Sobre beijar flores e pairar no ar: o Cuitelinho e o dom de criar

Emilio Garofalo Neto
emiliogarofaloneto
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18 min readJan 27, 2022

Ando meio fascinado com Cuitelinho. Acho que ela traz consigo um segredo importante sobre como andamos neste mundo em relação à criação de Deus e ao que fazemos com nossa própria criatividade.

Cuitelinho é uma canção que tem a mesma dor que acompanha meu peito e que se mostra em livros, em filmes, em canções, em brincadeiras com cachorrinhos mansos e em curvas da estrada. Uma mistura de deslumbramento e melancolia que eu procuro por aí, que já encontrei em obras de ficção científica, em conversas frente ao mar, em hinos, em pregações, em dias de inesperada beleza e nos de insondável dor. Já adianto uma coisa: senti muita alegria ontem quando descobri uma nova estrofe para Cuitelinho. Calma, vou explicar. A vista está um pouco atrapaiada, mas vou tentar te levar comigo nessa trajetória. Mais tarde explico isso de deslumbramento e melancolia também.

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O anonimato é um deleite. Às vezes. Tem dias em que queremos que a obra de nossas mãos seja reconhecida, queremos o mérito pelo nosso trabalho duro, poxa. Quem nunca teve um tuíte roubado, um trabalho de escola copiado, ou o mérito de uma ideia no emprego compartilhada por um gatuno? É ruim a sensação de que estão se apropriando de algo nosso.

Mas também há liberdade alegre em não ser reconhecido. Não, não me refiro ao anonimato pelo qual o esportista famoso anseia, o de poder ir ali no Bob´s sem ter de tirar um milhão de fotos e autografar máscaras descartáveis contra COVID. Mas do anonimato gostoso de fazer algo de forma tal que nem a outra mão saiba quem foi que fez. E é disso que falo aqui. Em fazer algo belo apenas pelo prazer de soltar algo esplendoroso por aí. Ser como um casulo que libertou borboleta e se deleita em ficar vendo essa maravilha embelezar o mundo. Sem se preocupar se isso vai ser consumido e apropriado por outros ou não. O prazer de ver pessoas se deleitando com seu bolo, seu texto, sua arrumação do salão, sua ideia sem ninguém saber que foi você quem fez. Há um tipo de satisfação, sim, satisfação, em ver pessoas desfrutando de algo bom que você criou, mesmo que seu nome não seja envolvido em glória.

O Senhor se sente assim o tempo todo, eu acho. Há tanta coisa gloriosa que Deus fez e somente Pai, Filho e o Santo Espírito sabem. Tem coisas que acontecem lá depois da fronteira do universo observável que só Deus sabe. Seres espirituais que só Deus viu. Tenho certeza de que há espécies de flores, de pássaros, e até maravilhosos mamíferos marinhos que só Deus conhece e exultou em vê-los em ação. E quantos são os atos de sua infalível providência que nós nunca nem na eternidade saberemos? Vai além de ser capaz de soltar os laços do Órion, como certa vez foi perguntado a Jó. Percebo agora que acabei de me contradizer; afinal, duas das três benditas pessoas da Trindade sabem o que a outra fez, ainda que nem anjos, nem humanos e nem baleias orca o vejam. O que, afinal, deixa tudo mais doce. O anonimato do artista, da boa ação, da oração feita por alguém… nada disso é de fato anônimo. O Senhor sempre está vendo e se alegra junto.

Noutro dia fui pregar no Mato Grosso do Sul, lá perto das terras paraguaias. E pelos mesmos dias, numa dessas coincidências que só podem ser armação, eu andava escutando o concerto musical do Oswaldo Montenegro com o Renato Teixeira. Estava ouvindo os muitos sucessos como Amora, Romaria, Lua e Flor, Estrelas, Tocando em frente… quando do nada fizeram um dueto magistral cantando Cuitelinho.

Aquilo se alojou no meu coração. E eu a caminho do Mato Grosso do Sul, que é mencionado na música. Aliás, um pequeno desvio para não ser acusado de faux pas geográfico. Na época da canção, só existia o Mato Grosso, a separação dos estados foi apenas em 1977, um ano antes de eu nascer. A música, efetivamente, fala mesmo é do que hoje chamamos de Mato Grosso do Sul. Vencida a barreira geográfica, voltemos.

Eu já conhecia Cuitelinho. Claro, todo mundo conhece. Conheces? O que eu nunca tinha me dado conta é de um detalhe que no final das contas me fez pulular de emoções conflituosas e ideias: o autor da canção é desconhecido.

Eu já tinha ouvido Cuitelinho associada aos grandes da música sertaneja como Renato Teixeira, Pena Branca & Xavantinho e outros gloriosos. Sei lá, assumia que era autoria de um deles. E claro, esse coelho musical me convocou para entrar nessa toca melódica. E eu fui. Foram dias obcecado, ouvindo inúmeras versões e procurando mais informações sobre a canção e suas estrofes. Até que cheguei em uma estrofe inédita. Mas estou me adiantando, de novo.

O que é um cuitelinho? Eu nem imaginava! Nem sei o que pensava ser. Sei lá, uma faca pequena? Não, aí seria cutelinho. Fui investigar, e é um nome regional para o beija-flor. Olha só. Que maravilha. Esse bichinho que Deus inventou tem os melhores nomes, não? Beija-flor. Um bicho cuja existência envolve ficar beijando flores. Sério, pensa comigo. Deus inventando o mundo, resolve fazer um passarinho pequetitinho que seria tão beijoqueiro, tão enamorado das flores que os brasileiros o chamariam assim. Sim, os brasileiros. Afinal, em inglês esse lindinho é chamado de hummingbird. O pássaro que zumbe, sussurra, cantarola, faz um barulhinho. Aquele barulhinho de suas asas batendo incessantemente enquanto ele está ali beijando a flor. Ou seja, nós aqui focamos no beijo, os anglófonos ficam mais atentos ao barulho da operação de voo. Não, não vou me meter a análises culturais ou antropológicas conectando o brasileiro ao prazer do beijo e o americano ao esforço do trabalho. Vou poupá-los disso. Foquemos no bichinho. O miserável é tão fofinho que também é conhecido assim, pássaro sussurrante, pássaro cantarolante, pássaro zumbidor. Ele paira no ar, como um mistério, como um segredo, como alguém que está ali pronto a dizer algo importante, mas você não presta atenção. Eu já te conhecia por esses outros nomes, cuitelinho. Mas agora sei como os amigos te chamam.

Pus-me a pesquisar sobre a história da canção e quanto mais descubro mais fascinado fico. Saí a pesquisar, que é o que faço quando fico assim meio obcecado. Acho que já falei por aí, mas uma das minhas partes favoritas do processo de escrita é a pesquisa. É construir sobre o que já existe, entender onde estamos e assim tentar levar adiante as coisas. Pesquisar para não repetir, e sim avançar. Entender o processo criativo e ver o desabrochar dessa flor.

Então vamos lá. Essa é uma dessas canções que não sabemos o autor. Ela vem sendo cantada e repassada há gerações. Oriunda das regiões do sudeste indo lá para o centro-oeste. Ah, sim, e sendo modificada. Em todas as minhas pesquisas chego à seguinte origem: a versão clássica que temos, com três estrofes, começa com o compositor Paulo Vanzolini. Ele ouviu de um amigo, Paulo Xandó, que por sua vez teria ouvido a canção sendo tocada por um barqueiro do Rio Paraná chamado, prepare-se, Nhô Augustão. Que nome maravilhoso, Senhor. Será que ele cantava forte? Ou será que era como um farfalhar de asas? Sei que Nhô Augustão, como um barqueiro do rio Styx de sinal invertido, conduziu Paulo Xandó ao céu musical, e ele por sua vez levou Vanzolini que então o abriu para todos nós. Esse barqueiro salvou o cuitelinho para o mundo conhecê-lo. Está mais pra Nhô Noé, esse barqueiro.

Há controvérsia, é claro, acerca de alguns detalhes envolvidos nisso tudo. Parece certo que Nhô Augustão cantava apenas algumas das estrofes de algo mais antigo e cheio de versos. Pode ser, entretanto, que Xandó é quem tenha perdido algo. Duas estrofes foram passadas para Vanzolini, que por sua vez compôs uma terceira, que, a meu ver, é a mais bonita delas.

Eis a primeira estrofe, paire no ar comigo e leia:

Cheguei lá, bera do porto onde as onda se espaia

As garça dá meia volta e senta na beira da praia

E o cuitelinho não gosta que o botão de rosa caia

Essa tal praia é de rio. E as garças estão lá se espaiando bem tranquilas. Bobas não são. Eu que tenho o hábito de apenas alguns dias no ano me espalhar numa praia, devia aprender com elas a fazer isso todos os dias. Por que é mesmo que moro tão longe de praias? Tem a do lago Paranoá, aqui. Acho que eu devia ir mais até lá. Sempre que penso em praia me lembro do meu avô Emilio. Ele, o Garofalo original. Quando se aposentou em 2000, saiu da capital paulista e foi morar em Santos. Queria morar perto da praia. Você sabe como é, não sabe? Sempre se diz que quem mora junto da praia raramente vai. E meu avô foi para lá com o objetivo de ir à praia todos os dias. Sabe o que aconteceu? Foi todos os dias. Está bem, deve ter tido algum dia em que não foi, alguma dor, uma chuva daquelas da baixada. Mas tirando isso, foi. Andava, nadava, fazia ginástica. O velho Garofalo descansou no ano passado. Ele andava meio limitado por questões cardíacas e pelo pantanal de limitações que se abateu sobre o mundo nos últimos anos. Essa água não baixou a tempo dele poder voltar a cruzar por aí. Enfrentou fortes bataias. Com uma leveza e graça que acho que não se viu neste mundo desde que José passeou pelas praias do Nilo. Tirando o Senhor, é claro. Não esqueço umas fotos do vô em sua última ida para a praia, dessa vez no Guarujá. Que sorriso bom. Como eu queria ter ido com ele para o mar de novo. Ele me chamava de Godzilla quando eu era mais novo e enfrentava as ondas com ele. Algo acerca de meus saltos, não sei bem. Depois, saindo do mar, tinha picolé de limão e/ou raspadinha de groselha. Antes tinha tido, também.

Temo que precise me assegurar de uma coisa antes de prosseguirmos. Você tem a melodia na cabeça, caro leitor? São inúmeras as belíssimas interpretações de Cuitelinho. Pena Branca & Xavantinho, Carlinhos Veiga, Renato Teixeira, Ná Ozetti, Zé Pretim, Nara Leão, Milton… procure e você encontra. Se você não está com a melodia bem firmada, faça um favor, não para mim, mas para seu coração e pare um tiquinho a leitura e ouça por aí. Pode ir ouvindo e lendo.

Enquanto você firma a melodia na cabeça, vamos voltar ao nome inglês do cuitelinho. Ele que se encontra tristinho em nossa canção. É claro que um bichinho que beija flores não vai ficar feliz que o botão da rosa caia. Em inglês ele é o hummingbird. O passarinho que cantarola, ou que zune. Acho que a ideia é mais mesmo o zunir das asas. Mas eu quero que esse nome seja por ele cantarolar. Em geral, quando se trata de humanos, cantando uma canção sem de fato cantá-la, nos referimos a isso como cantarolar. Quando se trata de bichinhos falando barulhinho, falamos zunir. Essa é a tradução que encontro. Mas, como ocorre muito com traduções, me parece que nenhum dos termos em português significa exatamente o que to hum. O cantarolar não é apenas fazendo “hum”. Ou é? Acho que não. Acho que também se cantarolar fazendo “lá lá lá” e que eu saiba isso não se qualifica como humming. To hum. Esse verbo é surpreendentemente difícil de traduzir. Está bem clara a onomatopeia no inglês. Em português podia ser runrumar. “Runrume comigo!” Não sei, ficou estranho. Mas o ato é comum. Tem algumas músicas que eu amo runrumar, digo, cantarolar-fazendo-hum.. Uma delas é o tema do filme “O labirinto do fauno”. Acho assombroso. E melancólico. Uma triste história de esperança dolorida no meio da luta da revolução e como lidar com a parentaia. Procure depois por Pan´s Lullaby. Promete que vai procurar? Então vamos para a segunda estrofe do Cuitelinho. Cantarole comigo:

Quando eu vim da minha terra despedi da parentaia

Eu entrei no Mato Grosso e dei em terras paraguaia

Lá tinha a revolução, enfrentei forte bataia

Como ninguém sabe a idade da canção, não sabemos qual é essa tal revolução mencionada. Sabemos que aquela região do país é e creio que sempre será marcada pelo pantanal e pela proximidade com o Paraguai. Tem parte em que você está no Brasil e no Paraguai ao mesmo tempo. Coisas de Nhô Schrödinger. Isso me intriga. Como não? Eu sempre tive interesse pelo limítrofe, pelas fronteiras. Sou meio fascinado por esses espaços geográficos arbitrários que demarcam quando algo muda. Por vezes um rio, como o Paraná. Por vezes é uma linha desenhada metafisicamente no chão. Ou então um oceano que fica bem Pacífico entre os continentes dizendo onde uma coisa começa e a outra acaba. Acho que amo tanto a viração do dia por isso. Pois a existência fica ali, crepuscular, limítrofe, uma fronteira entre dia e noite em que não se sabe bem quando um virou o outro.

Um dia Abraão se despediu da parentaia. Levou junto sua Sarai e um sobrinho desses que mais atrapaia que ajuda. E foi andando até que o Senhor falou que ele tinha chegado. De repente estava na terra prometida. Lá Abraão enfrentou fortes bataias. As piores foram contra ele mesmo.

Já vimos duas estrofes. A terceira é a feita pelo Vanzolini. Beije essa beleza comigo. Não, espere. Antes de irmos à terceira estrofe é preciso explicar algo sobre a tal mistura de deslumbramento e melancolia que penso estar nesta música. Permita-me falar sobre isso. É o que tento por em minhas obras de ficção. Se você sentiu algo estranho naquela conversa no lavandário em Lá onde o coração faz a curva ou sorriu meio tristinho no pós-batalha de Aquilo que paira no ar é por eu ter conseguido fazer com que esse sentimento pairasse no ar ao menos um tiquinho, o suficiente para a história tascar um beijinho no leitor. Uma das minhas obras de ficção científica favoritas é do autor chinês Cixin Liu. A trilogia O problema dos três corpos. Uma história maravilhosa que mostra um universo vasto, misterioso, hostil e ao mesmo tempo cheio de maravilha. Ameaças de invasões alienígenas e tanta coisa que é difícil de colocar aqui numa simples sinopse. Lembro de várias vezes parar de ler, sem fôlego. Lembro de ficar enrolando para terminar a leitura. De ficar pairando diante do livro como um beija-flor, sem de fato sugar o néctar da história por medo que se esgotasse rápido demais. Essa sensação que é difícil de descrever aparece em filmes diversos, como no já mencionado Labirinto do fauno. Fiz uma resenha sobre o livro em que explico isso. Mas basicamente é pois assim tenho aprendido a ver o mundo. E ver a mim mesmo. Por causa de Salomão em Eclesiastes. Por causa de Paulo e o que ele viveu. Dos fantasmas que carregou e dos quais riu com a graça que o fez novo. Mais recentemente por causa de Jó e seus assombros. Melancolia, pois o mundo é quebrado e dói que nem aço de navaia. Deslumbramento ou assombro, pois mesmo quebrado traz consigo coisas tão belas como rios, pantanais, garças e gente que se ama cheia de saudade.

Vamos à terceira parte da canção. Alguns dizem ser a mais bela estrofe da música brasileira. Talvez seja mesmo. Ficar decidindo essas coisas é divertido, mas isso é para outro dia.

A tua saudade corta como aço de navaia

O coração fica aflito bate uma e a outra faia

E os olhos se enchem d’água que até a vista se atrapaia

Tem coisas que fazem a vista ficar atrapaiada mesmo. Saudade é uma delas. Tem saudades de gente. Há saudades de épocas. Existe até saudades de coisa que sequer existiu. Jó ficou falando da saudade que sentia do tempo em que percebia que Deus era seu amigo. Salomão explicou mais tarde que a saudade humana na verdade é da eternidade. Se você já sentiu saudade que corta que nem aço de navalha, você vai entender. Tem algumas coisas que fazem a gente sentir saudade tão feroz que os olhos marejam, que a vista fica tortinha. Essa música me fez sentir saudade. De tanta coisa que nem vou me meter a escrever pois o artigo precisa ficar pronto. Mas uma delas foi de outro Garofalo, o Emilio Garofalo Filho.

Saudades do pai. Já se vão quase sete anos. De alguma forma eu me lembro de ele gostar dessas músicas caipiras. E dessa em particular. Ele é lá da região do Paranapanema, fronteira de São Paulo e Paraná. E amava essas canções. Amava Renato Teixeira, em particular Amora. Eu, quando criança, nunca liguei muito para essas mais melancólicas, gostava mesmo de Vira (no meu quintal). Achávamos engraçadíssima. Ainda acho. Mas sabia que outras dessas eram belíssimas, ainda que soubesse mais que sentisse. E canções assim ficaram em algum canto do terreno fértil do coração do Garofalo Neto. Foi uma espécie de semente que veio a brotar décadas depois. Queria contar pra ele que amo Cuitelinho. Um dia desses eu conto. O velho agora deve estar beijando flores dos campos do Senhor. E cantarolando.

Acho que damos canções aos filhos sem que eles percebam que estamos fazendo isso. Um dia a gente cresce e nota que reconhece mais melodias do que sabia conhecer. Os pais dão aos filhos mais de si do que sabem. Então, quando ouvi Cuitelinho outro dia, com ouvidos para ouvir, já havia um gancho antigo na parede do peito da memória afetiva, e lá a melodia se agarrou e virou enfeite do amor do passado e decoração das expectativas do futuro. Vocês conseguem imaginar o que é um cuitelinho de Nova Jerusalém? Não sei bem como funciona o tempo por lá… mas acho que o velho já os conhece.

Falando em pais e filhos, nesses dias ando lendo em voz alta um de meus livros favoritos de ficção, Gilead, de Marilynne Robinson. O livro é a carta de um pastor bem idoso e perto da morte para seu filho temporão. Tão dolorido que alegra. Tão belo que dói. Corta que nem aço de navaia. Num dos meus momentos favoritos do livro, o velho pastor abençoa uma pessoa de quem não gosta muito com a mão em sua fronte. Um beija-flor eclesiástico zumbindo diante da flor que é o rosto humano. Cantarolando. Como ele diz, usou Números, é claro:

O Senhor te abençoe e te guarde;

o Senhor faça resplandecer o rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti;

o Senhor sobre ti levante o rosto e te dê a paz.

Três linhas. A melhor de todas as estrofes da história do mundo.

Você sabe o que é resplandecer o rosto? Não? Pensa um pouco. Quando é que um rosto brilha para você? É quando o rosto se espalha em sorriso, seu bobo.

E o Senhor nos abençoa de muitas formas. Seu sorriso aparece para a gente de mais maneiras do que estamos dispostos a entender. E nisso preciso te lembrar sobre o Salmo 19 e o que tenho em mente aqui nesse texto labiríntico. Lembra do Salmo? Fala sobre a glória de Deus demonstrada na criação. Uma das melhores coisas de viajar, seja pro Mato Grosso do Sul ou não, é ver a diversidade da criação de Deus. Nhô Davi no Salmo 19 insiste que os céus onde paira e voa o cuitelinho proclamam a glória de Deus. Mas a gente esquece de ver isso. No Mato Grosso do Sul vi paisagens diferentes das que vi interiorando até Campina Grande, das que encontrei subindo a serra gaúcha, ou beradiando o Oceano Pacífico bem como o Atlântico. Já vi a Amazônia e sou um habitante do cerrado. É glória sobre glória. E nós participamos disso operando sobre seu mundo. Ele fez do nada; nós fazemos a partir do mundo dele. Nós, por assim, dizer, acrescentamos estrofes ao que ele fez.

Eu entendo assim (pois gente melhor que eu já cantarolou pra mim): Deus fez o mundo, criação gloriosa. Muitos não sabem o nome dele, o autor. Mas mesmo quem não sabe quem é o autor, cria sobre sua criação. Explico. O que o pintor faz? Ele pega as cores de Deus e cria com elas, sejam imagens baseadas nas de Deus, ou não. Mas as cores são. Ele não tem como inventar uma cor que seja nova para Deus. O que faz o compositor? Usa as possibilidades melódicas inventadas por Deus. Emprega as ondas sonoras do Senhor para fazer música. Assim também o escritor. E assim por diante. Ampliamos a glória por meio de trabalhar sobre ela. E do mesmo jeito, é possível pegar a melodia feita por alguém anônimo, reunir as estrofes que recolhemos e quem sabe fazer isso crescer, cultivando e guardando o que foi posto em nossas mãos.

Assim sendo, veja comigo, a dúvida que assombra e ao mesmo tempo me deixa melancólico. E as outras estrofes de Cuitelinho? O que será que Nhô Augustão esqueceu? Eu amo quando descubro que um de meus hinos favoritos têm mais estrofes do que eu sabia. Acontece muito. Aliás, um de meus hinos favoritos de cantarolar é “A cruz excelsa a contemplar”, do grande Isaac Watts. Já estive ao lado do túmulo dele, cantarolando essa canção. Conhece? É ótimo para uma runrumada enquanto pensa na vida e cheira flores. Alguns desses mais antigos, dos tempos de Watts e outros tinham um montão de estrofes, e as igrejas foram focando em algumas e assim o hino foi sendo reduzido e cantado pelos Nhôs Augustões e Agostinhos do mundo. Aliás, Nhô Agostinho teria feito uma linda estrofe para Cuitelinho, tenho certeza. Talvez na parte das Confissões que fala sobre tarde ter amado o criador, mesmo amando e muito suas obras. Vai saber. Talvez Nhô Agostinho seja o autor original de Cuitelinho. Eu não duvido.

Saí em busca de mais e mais estrofes, encontrei várias. Para começar, vale a pena a gente ver a maravilha que o Zeca Baleiro fez. Uma versão dessa canção, para a trilha sonora de um filme. Fui ouvir e arrepiei. Quem canta é a Letícia Persiles. Três novas estrofes. Nho Zeca arrebentou. Confira:

Meu coração arde em brasa como lenha na fornaia

Pensamento voa longe, vento que sopro a paia

E meus oio enche d’água, quando a tarde desmaia

“Quando a tarde desmaia”. Você sabe que essa é a melhor parte do dia, não sabe? O tal crepúsculo. A já mencionada zona limítrofe que é a viração do dia. Era um horário especial lá no jardim. Quando o vento soprava na viração do dia e o Senhor andava por lá. O dia meio que ia virando noite e Deus chegava por ali. Eu amo essa parte do dia, mas eu nunca tinha ouvido alguém falar dela assim. O momento em que a tarde desmaia. Como pode ser tão bom com as palavras? A canção de Nhô Zeca segue assim, como um bela recriação sobre a tradicional, repetindo e elevando-a:

O meu pai lutou na vida como soldado em bataia

Minha mãe criou seis filho tudo debaixo da saia

E a dor de viver me corta feito aço da navaia

Eu morava lá na serra, eu nunca morei na praia

Minha casa é mundo grande levo tudo na cangaia

E a saudade vez em quando me engasga e a voz faia

Eu moro num planalto e nunca morei na praia. Entendo isso aí bem. Quero morar na praia. E ir todo dia. Não duvide de mim nesse aspecto. Não adianta dizer que você mora e mal aparece por lá. Sou Garofalo Neto.

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Achei o máximo essa versão do Zeca. E fiquei procurando e procurando mais e mais. Aliás, tem mais estrofes ao menos uma já consagrada, embora pouco gravada. Tem uma que o próprio Vanzolini que fez. A Mônica Salmaso conta que um dia um velho professor de física apareceu num show dela dizendo que o pai dele conhecia duas outras estrofes. E por certo há outras por aí. Aliás, tem boas gravações da própria Mônica cantando lindamente essa quarta estrofe que o Vanzolini incluiu. A Mônica canta bem demais. É assim:

Vou pegar o teu retrato e vou botar numa medaia;

Com seu vestidinho branco e o laço de cambraia;

Colocar bem junto ao peito, onde o coração trabaia.

Bonita, não? Fui pesquisar o que é o laço de cambraia. É um tecido de linho ou algodão muito fino. Tem outro verso que se encontra com um pouco mais de pesquisa. Esse é menos melancólico, mais otimista. Se entendi certo, é do Vanzolini também:

Vou voltar pra minha terra e abraçar a parentaia

Vou rever os meus amigos antes que a vida se esvaia;

Ver de novo a garça branca, sentadinha lá na praia.

Que coisa linda. Sabe o que seria uma coisa gloriosa? Mais artistas fazerem estrofes e irem aumentando o vagões desse trem de beija-flores. Como a Mônica Salmaso falou, essa é “uma música viva”. As pessoas vão acrescentando. Queria mais gente cantarolando sobre essa canção que algum anônimo fez sobre a criação nada anônima do Senhor. Tem umas coisas que eu só penso, e não tenho coragem de dizer. Por escrito acabo dizendo. Imagina só que maravilha seria uma competição amistosa de novos versos para Cuitelinho! Imagino gente criativa e sensível como o Andrade, o Tecão, o Carlinhos, o Iamarino, o primo Marcelo, o Stênio, o Hélvio, o Julinho, o Mano, o Manô, etc. O que essa turma faria caso se aventurasse a ampliar o Cuitelinho? Seria talvez algo a romper as fronteiras daqui para o mundo novo. E não somente os músicos! Imagina o que o Lau faria? Tarcizio! Tenho para mim que eles todos têm estrofes de Cuitelinho escondidas e que as revelarão no testamento quando cruzarem a fronteira.

Então assim encerro. Com uma surpresa que já estraguei lá no início do texto. Pesquisei, procurei. Encontrei um novo verso para a canção. Uma nova estrofe que não vi em nenhum outro lugar. Aqui o achado. O autor é anônimo. Não posso falar onde encontrei, pois vocês são muito curiosos e vão ficar fuçando onde não devem. Ei-la:

Aprendi que quando amigos se encontram o rosto espaia

Não é amor se foi tão fácil ir dormir sentindo raiva

E a vontade de ir embora é porque Deus nunca faia

É isso, gente. Ora de ir cheirar umas flores. Esperar o fim deste mundo quebradiço desfrutando dele. Criando sobre ele. Não vai ter invasão alienígena não, mas já tem uma turma que é de outro mundo andando pelos pantanais, ilhas, desertos e até cidades daqui. Até a hora de voltar a cheirá-las.

Abraão sabia que aquela terra onde entrou e enfrentou fortes batalhas não era a terra final. Era só um prenúncio de uma terra porvir. Descanse nesse crepúsculo. Logo a vida vira noite para então virar dia para sempre. A vida vai passando e quando a gente se der conta terá acordado em outra terra. Enquanto isso não chega, beije a vida. Pode fazer barulhinho. Ficar runrumando seus hinos favoritos. Eu sei que tem horas que a vontade é de ir embora. Calma. Ele nunca falha. E a velha benção de Nhô Arão fala justamente sobre o rosto do altíssimo se espalhando em sorriso por nós, não fala? Então. Vai ser assim até a hora de ir embora e vermos o sorriso numa face que é o próprio sentido da vida. Não acho que tenha como ficar melhor.

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