Ponteiro dos segundos
Escrito por Carol Btr
Anteontem, esqueci de regar as flores que ficam perto da janela. Quanto às outras, despejei os três dedos d’água que restavam no fundo do regador amornado pelo calor dos dias. Bati a porta sem passar a chave.
Guapuruvus juntaram-se às folhas secas, você me disse dois dias depois. Esfreguei o telefone na barra da camiseta. O que são, afinal, guapuruvus? Repete? Seriam sinais da morte das flores ao lado da janela? São guapuruvus os pequenos insetos que vêm à terra para buscar as flores e levá-las ao reino da morte, milhares de asas pequeninas que à noite se confundem com estrelas? O barulho dos carros abafava sua voz.
Sob a sola do meu sapato, folhas secas descansam longe da vista das donas de casa com suas com vassouras apoiadas nas paredes das áreas de serviço e suas fímbrias a doer diante da televisão.
Há tanto abandono nesse mundo.
Meus pés cruzam avenidas e sobem degraus de templos burocráticos, presídios contemporâneos onde homens engravatados se reúnem nos cantos e gastam milhões em propaganda para esconder que no íntimo suas paredes têm a mesma cor das casas de detenção. No rosto do vigia, a saudade da amada, a magoa de uma vida, a frustração com o jantar de ontem que foi sopa. A consciência descansa em barrigas, decotes, cabelos e gestos repetidos na fila de espera, um zíper que abre e fecha, um chaveiro que balança, até a máquina apitar. Tiro do fundo do bolso as últimas notas, sorrio bom dia, que bom, que bom que os lábios ainda se curvam e que jamais, por mil decretos, eu compraria uma arma de fogo. Os sapatos são confortáveis, eu jamais voltaria para uma casa onde há flores mortas e coisas não ditas. O que são, afinal, guapuruvus?
Esse texto faz parte da parceria entre as revistas Subjetiva e Ensaios sobre a Loucura através do tema “Quando a loucura é subjetiva”.