Sobre nascimentos e aprendizagens

Alex Bretas
Educação Fora da Caixa
12 min readOct 1, 2015

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Uma carta para a Luísa

Luísa é uma amiga que conheci no primeiro Círculo de Doutorandos Informais, realizado em São Paulo. Sendo doula e educadora, não me contive em explorar junto com ela as possibilidades de interseção entre aprendizagem e nascimento.

São Paulo, 31 de março de 2015,

Acabávamos de sair de uma manhã muito proveitosa em que se criou espaço para falar sobre as intimidades das nossas histórias de vida. Intercâmbios de biografias e aprendências marcados pelas práticas da escuta e da empatia. Fomos aterrizando no restaurante, a luz baixa no segundo andar, que foi justamente onde ficamos. O lugar acabou acomodando todo o nosso grupo do Círculo de Doutorandos Informais. Enquanto comíamos, todos começamos a conversar. Eu estava curioso pra conhecer mais a respeito de tanta gente interessante!

Perguntava-e-ouvia sobre sua história, acometido por uma estranha intuição de que algo mágico aconteceria ali. À medida que você ia contando de sua experiência como doula, eu ia percebendo a essência da educação que acredito refletida em suas palavras. Quando já havíamos terminado de almoçar, desenhei no guardanapo uma síntese de tudo o que você me dissera em formato de provocação:

Tenho convicção que nossas buscas humanas encontram nas interseções um terreno fértil para florescerem. Tudo que é novo é de fronteira. Entre humanização do nascimento, educação livre e nossas histórias de vida devia haver algo de muito valioso pra você, simplesmente porque eram seus desejos de aprendizagem mais autênticos naquele momento.

Recentemente, você me trouxe de volta a esse desenho na segunda conversa que tivemos. Foi presenteante saber que isso te afetou de alguma forma. O que lhe dirijo a seguir bebe um pouco desses três círculos que se misturam.

Nascimentos de jardins

Sobre nascimentos, evoco Rubem Alves para dizer que:

“Pedagogia se aprende em coisas pequenas. Olhem o que esse cara fala, o William Blake: ‘prazer engravida’. Claro! Se você tem uma visão do sonho, você fica grávido… se você tem uma visão do jardim, você fica grávido, você começa a… puxa vida, mas que coisa fantástica, você começa a ter prazer antecipado. Aí você está disposto a passar por todos os sofrimentos, vai lá, cavouca de manhã, carrega pedra, corta a mão, machuca o pé, finca espinho, mas não tem importância, porque todo esse sofrimento é para quê? É para dar à luz um filho, que é o jardim da gente. E ao final, então, o que é que a gente tem? A gente tem o gozo do jardim”.

Fonte: Terça Louca.

O nascer é poderoso. Como você me clareou, nascimento é diferente de parto. O nascimento é um percurso completo, que engloba desde a fase anterior à gestação, passando pela concepção, a gravidez, e então o parto. Agrega ainda o pós-parto, uma fase riquíssima que pode ser uma oportunidade de autoconhecimento principalmente para a mãe, pois o bebê espelha muitas características da personalidade materna.

Rubem Alves compreendia a importância de se ver o nascimento com inteireza: no caso, de jardins. Na citação que resgatei acima consigo identificar o fluxo desejo — prazer — gestação — parto, do qual lhe falei na nossa segunda conversa.

Primeiro vem o desejo, aquela vontade visceral de se envolver, de (inter)agir. Em segundo está o prazer, o gozo, satisfazer-se intensamente com a concretização do desejo. O prazer, como afirmou William Blake, é capaz de nos pôr grávidos a partir dos nossos inalienáveis envolvimentos. Em seguida à gestação está o parto: é quando a natureza encarrega-se de apresentar ao mundo o belo jardim que se foi revelando desde o primeiro instante do querer.

Esses quatro elementos dão forma a uma metáfora que pode muito bem ser utilizada para se enxergar os processos de aprendizagem. Afinal, aprender no limite sempre envolve nascimentos, desde que o nosso ponto de partida venha daquilo que nos é essencial: o desejo, o sonho vivo de jardim. A figura da lemniscata, conhecida como a representação do infinito, pode ser uma imagem interessante para gerar novos entendimentos a partir dessa metáfora.

Desejo e prazer compõem a polaridade do sonho, ao passo que gestação e parto remetem à polaridade do trabalho, da realização. O Eu ocupa o ponto central pelo fato de ser por meio da nossa consciência e de nossas escolhas que se faz possível fluir de uma polaridade a outra.

Sim, pode ocorrer de ficarmos eternamente “viciados” no prazer de sonhar, por um lado, ou nos prendermos em gaiolas de trabalho sem vontade, por outro.

Ao concluirmos o nascimento de um projeto ou aprendermos algo novo, o Eu novamente é convocado a prestar atenção nos novos desejos que se originaram. A partir daí, uma outra espiral de aprendizagem pode se iniciar.

Ao contemplar a beleza dessa metáfora, pergunto-lhe: será que na educação estamos negligenciando a integralidade das quatro etapas do nascimento e enxergando apenas o parto? Será que, na ânsia de parir resultados imediatos, empregos, cursos, diplomas, estamos desapercebendo nosso desejo de aprender? Quantas vezes no ensino, no trabalho, nas nossas relações, sentimo-nos restringidos a perceber como única opção ignorar as nossas vontades? Quem sabe com mais jardins nascidos do desejo autêntico de cada um tenhamos paisagens coletivas mais desejadas por todos nós?

Vir-a-ser

Luísa, você me disse que, durante o parto, as mães são vistas do avesso. Sentem-se pelo avesso. O corpo é a figura central. Tenho pensado em como temos dado pouca atenção ao nosso corpo na educação que conhecemos. Parece que só há espaço para os trabalhos da mente. Muita gente já alertou: Rudolf Steiner na antroposofia, Ken Wilber na teoria integral e, descobri recentemente, Brent Cameron, um canadense que criou uma abordagem chamada SelfDesign.

Todos eles propõem entendimentos que, para além da mente, resgatam as dimensões do corpo, do coração e do espírito na aprendizagem. Talvez quando começarmos a agir no sentido de libertar nossos desejos e sentimentos da ansiedade de nossas cabeças, tenhamos partos mais humanos — literais ou não.

Até dar a luz a um sonho, existe uma estrada que deve ser aproveitada nos mínimos detalhes. Basta ver como o corpo do feto vai sendo preparado, a arquitetura cuidadosa de cada célula, de cada tecido. O DNA é o mesmo a cada empreendimento celular: a essência, originada a partir do desejo, se conserva em toda parte daquele novo ser. Ao mesmo tempo em que ele fortalece seu vir-a-ser, já é.

Não é a mãe que gera o filho: é ele que se constrói, que emerge, dispondo do ambiente privilegiado sustentado pelo corpo e pela alma materna. A mãe não deixa de ser protagonista neste processo. Mas, em se tratando de nossos percursos de aprendizagem, fico imaginando que talvez seja impossível controlarmos todos os detalhes da geração de nossos “bebês”. Tudo o que podemos fazer é iniciar e sustentar um ambiente privilegiado e facilitar a emergência do novo, confiando que a essência do sonho que estamos gestando não pode ser baseada senão no desejo que o originou — seu DNA.

É dizer: nossa missão como jardineiros é simplesmente “desobstruir a passagem” para que o mais belo jardim apareça a partir de um espaço ainda não lapidado. Isso requer desprendimento e atenção plena.

Neste sentido, nossas criações e aprendizagens têm personalidade própria: elas sempre vêm ao mundo com uma cara um pouco diferente da que havíamos sonhado lá atrás. Elas evoluem na medida em que cuidamos delas.

Partindo do fluxo desejo — prazer — gestação — parto aplicado aos nossos processos de aprendizagem, acredito ser importante perceber e celebrar todas as pequenas conquistas que ocorrem no caminho. Um jardim, poderia dizer Rubem Alves, vai nascendo a cada nova semente que brota, vai se fazendo a cada flor que desabrocha… Enxergar o vir-a-ser é uma arte muito necessária a quem se aventura num percurso de (auto)desenvolvimento: além de nos dar fôlego, nos orgulha e dá prazer.

Fonte: Terça Louca.

Ainda assim, existe um ponto de virada absolutamente crucial: o parto. Ao conceber nossas aprendizagens, penso que é preciso reconhecer a hora dos frutos do percurso ganharem o mundo. Nisso podemos ficar tranquilos, nossa intuição nos avisará quando chegar a hora, basta ter ouvidos atentos.

O parto é como um ritual, um batismo irremediável cuja magia é a de fazer desabrochar um novo ser, um novo sonho que subitamente encontra a concretude do mundo. Para chegar até esse momento, porém, cada um tem seu tempo, e talvez o maior desafio seja desvendar a arte de aproveitar todo o processo e desfrutar das aprendências do caminho.

Doulagens

Se o parto é o que coroa o nascimento, a doula é quem apoia as mães para que elas aproveitem todos os aprendizados do percurso. Quando você me disse isso, percebi ter encontrado a “satisfação intelectual” — como diz uma amiga — que justificava o meu inusitado interesse nas suas doulagens.

Tornar-se doula não é uma opção trivial nos dias de hoje. É uma escolha corajosa que repousa sobre um ideal. Nisso, percebo uma aproximação com o doutorado informal: é algo que requer emancipação, saber de si, encarar de frente nosso sonho e estar disposto a fazê-lo nascer.

Ser doula também significa batalhar por legitimidade, visto que ainda não há reconhecimento da profissão no Brasil. É lidar com a insegurança, com a imprevisibilidade e com o preconceito por se acreditar no resgate ancestral de uma experiência de cuidado com o outro. Sinto-me da mesma forma escrevendo este livro, fazendo um doutorado informal. Em tempos de educação mecânica e cientificista e de frios partos hospitalares, as doulas e os que optam por um caminho autônomo de aprendizagem até que têm algo em comum.

Na nossa segunda conversa, falamos sobre a “superiorização do cuidado”. Parece que agora uma condição primordial para se cuidar de alguém é ter um diploma de ensino superior, acumulando aulas e certificados. Claro, isso tem um sentido: eu provavelmente hesitaria em marcar uma consulta com um médico que não fosse formado (por outro lado, fiquei gripado na Amazônia e adorei ser cuidado por uma mulher de uma comunidade ribeirinha que fazia “garrafadas”). Não é que não haja valor em alguém se formar e continuar buscando experiências de educação formal. Mas, é preciso designorar a vida.

Ainda adolescente, houve um período em que meus dedos acumularam verrugas. Fui a diferentes médicos e tentei diversos tratamentos. Um tempo depois, minha mãe levou-me a uma velha benzedeira que havia na cidade. Participei do ritual, recebi a benção e as rezas, e depois de algumas semanas minhas mãos estavam intactas. Nessa ocasião, o cuidado mais superior que recebi veio de alguém que talvez nem soubesse ler. Não estou querendo dizer que uma benzedeira é melhor do que um médico, mas, simplesmente, que saberes e cuidados de diferentes matizes devem conviver.

Trajetórias de vida

Quando conversamos você me disse que a biografia, os conhecimentos anteriores e os interesses de uma doula impactam de forma significativa o tipo de relação que ela construirá com as futuras mães. No seu caso, você me contou que está enveredando por um caminho de apoios de cunho mais terapêutico, ainda que não tenha uma formação específica nesse sentido. É como se o seu coração pulsasse mais forte quando você se percebe hábil nesse tipo de cuidado. Sua curiosidade, inquietação e intenção estão todas apontadas para esse lugar. Não é libertador, poder exercer um papel que lhe fortalece e dá alegria?

Assim, cada doula carrega consigo marcas únicas que se manifestam de diferentes maneiras no seu trabalho: algumas apostam em cuidados físicos, outras encontram nuances mais educativas, psicológicas, médicas, espirituais etc. Luísa, no que se refere à sua prática, notei ainda sua preocupação em enxergar o nascimento de forma holística, apoiando mães até mesmo antes do momento da concepção. Partir dos saberes e histórias que mais fazem sentido pra nós é também uma das marcas do doutorado informal e de outros percursos de aprendizagem autônomos.

Para que uma futura mãe receba o cuidado de uma doula, é preciso haver confiança. Isso requer, por sua vez, afinidade e afeto na relação. Todo o trajeto do nascimento constitui-se de uma série de momentos muito íntimos e preciosos para a mulher. Se tornarmos a entendê-la como alguém que empreende uma jornada para dar a luz a um sonho, a figura da doula se transforma em mentora. A aproximação da doulagem com a mentoria é interessante porque, em se tratando de livre aprendizagem, mentor é quem está do lado, não acima.

As diferenças existentes entre essa abordagem e a que se verifica no ensino tradicional são a ausência de autoritarismo e a escolha por se colocar realmente a serviço das pessoas. Numa das histórias que a obstetriz Ana Cris Duarte nos conta, ela narra o trágico episódio de um parto opressivo:

“A parteira de máscara na frente era uma total desconhecida, dando ordens, pra baixo, levando o quadril, força assim, respira. E ela [a gestante] totalmente fora de si, como poderia entender o que estava falando aquela desconhecida mascarada?”

Fonte: Geledés Instituto da Mulher Negra.

É claro que existem bons médicos e boas parteiras, assim como existem ótimos professores. No entanto, talvez a essência do papel desempenhado por esses profissionais mereça uma redefinição: das ordens durante o parto para uma acolhida durante o nascimento; de quem professa o que sabe a quem apoia a jornada do outro.

Amor e ódio

Na sua jornada de aprendizagem, Luísa, você me disse que nutre uma relação de amor e ódio com a teoria. Apaixona-se por alguns teóricos e leva seus conceitos consigo por toda a vida, mas se enraivece com outros, cujos textos não quer ver nunca mais.

Erich Fromm, autor de “O Medo à Liberdade”, foi um dos que mais lhe cativou. Na crítica de Fromm ao sistema capitalista talvez coubesse uma reflexão a respeito de como a incessante busca material acaba subvertendo a aprendizagem: privilegia-se o ensino a partir do que é economicamente valorizado em detrimento das aprendências que realmente desejamos.

Para amarmos certas ideias e teorias e querermos nelas nos aprofundar, é preciso que elas ressoem com nossa crenças e visões de mundo. Para isso acontecer, é imprescindível que tenhamos liberdade de escolha e coragem para seguir o nosso coração.

Sabe, Luísa, tudo isso me fez ficar pensando em como funciona a curiosidade. Cheguei à conclusão de que ela é a ponte entre o conhecido dentro da gente e o desconhecido fora de nós. Para erguer essa ponte, nossas intenções, vontades, necessidades, sentimentos, valores e perspectivas de mundo são matérias-primas. Algumas dessas coisas aparecem de maneira consciente, outras nem tanto. A gente vai descobrindo.

No final da nossa segunda conversa, você me disse que às vezes não acredita que sua jornada de aprendizagem vai desaguar num nascimento. No entanto, grávida de sonhos você já está. Ao fazer encaixar a humanização do nascimento, a educação livre e as histórias de vida, um belo jardim — nos dizeres de Rubem Alves — vem por aí. Curiosidade é desejo, e como diria William Blake, prazer engravida!

Fonte: Terça Louca.

Gratidão pelos aprendizados,

Alex.

Referências

Alves, Rubem. “Educação para a cidadania”. Palestra ministrada no congresso “Educação e Transformação Social”. SESC Santos. Maio de 2002. Disponível em: http://minhateca.com.br/isadsbs/Galeria/word+doc+variados/Educa*c3*a7*c3*a3o+Para+A+Cidadania+-+Rubem+Alves,351134646.doc

As 3 ferramentas da alma. Blog da Kailo. Disponível em: http://www.kailo.com.br/2014/09/as-3-ferramentas-da-alma/

Duarte, Ana Cris. As Coelhas, a Ursa e a Leoa — quatro partos, quatro histórias. Disponível em: http://www.doulas.com.br/artigos.php

Monteiro, Ednize; Rebollo, Mara; Gonçalves, Sandra Regina S. A Prática da Vida Integral, Segundo Ken Wilber. Trabalho de conclusão do curso de Formação em Psicologia Transpessoal apresentado ao Instituto Humanitaris. Campinas, 2009. Disponível em: http://www.humanitatis.com/media/user/downloads/10_ken_wilber___a_pratica_da_vida_integral_z2.pdf

SelfDesign. Experience a life-changing learning opportunity. Disponível em: http://selfdesign.org/

Cartas

Este texto dá continuidade à série de cartas do livro da Educação Fora da Caixa. A ideia é escrever intimidades a pessoas que abriram novas portas em minha jornada no campo da aprendizagem.

Leia a outra carta que já publicamos: Carta a Paul Feyerabend

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Alex Bretas
Educação Fora da Caixa

Alex Bretas é escritor, palestrante e fundador do Mol, a maior comunidade de aprendizagem autodirigida do Brasil. Saiba mais em www.alexbretas.com.