do Pensamento Único acaba remediando o problema com mais do mesmo problema, porque não consegue ver as questões sob outro ângulo; quem foi pego pela Síndrome do Viralata importa tendências de fora para problemas inventados e superficiais, que não foram objeto de análise profunda; e quem tem Síndrome de Gabriela simplesmente nega que os problemas existem, afinal, “tudo vai ser sempre assim”. Como fazer para superar esses vícios e enfrentar o que precisa ser enfrentado, Zé?

O poder redentor das histórias

Além de conjugar os porquês da realidade que se conhece, um outro passo importante para transformar a vivência escolar tem a ver com conhecer outras realidades, outras referências. Um dos referenciais que você costuma apresentar a quem se dispõe a “aprender a recomeçar” é a leitura dos quatro pilares da educação segundo a Unesco. A partir daí, quem habita a escola percebe que

“o “aprender a conhecer” não acontece, pois há 14 milhões de analfabetos funcionais. Leem o “aprender a fazer”, o “aprender a ser”, o “aprender a conviver”, mas lembram que professores são assassinados, que há o bullying e xingamento nas escolas.

Mas, os quatro pilares podem ainda não ser o bastante. E então você fornece mais três que, junto com o “recomeçar”, conformam a estratégia da Ponte:

  • Aprender a desaparecer: para dar o espaço necessário à vivência da autonomia;
  • Aprender a desaprender: para se dispor a aprender junto, ao invés de “ensinar o certo”;
  • Aprender a desobedecer: para que as leis não se tornem barreiras a uma ética educativa que preza a independência e a solidariedade.

Outro jeito de ter acesso a novas referências de educação é por meio de histórias, coisa que, como já disse, você explora muito bem. Vou recontar aqui algumas das que ouvi de você e que mais me inspiraram, começando pela dos meninos da Fundação Casa.

Certa vez, sete jovens da Fundação Casa, com idades entre 13 a 18 anos, foram parar na Escola da Ponte. Os adolescentes tinham um histórico pesado jogando contra eles: tráfico de drogas, prostituição, assalto a mão armada e até assassinato. Um deles, ao agredir um professor, fez com que ele entrasse em estado de coma. Eles chegaram na Ponte acompanhados por uma equipe composta por policiais, psicólogos e outros profissionais que conformavam uma verdadeira escolta. Ao serem apresentados à escola, você os perguntou:

— O que é que meus amigos querem saber? O que vocês querem fazer? Estas não eram perguntas que eles tinham se acostumado a ouvir nas outras escolas que haviam frequentado, mas você as fez. Ficaram desconfiados.

Aqui a gente pode fazer o que quer?

O mais novo dos meninos disse então que queria trazer uns pássaros para a escola. Na Febem os bichos eram maltratados e ele queria tirá-los de lá.

Mas, onde você vai colocar os pássaros?

Após você perguntar isso, o mais velho disse que sabia fazer um viveiro de pássaros, herança de seu tempo trabalhando na construção civil. Assim, todos toparam arregaçar as mangas e iniciar a empreitada.

Naquele ponto os jovens, com as suas provocações, já haviam chegado a uma intenção, a uma ideia de projeto e composto uma equipe.

Como é esse viveiro?

Para concretizá-lo era preciso saber sobre planta, mapa, escala… Assim, começaram logo a listar tudo que necessitavam saber para tirar a ideia do papel.

— Do que ele é feito?

— De base de metal e cantoneira de alumínio.

— E quanto de cantoneira vai ser necessário? Quanto vão gastar para comprar? Qual vai ser o custo da obra? Quantos metros? Vai ter uma tela? Qual o tamanho da tela?

Conteúdos de matemática foram entrando na lista: medições, cálculo de área, finanças…

— Que pássaros são esses, o que eles comem, qual seu habitat?

Conteúdos de biologia e geografia também. Ao final de meia hora, os meninos haviam construído um roteiro de estudos com 74 tópicos do currículo nacional.

Em nove dias, aprenderam sobre o viveiro e trabalharam nele. Os educadores se tornaram mediadores, ajudando a selecionar, analisar, criticar, comparar, avaliar e comunicar informações, com o intuito de transformá-las em conhecimento útil para fazer o viveiro.

Após terem atingido o objetivo, toda a escola celebrou junto com os meninos a vinda dos pássaros, que logo se habituaram à sua nova casa.

Adoro essa história. Ela traduz como poucas o espírito da aprendizagem curiosa e autônoma. Para mim, o que ela faz de mais poderoso é ressignificar o ato de aprender: de uma educação bancária cujos conteúdos só serão úteis depois de muitos anos (e olhe lá, porque muitas vezes não são), chegamos a outra que serve para atingir objetivos “ao alcance das mãos”. Objetivos palpáveis definidos pelos próprios aprendentes, e não por terceiros. Depois de tanta lavagem cerebral ocasionada pela nossa cultura escolarizante, fica até difícil lembrar que aprender é verbo-meio, isto é, não se aprende só por aprender. Aprende-se a partir de motivações claras (necessidades, desejos) e, por isso mesmo, trazê-las à tona torna-se fundamental.

Outra história que aprendi com você, Zé, é a da mosca de Aristóteles. Conta-se que o filósofo grego, ao catalogar e descrever os seres vivos, registrou que a mosca doméstica tinha oito patas. De geração em geração, os copistas seguiam reproduzindo, sem questionar, a afirmação de Aristóteles: “moscas têm oito patas”. Até que um deles, mais ousado, decidiu desafiar a autoridade aristotélica e foi estudar o inseto. Descobriu, então, que moscas tinham seis patas. Ao contar esse caso num texto, você o encerra se perguntando: “quando chegará o tempo em que os protagonistas do absurdo modelo de escola, que ainda temos, se decidirão a contar as patas de uma mosca?”

Fonte: Gartic.

Sou otimista, Zé. Vivemos num mundo cheio de anacronismos localizados: por um lado, vê-se alguns pontos luminosos irradiando soluções cada vez mais ajustadas às demandas de um mundo em transição. Quem olha para esses pontos com lentes do passado os enxerga como sinais de um futuro muito distante, acessível para poucos. De outro lado, vemos muitas experiências educacionais que insistem em aprisionar corpos e colonizar mentes, sem que as pessoas envolvidas sequer se deem conta disso. Quem olha para essas experiências com lentes verdadeiramente contemporâneas enxerga que elas são produtos de uma visão envelhecida, que “vegeta, agoniza”, como se lê no seu artigo. Conclusão: cada um percebe os anacronismos que sua lente lhe permite enxergar. E é por isso que sou otimista, porque cada vez mais vejo gente compartilhando lentes novas por aí. Documentários, movimentos, escolas, livros, pensadores, fazedores, comunidades: chovem iniciativas capazes de propagar alternativas novas de se viver e se educar.

Uma delas é o livro “Reaja”, de Cristovam Buarque.

No fundo do mar do conhecimento há riquezas a serem liberadas, trazidas à superfície da sua consciência e espalhadas pelas consciências dos outros. Reaja contra o vazio epistemológico que esconde verdades ansiosas para serem descobertas, porque usamos métodos tradicionais de pensar. Não pense apenas o novo e o impossível, pense de maneira nova e imprevisível.

Esse trecho não tem tudo a ver com a história da mosca de Aristóteles?

O Cristovam, para mim, é um grande ser humano com um poder incrível de escrever imagens. Muitos o conhecem pelo lado político, eu o conheci mais pelos livros. Uma vez, estive com ele em Brasília e o perguntei: “Cristovam, você acha que seria possível e interessante levar o que se faz na Ponte para todas as escolas do Brasil?” Ele me respondeu que não, porque segundo ele não faria sentido querer que todas as instituições escolares seguissem os mesmos preceitos. Concordei com ele. Como burocrata que fui, às vezes me sinto tentado e acabo imaginando as escolas todas se moldando a esse mesmo “modelo” a partir de uma política pública. Por sorte, logo constato que não existe “o modelo da Ponte” e que impor de cima para baixo o mesmo conjunto de princípios e práticas a diferentes localidades seria como “fazer mais do mesmo”. Precisamos pensar de uma maneira nova e imprevisível.

O início das correspondências

Foi quando nos encontramos no Projeto Âncora, Zé, que eu tomei a decisão de escrever estas cartas. Você já o tinha feito em seu livro “Aprender em Comunidade”, ao se corresponder com 25 educadores que o marcaram profundamente. Aprendi contigo. Enviei a carta que escrevi ao Paul Feyerabend para você por e-mail, e que surpresa a minha ao saber que ele também foi um de seus “mestres”. Se estivesse vivo, Paul estaria orgulhoso do que você vem fazendo pela educação. Ele certamente concordaria se ouvisse você dizer que “é mais importante o professor que assume que não é capaz de dar respostas a um aluno, do que aquele que escreve teses sobre Piaget”.

Assim como em Paul Feyerabend, percebo em você uma consistente dedicação em se tratando da parte teórica. Entretanto, ambos conseguem aliar a profundidade à leveza, e especialmente no seu caso, vejo a sua preocupação constante em não colocar “o carro na frente dos bois”, isto é, a teoria na frente da prática. O fazer vem primeiro, junto com o observar, e em seguida é que vem o refletir e o se perguntar. Só depois é que as teorias e as bibliografias vem à tona. Não é que elas sejam menos importantes, mas é preciso que elas se ajustem e sejam úteis à realidade, e não o contrário (embora Feyerabend tenha nos mostrado que o contrário é uma realidade na ciência, e tudo bem).

Um dos pensadores ao qual você dirigiu uma carta foi Agostinho da Silva, português que assim como você fincou raízes no Brasil. Em poucas palavras ele disse o que acredito ser a essência do que chamo de viver-aprender:

O que importa não é educar, mas evitar que os seres humanos se deseduquem. Cada pessoa que nasce deve ser orientada para não desanimar com o mundo que encontra à volta. Porque cada um de nós é um ente extraordinário, com lugar no céu das idéias… Seremos capazes de nos desenvolver, de reencontrar o que em nós é extraordinário e transformaremos o mundo.

Ao “reencontrar o que em nós é extraordinário”, estamos também reencontrando o que mais nos fascina. Aprender precisa nos deixar fascinados, senão é outra coisa. Não nos deixemos nos deseducar.

Poderá haver educação em práticas sociais que impedem a assunção de uma vida plena, quando não fazemos aquilo que se pode e sonha poder fazer?

Cada vez mais acredito que não, Zé. Por formular questões como essa é que você se tornou uma grande inspiração no meu percurso. Agradeço à vida e a você por isso. Libertemo-nos do cárcere, articulemos comunidades e desfaçamo-nos dos guetos de aprendizagem. Como você disse, dificilmente se aprende neles.

Com admiração e gratidão,

Alex.

Referências

Cristovam Buarque. Reaja. 2012: Garamond.

Gabriella Porto. Revolução dos Cravos. InfoEscola. Disponível em: http://www.infoescola.com/historia/revolucao-dos-cravos/.

José Carlos Fernandes, com colaboração de Fernanda Areno, Ana Gabriela Simões e Everton Renaud. Pá-Pé-Pi-Pó-Ponte. Gazeta do Povo. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/especiais/entrevistas/pa-pe-pi-po-ponte-a6tx1p0dxulox48vjf0l3b1hq.

José Pacheco. A mosca de Aristóteles. Educare.pt. Disponível em: http://www.educare.pt/testemunhos/artigo/ver/?id=12364&.

José Pacheco. Dicionário de Valores em Educação. Edições SM. Disponível em: http://porvir.org/wp-content/uploads/2013/09/Dicionrio_de_valores_em_Educao-1.pdf.

José Pacheco — Jovens da Fundação Casa e Viveiro de Pássaros. Marcio Okabe. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=owCEfGP4iYA.

Maria Antonia de Oliveira. Professor José Pacheco. Raízes e Asas. Planeta News. Disponível em: http://www.planetanews.com.br/index.php?abre=raizes=e=asas=exibir&id_editoria=25&id=1901#.VnLAH_krLIV.

Sindicato dos Professores de Guarulhos. Entrevista com José Pacheco. Disponível em: http://www.sinproguarulhos.org.br/entrevista_josepacheco.pdf.

Yaacov Hecht. Democratic Education: a beginning of a story. Innovation Culture.

Cartas

Este texto dá continuidade à série de cartas do livro da Educação Fora da Caixa. A ideia é escrever intimidades a pessoas que abriram novas portas em minha jornada no campo da aprendizagem.

Leia as outra cartas que já publicamos: Carta a Paul Feyerabend | Sobre nascimentos e aprendizagens (Carta à Luísa Modena Dutra) | Tempo de nascer (a resposta da Luísa)

Fez sentido para você? Ajude a sustentar este doutorado informal e conheça 50 ferramentas de aprendizagem inovadoras. Clique aqui.

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Alex Bretas
Educação Fora da Caixa

Alex Bretas é escritor, palestrante e fundador do Mol, a maior comunidade de aprendizagem autodirigida do Brasil. Saiba mais em www.alexbretas.com.