Essa chuva que não passa

Escrito por Carol Btr

Revista Subjetiva
Ensaios sobre a loucura
4 min readNov 15, 2017

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Reprodução: Internet

A primeira gota caiu certeira na folha grossa da árvore, fez barulho de coisa rasgando. As outras, espatifadas no chão, levantaram do asfalto o cheiro morno. Limpando com a mão a primeira gota da testa, engoliu seco: havia saído sem guarda-chuva. Encarou a rua escura, soltando o ar pelo nariz: quanto se molharia no caminho dali até o toldo? Encostada ao muro, foi pouco a pouco ficando com as roupas encharcadas. Logo ele chega.

E chegou. Abriu a porta do carro, deu um beijo e riu.

Pensava que já era o quarto dia que chovia sem trégua. Por isso, talvez, merecesse não ir trabalhar hoje. O chefe entenderia? Não, ele não entende nada além de números. Calçou os sapatos. Soubesse que choveria tanto teria comprado as galochas. Horrorosas, mas de serventia numa hora dessas. Seria o caso de uma capa de chuva?

De segunda a sexta-feira, por volta das 8 da manhã, descia sete andares até a portaria, sorria bom dia, atravessava a rua, caminhava por dois quarteirões e esperava o ônibus. Nestes dias, a chuva irritava mas era gostoso observar a enxurrada, aquela água toda, as gotas caindo grossas uma a uma no metal da cobertura do ponto de ônibus. Então falava “Oi!” para o motorista, ignorava as vozes estridentes dos adolescentes-office-boys já cedo a rir, achava graça na despedida simpática do motorista “Fica com deus, minha filha”, caminhava por três quarteirões e meio, chegava ao escritório às 9 em ponto.

“Essa chuva, olha, tá difícil, desisti de lavar as roupas, ainda bem que na esquina de casa mesmo tem uma lavanderia”, e os colegas não respondiam. Ninguém responde, esse pessoal é assim, só se empolga com suposições e maldizeres sobre a vida alheia.

Passadas as sete horas de trabalho, de novo a mesma coisa. Deixar o prédio do escritório, caminhar por três quarteirões, dobrar a esquina, passar por baixo da árvore de folhas grossas e chegar à papelaria onde ele sempre a encontrava em seu caminho de volta.

Esperava, agora observando as gotinhas que escorriam pelas folhas grossas da árvore e pingavam no asfalto. Pela esquina, cruzando a rua, todo dia passava um homem de bicicleta, e ele era indiferente àquela água toda: desde o primeiro dia seguia sem capa de chuva. As mãos do guidão molhado, os pneus finos fazendo ondas nas poças d’água, a camisa pouco a pouco colando ao corpo úmido.

Entrou no carro, ganhou dele um beijo, jogou no chão o guarda-chuva.

Sentado no sofá, na hora do noticiário, foi que ele falou meio assim se divertindo “Olha, esse negócio de guarda-chuva… pra que isso?”. Como pra quê, se chovia há quatro dias, incessantemente, agora mesmo podia ouvir na janela as gotas batendo, amanhã certamente seria mais um dia de olhar a enxurrada escorrer pela rua e mais tarde ouvir as gotinhas no toldo da papelaria enquanto um rapaz passava sempre ao longe de bicicleta, nunca com capa de chuva, sempre a se molhar, devia morar por ali e gostava de chuva na volta pra casa depois do expediente, vai saber, vai entender essa gente.

O olhar dele vagou pelo teto, depois foi fundo nos olhos abertos diante dele, as mãos tocando de leve a coxa dela: o que tá acontecendo?

Eu é que te perguntou, ela falou, sem desarmar o sorriso. Ele esfregou a mão sobre a coxa dela e caminhou até a sacada: vem cá.

Ela encostou no parapeito, esticou o braço e reparou nas gotas estalando sobre a pele. Riu. Como não? Aquilo a escorrer era o quê? Olha cada pingo grosso. Lá embaixo, um casal caminhava pela rua escura. Nenhum deles se escondia debaixo de guarda chuva, num clichê romântico. Passou uma senhora com uma sacola de compras, e mais uma mulher segurando pela coleira um cachorro, com o capuz do moletom sobre a cabeça. Ah, olha lá! E insistiu que de repente o mundo havia mudado, as pessoas, vai ver, algumas delas, queriam aproveitar a chuva.

Ele juntou as folhas de jornal espalhadas pelo chão no canto da sala, entre outros jornais de outros dias, desajeitado procurou estre as páginas e voltou ao lado dela, apontando os desenhinhos de pequenos sóis na segunda, terça e quarta-feira. Olha: até na previsão. Ela apoiou o corpo contra o parapeito mais uma vez e ainda pôde ver a mulher com o cachorro virando a esquina, as gotas deveriam manchar o moletom cinza, se morassem três andares para baixo poderia ver, mas dali era impossível. Parado agora um passo atrás, ele mantinha a expressão de quem derruba café na camisa limpa 30 segundos antes da reunião. Esperou ela falar, mas ela não falou. Olhou de novo a água escorrer pela rua, se acumulando em pequenos lagos na esquina de baixo.

Esse texto faz parte da parceria entre as revistas Subjetiva e Ensaios sobre a Loucura através do tema “Quando a loucura é subjetiva”.

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